Dominância fiscal passou a ser o tema central no debate
sobre macroeconomia no Brasil. A discussão foi colocada por Monica de Bolle em
uma série de entrevistas e textos curtos (exemplos
aqui e
aqui), alguns economistas,
dentre os quais este que vos escreve, não se mostraram convencidos com o
diagnóstico que a economia brasileira vive um período de dominância fiscal e,
mais importante, com a proposta que o Banco Central deveria controlar a
inflação por meio do câmbio e não por meio da elevação da taxa de juros. A
questão da dominância fiscal é uma questão acadêmica que deverá gerar algumas
pesquisas nos próximos anos da mesma forma que gerou no passado, porém a
proposta de política econômica derivada do diagnóstico de dominância fiscal é
assunto urgente que não pode esperar pelos debates acadêmicos. Neste post vou
tentar explicar o que é dominância fiscal e comentar a proposta de retomar um
regime de câmbio fixo ou de bandas cambiais para controlar a inflação. Para
explicar dominância fiscal vou ter de fazer uma incursão no estranho mundo dos
macroeconomistas, se o leitor não quer se arriscar a perder a fé nos debates
sobre política econômica talvez seja prudente pular os próximos parágrafos e ir
direto para a parte que falo da política econômica (sexto parágrafo).
Comecemos nossa descida ao mundo da macroeconomia imaginando
uma economia que consiste em um sujeito isolado que tem acesso a um único bem
que serve para consumir e investir, se você não se sentiu bem com esta
possibilidade ainda é tempo de considerar o conselho no final a parágrafo
anterior e pular para a parte de política econômica. Para ajudar a imaginar o
exemplo o leitor pode pensar em Robson Crusoé ou Chuck Noland preso na ilha
deserta e vivendo à base de milho, parte do milho ele come (consumo) e parte
ele planta para a próxima colheita (investimento), como ele faz para plantar
sem possuir sequer uma pá é assunto para outras conversas. Tudo que o pobre
naufrago tem a decidir é o quanto da sua riqueza ele vai usar para atender sua
satisfação (o milho que vai comer) e o quanto ele vai transferir para o futuro
(o milho que vai plantar), quanto mais ele comer menos milho terá no futuro,
todas as transações dele com ele mesmo (eu avisei!) são feitas e contabilizadas
em grãos de milhos.
Suponha agora que nessa ilha chegou uma entidade chamada
governo. Esta entidade cria um pedaço de papel pintado que é chamado de moeda,
a tal moeda não serve nem para comer e nem para plantar, porém por alguma razão
o naufrago aceita fazer transações (!!)com a tal moeda e expressar o valor do
milho na tal moeda. No lugar de destinar tantos quilos de milho para consumo e
outros tantos para investimento o naufrago agora diz que vai destinar tantas
unidades de moeda para consumo e outras tantas para investimento. Para fazer
tudo mais concreto suponha que a todo momento existem quatro vezes mais moedas
do que quilos de milho, ou seja, se existirem dez quilos de milho então existem
quarenta moedas, sendo assim é natural que um quilo de milhos valha quatro
unidades de moeda (falar de natural em um mundo assim beira a loucura, mas eu
alertei). Se em determinado ano o naufrago colhe cem quilos de milho, come
sessenta quilos e planta quarenta quilos podemos dizer que o produto da economia
foi de 400 unidades de moeda, o consumo foi de 240 unidades de moeda e o
investimento foi de 160 unidades de moeda.
