domingo, 21 de abril de 2019

Impactos na economia da transição para um regime de capitalização


Hoje foi noticiado que o governo classificou como sigilosos os estudos que dão suporte aos números da reforma da previdência (link aqui), é um erro grave. Por certo existem vários motivos relacionados à transparência e a questões políticas para justificar a gravidade do erro, mas não são esses os pontos que vou tratar nesse post. Da mesma forma não vou entrar em impactos marginais de determinados parâmetros ou mesmo nas questões distributivas da reforma, tenho certeza que outros farão questionamentos melhores que os meus durante a semana. Vou tratar de uma questão que me incomoda desde o começo: a transição para o regime de capitalização.

Em várias oportunidades Paulo Guedes falou que pretende economizar um trilhão com a reforma e que esse trilhão será usado para financiar a transição para um regime de capitalização. No regime de capitalização cada um contribui para sua própria conta e recebe uma aposentadoria compatível com o que contribuiu durante o tempo que trabalhou mais os juros que essas contribuições renderam, já no sistema atual os que estão trabalhando pagam as aposentadorias dos que estão inativos. De saída o regime de capitalização coloca questões importantes a respeito de como será feita a gestão das poupanças para aposentadoria e como serão os seguros relacionados a essas poupanças. Quem lembra do drama da Encol pode imaginar qual será o impacto na sociedade em caso de quebra de um fundo que administre a poupança para aposentadoria de um milhão se pessoas.  Tanto a gestão dos fundos quanto a questão dos seguros possuem soluções interessantes e razoavelmente conhecidas, da minha parte lamento a que esses temas não sejam discutidos, mas, sob protestos, aceito deixar a discussão para depois da aprovação da reforma. A final a proposta atual se limite a autorizar, não implementa o regime de capitalização.

Se problemas técnicos como gestão e seguros podem ser colocados em segundo plano no momento a questão da transição e do impacto do regime de capitalização na economia não podem, ambas estão no núcleo da reforma. A aposta de Paulo Guedes, conforme ele mesmo deixou claro na Globonews, é que a transição para capitalização, que será financiada com um trilhão poupado com a reforma, vai gerar um crescimento de renda, emprego e poupança que resolverá boa parte de nossos problemas. Salvo engano o ministro falou que com a reforma a taxa de crescimento sairia de 0,6% nos últimos anos para mais de 3%. De fato, com uma taxa de crescimento de 3% resolveríamos boa parte de nossos problemas de financiamento do setor público. Porém duas questões precisam ser respondidas: (i) um trilhão é suficiente para financiar a transição? e (ii) o regime de capitalização é capaz de multiplicar por cinco nossa taxa de crescimento?

A primeira questão foi tratada pelo Alexandre Schwartsman no excelente blog Mão Visível (link aqui). A conclusão é que uma transição onde a partir do dia do anúncio da reforma todos os jovens entrassem no sistema novo não é compatível com o um trilhão que o governo vai poupar, o custo seria muito maior e fazer isso levaria a um aumento do déficit público. Isso ocorre porque os jovens que entram no novo regime não vão mais contribuir para financiar as aposentadorias que já estão sendo pagas, ou seja, nas primeiras décadas haverá uma queda de receita sem queda das despesas e a diferença é maior que o trilhão que será economizado. Não vou chover no molhado e repetir a análise do Schwartsman, quem se interessou recomendo ler o texto dele.

A segunda pergunta diz respeito ao impacto do regime de capitalização na economia, para tratar do assunto vou recorrer a literatura sobre o tema. A primeira referência para quem quer estudar esse assunto é a série de trabalhos do professor Flávio Ataliba Barreto sobre o tema, aqui vou usar um dele e do professor Luiz Guilherme Schymura que foi publicado na Revista Estudos Econômicos em 2001 (link aqui). No trabalho os autores fazem várias simulações sobre o impacto de uma mudança para um regime de capitalização considerando várias formas de financiamento da transição.

O primeiro grupo de simulação avalia a transição de um regime não fundado, como o nosso atual, para regimes parcialmente ou totalmente fundados. Se a transição for totalmente financiada com imposto sobre a renda a taxa de juros real cairia de 12%, valor da época, para 10% em um regime totalmente fundado, 11% em um regime com 75% de capitalização e ficaria em 12% com um regime com 25% de capitalização. A taxa de investimento subiria de 19% para 23% com 100% de capitalização, com 25% de capitalização subiria para apenas 20%. Dado o alto custo da transição o financiamento apenas por meio de impostos é praticamente impossível, se considerarmos a promessa de aumentar a carga tributária fica impossível. Fazendo o financiamento apenas com emissão de dívida a taxa de juros sobre de 12% para 14% nos casos de 100% e 25% de capitalização, com 50% de capitalização sobre para 17%.  A taxa de investimento cai em todos os casos, maior queda é de 19% para 16% e ocorre com 50% de capitalização, as menores quedas são de 19% para 18% nos casos de 100% e 25% de capitalização. Nas simulações da transição com financiamento misto, dívida e impostos, a taxa de juros aumenta e a taxa de investimento fica estável. Fica claro que o impacto depende do financiamento da transição e em nenhum dos casos é espetacular.

