domingo, 31 de maio de 2015

Porque critico o ajuste de Dilma, Levy e Tombini.

Para que serve um ajuste fiscal? Para que serve o aperto da política monetária? Creio que as respostas a essas perguntas podem ajudar a entender melhor o atual debate econômico. A política de ajuste da atual equipe econômica tem sido alvo de críticas vindas de vários grupos de economistas. Um destes grupos é o mesmo que elogiava a política econômica do primeiro mandato de Dilma e saudou a Nova Matriz Econômica como o caminho para a retomada do crescimento. Creio que essa turma faria melhor se tentasse explicar porque no lugar de crescimento a combinação de desvalorização do câmbio, redução dos juros, expansão fiscal e ativismo do BNDES nos colocou na pior crise econômica das últimas décadas. De preferência uma explicação que não apelasse para uma crise econômica que por alguma razão não explicada faz do Brasil uma de suas vítimas preferidas. Porém existe um outro grupo, do qual pretendo fazer parte, que apontou a adoção da Nova Matriz como um erro, cantou a bola da crise que de fato veio e agora precisa se esforçar para explicar porque não aprova o ajuste de Dilma, Levy e Tombini.

Não é uma explicação simples, os problemas da atual política econômica não são triviais como eram os erros da Nova Matriz, pelo contrário, é bem provável que economistas que reconhecem a necessidade do ajuste e criticam a política de Levy estivessem tomando medidas bem parecidas com as que Levy está tomando se tivessem no lugar dele. Naturalmente também é possível imaginar que muitos de tais críticos, exatamente por saber das limitações impostas à Levy, não aceitassem estar no lugar dele, mas deixemos isso de lado, não é objetivo do post especular a respeito das motivações de Levy ou de outros economistas. O que quero é tentar explicar as diferenças conceituais entre o ajuste que está sendo feito e o ajuste que eu considero que deveria ser feito. Para isso retorno as perguntas que abriram o post.

Um ajuste fiscal pode ser feito para ajustar o caixa do governo, quando o gasto está muito alto e as alternativas de financiamento por meio de dívida começam a ficar difíceis um governo pode ser forçado a uma combinação de corte de gastos e aumento de impostos que é chamada de ajuste fiscal. O quanto do ajuste virá de cortes de gastos e o quanto virá de elevação dos impostos depende de vários fatores, dentre os quais destaco:
(i)                  O desenho da política econômica; via de regra economistas de tradição clássica/neoclássica preferem cortar gastos e economistas de tradição keynesiana preferem aumentar impostos.
(ii)                A orientação política do governo; governos de direita preferem cortar gastos, com a possível exceção de gastos militares, e governo de esquerda preferem aumentar impostos, de preferência sobre os mais ricos.
(iii)               Força política do governo; quando o governo é fraco as decisões de corte de gastos e aumento de impostos passam a depender dos humores dos congressistas.
Na perspectiva de ajustar o caixa não importa muito o efeito do ajuste na economia, o que importa é o equilíbrio fiscal. Creio que é essa a orientação do atual ajuste brasileiro, não vou arriscar dizer se tal orientação foi escolhida pela equipe econômica ou foi uma imposição do governo. O fato é que todas as justificativas para o ajuste fiscal vinda da equipe econômica fazem referências às necessidades de caixa ou, quando muito, falam de recuperar a confiança do mercado na solidez fiscal do Brasil, o que não deixa de ser um apelo ao equilíbrio de caixa.

Porém existem outras justificativas para um ajuste fiscal. A primeira que listo é uma justificativa moral que costuma ser levantada por pensadores liberais, a ideia é que não é justo que o governo se aproprie de parte significativa da renda das pessoas e parte do princípio que o indivíduo é o melhor juiz de seus próprios gastos. Perceba que tal justificativa independe de equilíbrio de caixa, mesmo que o déficit público fosse zero seria possível argumentar seguindo esta linha. Gosto e concordo com tal argumento, mas não vou segui-lo, o leitor pode encontrar pela internet vários sites liberais que explicam e defendem o argumento de forma melhor do que eu faria. Sendo assim passo a segunda justificativa que não é necessariamente liberal, é uma justificativa macroeconômica.