Agora que temos uma economia monetária passemos ao próximo
passo. O governo pega dinheiro emprestado com o náufrago. Para manter o exemplo
suponha que o náufrago produziu o equivalente a 400 unidades de moeda, consumiu
240 unidades moeda, investiu 100 unidades de moeda e emprestou 60 unidades de
moeda ao governo. De forma alternativa poderíamos dizer que o náufrago colheu
100 quilos de milhos, comeu 60 quilos, plantou 25 quilos e emprestou 15 quilos
ao governo. Notem que a diferença é na forma como os valores são expressos, ocorre
que para chegar até a dominância fiscal forma importa, e muito. Na segunda
forma, a dos quilos, também conhecida como forma real não há espaço para dominância
fiscal, se as transações são todas realizadas e contabilizadas em quilos de
milho o governo vai ter de arranjar um jeito de devolver os 15 quilos de milho,
muito provavelmente taxando o coitado do náufrago. Na primeira forma, a das
unidades monetárias, também conhecida como nominal existe uma alternativa a
taxar o náufrago. Como o governo está devendo em unidade de moeda e o governo
tem o poder de criar moeda então o governo pode criar 60 unidades de moeda e
pagar pelo milho que tomou emprestado. Entretanto, ao fazer isso, o governo muda
a relação entre unidades de moeda e quilos de milho, se antes tínhamos 100
quilos de milho e 400 unidades de moeda agora vamos ter os mesmos 100 quilos de
milho, porém existirão 460 unidades de moeda. Como consequência o quilo de
milho que custava 4 unidades de moeda passará a custar 4,60 unidades de moeda.
Chegamos assim em uma das mais tradicionais teorias de inflação conhecida como
Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), segundo tal teoria o nível de preços é proporcional
à quantidade de moeda existente e a inflação será dada pela variação na
quantidade de moeda.
Para chegar na dominância fiscal temos de ir além, alguns diriam
ficar aquém, da TQM. Suponha que o náufrago perceba que o governo não tem como
pagar a dívida, talvez porque o governo fique envergonhado de cobrar impostos
do náufrago ou talvez porque o náufrago tenha um arco melhor que o do governo,
não importa. Sabendo que o governo não tem como conseguir milho para pagar a
dívida o náufrago passa a considerar duas hipóteses: o governo vai dar um
calote ou o governo vai fazer moeda para pagar a dívida. No nosso exemplo as
duas hipóteses têm o mesmo final e o náufrago perde os 15 quilos de milho que
emprestou para o governo. No mundo real não pagar a dívida costuma ter efeitos
bem mais danosos do que imprimir moeda, sendo assim vamos supor que o náufrago
acredita que o governo vai pagar a dívida imprimindo moeda. Como nosso herói é
náufrago mais não é bobo ele faz a conta que fizemos acima e define o preço do
quilo de milho como 4,60 unidades de moeda. Sendo assim mesmo que o governo não
tivesse pretensão de emitir moeda, talvez por considerar o calote ou talvez por
ter conseguido um arco melhor ou um rifle, ocorrerá o aumento de preços. Ao
contrário do previsto na TQM onde o aumento de preços ocorre por conta da
política monetária temos agora um caso onde o aumento de preços foi causado
pela dívida pública, ou seja, pelo lado fiscal. Quando isso ocorre dizemos que
a economia está em dominância fiscal. Como de costume quando o assunto é
macroeconomia existem debates intenso a respeito da possibilidade prática e
teórica de ocorrer casos onde o lado fiscal determine os preços, não vou entrar
o debate, para o leitor interessado deixo dois textos avaliando a possibilidade
de dominância fiscal no Brasil (link
aqui e
aqui) e dois textos criticando
teoricamente a possibilidade da dívida pública determinar preços (link
aqui e
aqui).