Em um segundo grupo de simulações os autores supõem que o governo coloca um benefício mínimo de no valor de 30% do salário média da economia. A maior queda de juros ocorre com financiamento feito apenas com imposto, 12% para 11%, esse também é o caso onde ocorre a maior elevação da taxa de investimento, 19% para 22%. Em todos os outros casos ocorre elevação (ou estabilidade) da taxa de juros e da taxa de investimento. Esses efeitos são de longo prazo, no curto prazo os efeitos são ainda mais complicados de avaliar e podem ser bem mais negativos.

Outro trabalho relevante para discussão é o do Osmar Perazzo Lannes Junior também com o professor Luiz Guilherme Schymura (link aqui). Nesse trabalho os autores analisaram os efeitos da transição para um regime de capitalização em uma economia onde existe restrição ao crédito. A conclusão é que em caso de financiamento por meio de dívida pública o sistema de repartição é melhor que o de capitalização. Mais uma vez a forma de financiar a transição importa e os efeitos da mudança de regime não são tão impressionantes.

Em 2004 o Sergio Guimarães Ferreira publicou um artigo na Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde analisa os efeitos da transição para um regime de capitalização. O resultado mais uma vez depende da forma de transição, no caso maior efeito sobre o PIB o crescimento induzido pela reforma é de 8% em cindo anos e 11% em dez anos, ocorre que esse é o caso da transição pura e simples que comentamos antes e que é inviável para o Brasil. Se o financiamento for com taxas sobre consumo o crescimento induzido pela reforma é de 3% em cinco anos e 4% em dez anos, se for com taxas sobre o trabalho não há crescimento induzido pela reforma nos primeiros dez anos, com imposto de renda o crescimento é de 1% em dez anos e assim segue. Nada sugere um boom de crescimento como consequência da reforma.

Em 2006 os professores Vladimir Kühl Teles e Joaquim P. Andrade publicaram um artigo na Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde colocam formação de capital humano no modelo para analisa melhor o impacto de reformas previdenciárias e tributária no crescimento. A conclusão deles é:

“Tais resultados nos fornecem uma lição geral de que as reformas não garantem aumento de crescimento nem tampouco queda nos juros, porém criam condições para que estes eventos tornem-se possíveis. Logo, as reformas seriam uma condição necessária, mas não suficiente para a retomada do crescimento econômico ou para a queda da taxa de juros da economia.”

Outros autores tratam do tema, eu tenho um trabalho de 2003 com a professora Mirta Bugarin também publicado na Revista Brasileira de Economia (link aqui) onde comparamos regimes de capitalização e repartição em um modelo com restrições ao crédito e choques idiossincráticos. Em um dos casos analisados encontramos impactos um pouco maiores que a média da literatura, mas nada tão impressionante como o sugerido por Paulo Guedes.

A mensagem que eu espero ter passado com esse post é que quando falamos em transição para regime de capitalização a forma de financiar a transição importa muito, ao negar essa discussão o governo torna impossível a defesa da mudança de regime mesmo para os que, como eu, acreditam que a mudança é positiva. Fica pior, ao sugerir um custo de transição menor que o estimado por boa parte dos analistas e um impacto na economia muito menor do que o encontrado na literatura o governo deixa uma pulga atrás da orelha de quem acompanha o debate sobre previdência. É possível que a excelente equipe econômica montada por Paulo Guedes tenha argumentos robustos para chegar em resultados tão diferentes, todos os artigos que citei nesse post tem mais de dez anos e neste tempo os modelos evoluíram e a realidade da economia brasileira mudou um bocado. Ao mostrar os modelos e as simulações usados para avaliar o impacto da reforma e explicitar as hipóteses para transição o governo tiraria a pulga de trás da orelha e aumentaria a confiança na reforma, ao tornar os dados sigilosos o governo consegue o efeito oposto.


quarta-feira, 10 de abril de 2019

Projeções do FMI para dívida pública no Brasil e em países da América Latina


O FMI divulgou a nova versão de sua base de dados com projeções até 2024 (link aqui). É uma boa oportunidade para dar uma olhada no que o FMI projeta para o Brasil e outros países, vou começar pela dívida pública e em outros posts falo de outras variáveis. Sei que alguns colegas de profissão gostam de comparar a dívida pública do Brasil com a de países ricos como se fizesse algum sentido comparar dívida de pobres, vá lá, emergentes, com dívida de ricos. Já tratei da questão de comparar nossa dívida com a de países ricos em outros posts (quem se interessar pode checar aqui, aqui e aqui), nesse post vou me limitar a comparar a dívida pública como proporção do PIB no Brasil e outros países da América Latina.

