Hoje foi noticiado que o governo classificou como sigilosos
os estudos que dão suporte aos números da reforma da previdência (link aqui), é um erro
grave. Por certo existem vários motivos relacionados à transparência e a
questões políticas para justificar a gravidade do erro, mas não são esses os pontos
que vou tratar nesse post. Da mesma forma não vou entrar em impactos marginais
de determinados parâmetros ou mesmo nas questões distributivas da reforma,
tenho certeza que outros farão questionamentos melhores que os meus durante a
semana. Vou tratar de uma questão que me incomoda desde o começo: a transição
para o regime de capitalização.
Em várias oportunidades Paulo Guedes falou que pretende
economizar um trilhão com a reforma e que esse trilhão será usado para
financiar a transição para um regime de capitalização. No regime de
capitalização cada um contribui para sua própria conta e recebe uma
aposentadoria compatível com o que contribuiu durante o tempo que trabalhou
mais os juros que essas contribuições renderam, já no sistema atual os que
estão trabalhando pagam as aposentadorias dos que estão inativos. De saída o regime
de capitalização coloca questões importantes a respeito de como será feita a
gestão das poupanças para aposentadoria e como serão os seguros relacionados a
essas poupanças. Quem lembra do drama da Encol pode imaginar qual será o
impacto na sociedade em caso de quebra de um fundo que administre a poupança
para aposentadoria de um milhão se pessoas. Tanto a gestão dos fundos quanto a questão dos
seguros possuem soluções interessantes e razoavelmente conhecidas, da minha parte
lamento a que esses temas não sejam discutidos, mas, sob protestos, aceito deixar
a discussão para depois da aprovação da reforma. A final a proposta atual se
limite a autorizar, não implementa o regime de capitalização.
Se problemas técnicos como gestão e seguros podem ser
colocados em segundo plano no momento a questão da transição e do impacto do
regime de capitalização na economia não podem, ambas estão no núcleo da
reforma. A aposta de Paulo Guedes, conforme ele mesmo deixou claro na Globonews, é
que a transição para capitalização, que será financiada com um trilhão poupado
com a reforma, vai gerar um crescimento de renda, emprego e poupança que
resolverá boa parte de nossos problemas. Salvo engano o ministro falou que com
a reforma a taxa de crescimento sairia de 0,6% nos últimos anos para mais de
3%. De fato, com uma taxa de crescimento de 3% resolveríamos boa parte de
nossos problemas de financiamento do setor público. Porém duas questões
precisam ser respondidas: (i) um trilhão é suficiente para financiar a transição? e (ii) o regime de capitalização é capaz de multiplicar por cinco nossa taxa de
crescimento?
A primeira questão foi tratada pelo Alexandre Schwartsman no
excelente blog Mão Visível (link aqui). A conclusão é que uma transição onde a
partir do dia do anúncio da reforma todos os jovens entrassem no sistema novo não
é compatível com o um trilhão que o governo vai poupar, o custo seria muito
maior e fazer isso levaria a um aumento do déficit público. Isso ocorre porque
os jovens que entram no novo regime não vão mais contribuir para financiar as aposentadorias
que já estão sendo pagas, ou seja, nas primeiras décadas haverá uma queda de
receita sem queda das despesas e a diferença é maior que o trilhão que será
economizado. Não vou chover no molhado e repetir a análise do Schwartsman, quem
se interessou recomendo ler o texto dele.
A segunda pergunta diz respeito ao impacto do regime de capitalização
na economia, para tratar do assunto vou recorrer a literatura sobre o tema. A
primeira referência para quem quer estudar esse assunto é a série de trabalhos do
professor Flávio Ataliba Barreto sobre o tema, aqui vou usar um dele e do
professor Luiz Guilherme Schymura que foi publicado na Revista Estudos Econômicos
em 2001 (link aqui). No trabalho os autores fazem várias simulações sobre o impacto
de uma mudança para um regime de capitalização considerando várias formas de financiamento
da transição.