Passemos agora à questão da política econômica. Em condições
normais o combate à inflação é feito por meio da política monetária. Quando o
governo entende que é o momento de reduzir a inflação o BC reduz o ritmo de
crescimento da moeda, na prática isso equivale a vender títulos no mercado de
forma que o BC entrega títulos e recolhe as moedas que recebeu em troca dos
títulos. Para que as pessoas queiram títulos o BC deve tornar os títulos mais
atrativos o que, via de regra, significa aumentar juros. Sendo assim a política
monetária é feita por meio de juros, no lugar de aumentar e diminuir a taxa de
crescimento da moeda os governos pelo mundo, Brasil inclusive, reduzem e
aumentam alguma taxa de juros de referência. Isso tudo funciona muito bem na
TQM e outras condições onde não exista dominância fiscal, na presença de dominância
fiscal a coisa fica mais complicada. Quando o BC aumenta os juros a dívida
também aumenta, se é a dívida que determina os preços então o aumento da dívida
levará a um aumento dos preços. Em um certo sentido a dominância fiscal é uma
sinuca de bico cujo a única saída é cortar gastos deforma a reduzir a dívida. O
que acontece quando o governo não dá sinais que vai cortar gastos?
É nesse ponto que entra a proposta da Mônica de Bolle de
usar o câmbio para controlar a inflação. Ao atrelar o real ao dólar o governo
impediria o aumento excessivo dos preços em reais, como fixar o câmbio costuma
ser perigoso a proposta é fixar bandas móveis para o câmbio, se funcionar a desvalorização
aceita para o valor máximo do câmbio funcionaria como teto para inflação. Se o
BC avisa que permitirá uma desvalorização de no máximo 5% em um ano então as
pessoas podem aceitar reajustar seus preços em 5% ou até menos a depender das
condições de mercado. Para controlar o valor do câmbio o BC faria uso das
reservas que possui. Dois pontos devem ficar claros: a proposta coloca um teto
e um piso no câmbio e, mais importante, a proposta não é igual a infame banda
diagonal endógena, de fato existem bandas diagonais, mas, se bem entendi a
proposta, as bandas são exógenas e isso faz toda a diferença.
Qual o problema com a proposta? No lado mais acadêmico não sou
exatamente um fã da teoria fiscal dos preços, a ideia que a dívida pública
determina preços, e sem tal teoria o argumento não se sustenta. Não é que eu
afirme que não existe dominância fiscal ou que eu seja um monetarista radical,
menos do que defender uma teoria nessa nova versão do debate entre monetaristas
e fiscalistas (sei que estou provocando!) fico na posição de quem não confia em
nenhuma das duas teorias. A verdade é que os modelos macroeconômicos não estão
desenvolvidos o suficiente para explicar fenômenos monetários de forma
confiável. O “modelo” que usei para explicar dominância fiscal não é tão
diferente dos modelos usados por macroeconomistas na academia e em bancos
centrais. Como confiar nas previsões sobre inflação feitas por um modelo onde
moeda não faz sentido? Para os que se interessaram pelo o assunto recomendo um
blog (link
aqui) e um artigo introdutório (link
aqui). Não vou negar que em
termos práticos eu acabe ficando do lado dos que querem usar política
monetária, porém meus motivos estão mais associados a uma certa prudência conservadora
do que a adesão a determinada teoria.
Para além do lado acadêmico tenho preocupações práticas com
a proposta. No post anterior argumentei que o uso de reservas na Rússia não conseguiu
segurar desvalorização do rublo (link
aqui). Por que acreditar que no Brasil
seria diferente? Caso as reservas não segurem o câmbio podemos entrar no pior
dos mundos, forçado a defender o câmbio o Banco Central terá de aumentar juros
para atrair capitais e impedir que o câmbio passe do teto estipulado para a
banda. A experiência dos anos 90 mostra que quando o BC está obrigado a
defender o câmbio as elevações de juros podem ser mais abruptas e maiores do
que as elevações de juros necessárias para controlar a inflação. A verdade é
que qualquer política que não venha acompanhada de um ajuste fiscal de médio e
longo prazo estará fadada ao fracasso, não que tal ajuste vá resolver todos os
nossos problemas, quem acompanha o blog sabe que na minha avaliação os grandes
problemas do Brasil não foram causados por questões fiscais, mas sem tal ajuste
será impossível mesmo pensar na solução dos grandes problemas. Talvez a
economia brasileira atual mude o sentido da frase de Keynes que no longo prazo
estaremos todos mortos....