Para não ficar com gráficos de difícil leitura vou fazer as comparações em grupos de três, Brasil e mais dois. Para começar vou pegar o Chile, que é a referência de país ajustado do continente, e o México que é um país grande, com mais cem milhões de habitantes e que guarda algumas semelhanças importantes com o Brasil. A figura abaixo mostra a dívida pública como proporção do PIB no Brasil, no Chile e no México. Repare que a dívida do Brasil é bem mais alta como proporção do PIB do que as dívidas do México e do Chile, pelas projeções do FMI chegaremos a 2024 com uma dívida de 97,6% do PIB contra 28,3% no Chile e 54,3% no México.




No segundo exercício a comparação foi com a Colômbia e o Peru, mas uma vez estamos bem mais endividados que os outros países. A previsão do FMI é que o Pero chega a 2024 com uma dívida de 25% do PIB e a Colômbia com uma dívida de 40% do PIB, no Brasil, como já vimo a projeção é de 97,6% do PIB.




Para não ser acusado de trapacear na escolha dos países de comparação resolvi facilitar e colocar Argentina e Equador no próximo grupo, assim como o Brasil os dois países tiveram problemas com governos populistas de esquerda e a Argentina é famosa por ter problemas periódicos com a dívida pública. De fato, em 2018 a dívida pública da Argentina foi de 86,3% do PIB o que não é muito longe dos 87,9% do Brasil no mesmo ano. Porém, ao contrário do que acontece com o Brasil, as projeções do FMI apontam para uma trajetória de queda da dívida como proporção do PIB por lá. Em 2024 o FMI projeta uma dívida de 59,5% do PIB para Argentina, por aqui, como sabemos, a projeção é de 97,6%. No Equador a dívida deve subir mais um pouco chegando a 49,2% do PIB em 2019, mas depois caindo para 33,4% em 2024.




Eu poderia fazer mais grupos, mas não vale à pena, creio que o leitor já entendeu a mensagem: nossa dívida pública é muito alta para nossos padrões. Aos curiosos informo que as projeções do FMI são que a dívida como proporção do PIB em 2024 será de 58,3% na Bolívia, 22,4% no Paraguai e 71,3% no Uruguai. A bem da verdade devo dizer que o Brasil não foi o mais endividado dos países que pesquisei, tem um que a dívida chega a 272,8% do PIB em 2024. Não é preciso bola de cristal para adivinhar que estou falando da Venezuela. A figura abaixo mostra a dívida como proporção do PIB no Brasil e na Venezuela, repare como a dívida cresce rápido uma vez que começa o desastre. Até 2017 a Venezuela tinha uma dívida de 33,1% do PIB, mas como é impossível manter a sujeira de baixo do tapete indefinidamente em 2018 a dívida já era de 175% do PIN e em 2019 a previsão é de 214,5%.




Por certo não estamos na direção de uma trajetória explosiva como a da Venezuela, pelo menos não há indícios disso no momento, mas nossa situação é delicada e exige medidas drásticas. O déficit primário tem que ser reduzido nos próximos anos sob pena de perdermos o controle da dívida e agravar ainda mais a crise desta década. A reforma da previdência é um passo fundamental, mas tem que ser uma reforma que traga benefícios no curto prazo, nesse sentido considero um erro usar o que for poupado com a reforma para financiar um regime de capitalização. Precisamos de usar tudo que conseguirmos poupar na redução da dívida, se Paulo Guedes quer usar um trilhão para financiar a mudança de regime previdenciários então vamos ter de arrumar outro trilhão para segurar a dívida. Por importante que seja a reforma da previdência, não dá para não ter um Plano B em o caso da reforma demorar muito ou não sair (espero que não seja o caso). Esse Plano B pode incluir um programa mais ousado de privatizações, incluindo venda de ações da Petrobras; Caixa e BB, cobrança do dinheiro do Tesouro que está no BNDES, BB e Caixa; cortes de gasto mais duros que os exigidos pela lei do teto; adiamento por tempo indefinido da reestruturação da carreira dos militares, congelamento de salários de servidores e outras medidas do tipo. Tudo isso pode parecer muito duro para um país em crise, mas, acredite, é menos cruel que uma dívida fora de controle.