Em livros de macroeconomia um ajuste fiscal não costuma ser justificado por necessidades de caixa do governo, de fato em vários modelos a sustentabilidade das contas públicas sequer é mencionada, um exemplo é o modelo IS-LM que é uma forma muito popular de introduzir políticas monetária e fiscal em uma estrutura lógica de inspiração keynesiana. Se a questão fiscal (entendida como equilíbrio das contas públicas) nem aparece em tais modelo qual a justificativa que dão para um ajuste fiscal? Retrair a demanda agregada, ou seja, reduzir a demanda por todos os bens e serviços em uma economia. Mas isso não equivale a causar uma recessão? Não necessariamente, em modelos de demanda ou de inspiração keynesiana, como o IS-LM, retrair a demanda agregada leva a uma recessão, em modelo de oferta ou de inspiração clássica retrair a demanda agregada não leva a uma recessão, em modelos mistos pode ou não levar a uma recessão.

Está confuso? Macroeconomia é meio confusa mesmo, mas o ponto central é saber a razão de implementar uma política que pode levar a uma recessão. A resposta é que em todas as principais linhas de pensamento macroeconômico a retração da demanda agregada leva a uma redução da inflação. Sem demanda as firmas são obrigadas a reduzir preços para não ficar com estoques encalhados. Aqui entra o ponto central de minha crítica ao atual ajuste fiscal. Ao tomar medidas para atenuar a recessão tais como abrir nova fontes de recursos ao BNDES, mudar regras de compulsório para incentivar a compra da casa própria e mesmo anunciar planos bilionários de investimento vindos do exterior criando nos empresários uma expectativa de aumento da demanda o governo acaba por sabotar o ajuste. O resultado é que ou o ajuste acaba sendo mais duro do que o necessário ou não terá o efeito desejado sobre a demanda agregada e, portanto, sobre a inflação.
Raciocínio semelhante se aplica à política monetária. Elevar juros em um dia e estimular o endividamento no outro é quase uma crueldade. A ideia de elevar juros para combater a inflação é que com juros mais altos as famílias deixarão de comprar e desta queda de demanda virá a queda na inflação. Se apesar dos juros mais altos as famílias continuarem comprando então não vamos ter nem a redução da demanda agregada e nem a queda da inflação, por outro lado vamos ter famílias mais afundadas em dívidas.

A verdade é que nenhum governo gosta de aplicar medidas que retraem a demanda agregada e menos ainda se tal retração leva a uma recessão. Porém tais ajustes são necessários para evitar que a economia saia de controle e descambe para uma estagflação. No final da década de 1970 um ajuste era necessário, sem a pressão das ruas ou do Congresso o presidente Geisel e depois Figueiredo adiram o ajuste de forma irresponsável e jogaram à economia em uma crise que durou algumas décadas, como nem tudo é ruim de todo a crise facilitou o fim do regime militar. Ao que tudo indica a pressão das ruas e do Congresso impediram que Dilma adiasse ainda mais o ajuste (o episódio é um belo exemplo de como uma democracia pode ser mais capaz que uma ditadura de tomar decisões difíceis, mas isso é assunto para outro post), o fato é que o adiamento está cobrando seu preço, mas poderia ter sido muito pior. Quando Dilma reconheceu que fez de tudo e não tinha mais como evitar a crise ela pareceu ter entendido que é impossível evitar uma crise, porém, quando o segundo governo Dilma tenta amenizar os efeitos das medidas que se viu obrigado a tomar corre o risco de incorrer no mesmo erro do primeiro governo Dilma. A crise não é um efeito colateral do ajuste, a depender de como pensa o analista a crise decorre dos erros anteriores (é o que eu penso) ou a crise é forma como ajuste resolverá os atuais problemas. Em ambos os casos tentar evitar a crise é um erro.