O primeiro grupo de simulação avalia a transição de um
regime não fundado, como o nosso atual, para regimes parcialmente ou totalmente
fundados. Se a transição for totalmente financiada com imposto sobre a renda a
taxa de juros real cairia de 12%, valor da época, para 10% em um regime
totalmente fundado, 11% em um regime com 75% de capitalização e ficaria em 12%
com um regime com 25% de capitalização. A taxa de investimento subiria de 19% para
23% com 100% de capitalização, com 25% de capitalização subiria para apenas
20%. Dado o alto custo da transição o financiamento apenas por meio de impostos
é praticamente impossível, se considerarmos a promessa de aumentar a carga
tributária fica impossível. Fazendo o financiamento apenas com emissão de
dívida a taxa de juros sobre de 12% para 14% nos casos de 100% e 25% de
capitalização, com 50% de capitalização sobre para 17%. A taxa de investimento cai em todos os casos,
maior queda é de 19% para 16% e ocorre com 50% de capitalização, as menores
quedas são de 19% para 18% nos casos de 100% e 25% de capitalização. Nas
simulações da transição com financiamento misto, dívida e impostos, a taxa de
juros aumenta e a taxa de investimento fica estável. Fica claro que o impacto depende
do financiamento da transição e em nenhum dos casos é espetacular.
Em um segundo grupo de simulações os autores supõem que o
governo coloca um benefício mínimo de no valor de 30% do salário média da
economia. A maior queda de juros ocorre com financiamento feito apenas com
imposto, 12% para 11%, esse também é o caso onde ocorre a maior elevação da
taxa de investimento, 19% para 22%. Em todos os outros casos ocorre elevação
(ou estabilidade) da taxa de juros e da taxa de investimento. Esses efeitos são
de longo prazo, no curto prazo os efeitos são ainda mais complicados de avaliar
e podem ser bem mais negativos.
Outro trabalho relevante para discussão é o do Osmar Perazzo
Lannes Junior também com o professor Luiz Guilherme Schymura (link aqui). Nesse
trabalho os autores analisaram os efeitos da transição para um regime de
capitalização em uma economia onde existe restrição ao crédito. A conclusão é
que em caso de financiamento por meio de dívida pública o sistema de repartição
é melhor que o de capitalização. Mais uma vez a forma de financiar a transição
importa e os efeitos da mudança de regime não são tão impressionantes.
Em 2004 o Sergio Guimarães Ferreira publicou um artigo na
Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde analisa os efeitos da transição
para um regime de capitalização. O resultado mais uma vez depende da forma de
transição, no caso maior efeito sobre o PIB o crescimento induzido pela reforma
é de 8% em cindo anos e 11% em dez anos, ocorre que esse é o caso da transição
pura e simples que comentamos antes e que é inviável para o Brasil. Se o financiamento
for com taxas sobre consumo o crescimento induzido pela reforma é de 3% em
cinco anos e 4% em dez anos, se for com taxas sobre o trabalho não há
crescimento induzido pela reforma nos primeiros dez anos, com imposto de renda
o crescimento é de 1% em dez anos e assim segue. Nada sugere um boom de
crescimento como consequência da reforma.
Em 2006 os professores Vladimir Kühl Teles e Joaquim P.
Andrade publicaram um artigo na Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde
colocam formação de capital humano no modelo para analisa melhor o impacto de
reformas previdenciárias e tributária no crescimento. A conclusão deles é:
“Tais resultados nos fornecem uma lição geral de que as reformas não garantem aumento de crescimento nem tampouco queda nos juros, porém criam condições para que estes eventos tornem-se possíveis. Logo, as reformas seriam uma condição necessária, mas não suficiente para a retomada do crescimento econômico ou para a queda da taxa de juros da economia.”
Outros autores tratam do tema, eu tenho um trabalho de 2003 com
a professora Mirta Bugarin também publicado na Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde
comparamos regimes de capitalização e repartição em um modelo com restrições ao
crédito e choques idiossincráticos. Em um dos casos analisados encontramos
impactos um pouco maiores que a média da literatura, mas nada tão impressionante
como o sugerido por Paulo Guedes.
A mensagem que eu espero ter passado com esse post é que
quando falamos em transição para regime de capitalização a forma de financiar a
transição importa muito, ao negar essa discussão o governo torna impossível a
defesa da mudança de regime mesmo para os que, como eu, acreditam que a mudança
é positiva. Fica pior, ao sugerir um custo de transição menor que o estimado por
boa parte dos analistas e um impacto na economia muito menor do que o encontrado
na literatura o governo deixa uma pulga atrás da orelha de quem acompanha o
debate sobre previdência. É possível que a excelente equipe econômica montada
por Paulo Guedes tenha argumentos robustos para chegar em resultados tão diferentes,
todos os artigos que citei nesse post tem mais de dez anos e neste tempo os
modelos evoluíram e a realidade da economia brasileira mudou um bocado. Ao
mostrar os modelos e as simulações usados para avaliar o impacto da reforma e
explicitar as hipóteses para transição o governo tiraria a pulga de trás da
orelha e aumentaria a confiança na reforma, ao tornar os dados sigilosos o
governo consegue o efeito oposto.