sexta-feira, 29 de maio de 2015

Resultados do PIB para o primeiro trimestre de 2015: A crise é grave e está cada vez mais difícil culpar o resto do mundo

Conforme esperado o PIB brasileiro encolheu no primeiro trimestre de 2015. Na comparação do primeiro trimestre de 2015 com o último trimestre de 2014 a queda foi de 0,2%, em termos anualizados, como é feito nos EUA, a retração seria de 0,78%. Comentarei de forma mais detalhada os números que comparam o primeiro trimestre de 2015 com o primeiro trimestre de 2014, porém um dado que acontece tanto na comparação do primeiro trimestre de 2015 com o último de 2014 quanto na comparação do primeiro de 2014 com o primeiro de 2015 é que o único componente da demanda que aumentou no primeiro trimestre de 2015 foram as exportações de bens e serviços. Imagino que o dado seja um tanto quanto embaraçoso para os que insistem em culpar o resto do mundo por nossa crise.

Na comparação do primeiro trimestre de 2015 com o primeiro trimestre de 2014 a retração foi de 1,6%. É uma queda expressiva que fica ainda mais grave quando observamos a composição do PIB. Pelo lado da oferta o primeiro fato a ser destacado é que mais uma vez a agropecuário nos salvou de uma queda ainda maior no PIB, o setor cresceu 4% puxado principalmente pela soja cujo a quantidade produzida aumentou 10,6% e a área plantada aumentou 4,7%. A indústria teve uma queda de 3% e o setor de serviços teve uma retração de 1,2%. A retração de 3% da indústria são não foi maior por conta do crescimento de 12,8% na indústria extrativa mineral, a indústria de transformação teve uma retração de 7,0%, fica ainda pior, a indústria de máquinas e equipamentos aparece na lista de destaques negativos, o que sugere que não há sinais de recuperação do investimento. A construção civil teve uma queda de 2,9%. No setor de serviços a maior retração ficou no comércio (atacado e varejo) com queda de 6%.

A queda generalizada por vários setores da indústria e dos serviços mostra que não se trata de uma crise pontual causada por um colapso em setores específicos da economia, pelo contrário, é uma crise que está disseminada nos vários setores. A queda de 7% na indústria de transformação, menina dos olhos dos desenvolvimentistas e suposta beneficiaria da desvalorização do câmbio que ocorre desde 2011, é mais um atestado do fracasso da agenda de contrarreformas iniciada com o objetivo de retomar o crescimento por meio de estímulos à indústria de transformação. Da mesma forma a contração de 12% na produção e distribuição de eletricidade, gás e água atesta o fracasso da política energética do primeiro governo Dilma.

Pela ótica da despesa o consumo das famílias caiu 0,9% mostrando que a crise continua atingindo o bem-estar dos brasileiros, não se trata mais de uma “crise que só economistas enxergam”. A queda do investimento foi de 7,8% o que significa que o fim da crise ainda deve demorar, o fato da queda do investimento ter vindo acompanhada de queda na produção e na importação de máquinas e equipamentos reforça a tese que o fim da crise está longe por sinalizar que não há disposição de investir por parte dos empresários. O consumo do governo caiu em 1,5%. No setor externo as importações caíram 4,7% como consequência da desvalorização do câmbio e da retração da renda, se eu tivesse de arriscar um palpite diria que o segundo fator foi mais importante. O fato de máquinas e tratores bem como petróleo e carvão estarem entre os destaques negativos das importações reforça a tese que a crise ainda está longe do fim. As exportações aumentaram 3,2%, aqui há uma ironia: o governo tem insistido na tese que nossa crise é consequência de uma crise internacional, porém a demanda externa por nossos bens foi o único componente da despesa que subiu. Como não sou (muito) turrão registro que o destaque positivo para indústria têxtil deve ser feito do câmbio, os outros destaques positivos nas exportações (petróleo e carvão, siderurgia e metalurgia não ferrosos) me parecem relacionados ao mercado externo e à crise interna. A análise do PIB pela ótica da despesa deixa dois recados fortes: (i) a queda do investimento sinaliza que a crise é profunda e que a Nova Matriz Macroeconômica fracassou em seu principal objetivo que era aumentar a taxa de investimento; (ii) se o PIB é determinado pela demanda o setor externo evitou uma crise ainda maior em nossa economia.

Olhando o acumulado nos quatro últimos trimestres observamos uma queda de 0,9% no PIB. Pela ótica da oferta a agropecuária cresceu 0,6%, a indústria encolheu 2,5% e os serviços caíram em 0,2%. Pela ótica da despesa o consumo das famílias cresceu 0,2%, o consumo do governo cresceu 0,4%, refletindo a gastança de 2014, o investimento caiu 6,9%, as exportações caíram 1% e as importações caíram 2,5%. Um gráfico que está na apresentação do IBGE (link aqui) e que eu reproduzo abaixo mostra o tamanho da queda do PIB em comparação a outros anos. Repare que desde o fim de 1997 o único trimestre com crescimento acumulado menor que o atual foi o quarto trimestre de 2009, no fundo poço da crise de 2008, que de fato foi uma crise internacional. A queda atual é mais que o dobro da queda do quarto trimestre de 1999 que ocorreu na sequência de uma série de crises em países emergentes que chegou oficialmente ao Brasil no primeiro trimestre de 1999 quando o regime de bandas cambiais que sustentou os primeiros anos do Plano Real colapsou.





Um último ponto a ser registrado é que a queda da taxa de investimento de 20,3% para 19,7% do último trimestre de 2014 para o primeiro trimestre de 2015 foi acompanhada de uma queda da taxa de poupança de 17% para 16% no mesmo período. Conquanto seja recomendado cuidado extremo com comparações de trimestres consecutivos o aumento da distância entre as duas taxas de 3,3% para 3,7% mesmo com uma queda significativa da taxa de investimento pode sinalizar para problemas futuros no balanço de pagamentos.



segunda-feira, 25 de maio de 2015

Salários e Horas Trabalhadas

A  Folha de São Paulo noticiou que o governo estuda reduzir a jornada de trabalho para conter o crescimento do desemprego (link aqui). Segundo a reportagem as centrais sindicais defendem uma redução na jornada de 30% e uma redução nos salários de 15%, a proposta das centrais sindicais, como era de se esperar, levaria a um aumento no valor da hora trabalhada. A relação entre horas trabalhadas e salário real é um tema particularmente espinhoso para quem estuda o ciclo de negócios, em 1992 os professores Gary Hansen e Randall Wright escreveram um texto a respeito do tema que até hoje pode ser lido como uma introdução ao assunto (link aqui). No texto os autores exploram as inconsistências entre teoria e os fatos relativos ao comportamento das horas trabalhadas e da produtividade do trabalho durante o ciclo econômico.

Modelos de tradição neoclássica, especificamente os modelos de ciclos reais, descrevem as flutuações a partir de choques de produtividade que deslocam a função de produção e a demanda de trabalho. Um choque positivo faz com que as firmas estejam dispostas a contratar mais empregados a um salário maior, se isso for verdade os dados deveriam mostrar uma correlação positiva entre horas trabalhadas e produtividade do trabalho. Por sua vez modelos keynesianos descrevem os ciclos por meio de movimentos na demanda agregada, um aumento da demanda agregada levaria as firmas a contratarem mais trabalhadores e, pela lei dos rendimentos decrescentes, levaria a uma redução da produtividade, se a hipótese keynesiana for verdadeira então a correlação entre horas trabalhadas e produtividade deveria ser negativa. Como os dados não estão preocupados em agradar os economistas de escolas A ou B a correlação observada entre horas e produtividade nos EUA é próxima de zero. O artigo do Hansen e do Wright segue apresentando possíveis soluções teóricas para explicar a falta de correlação entre horas trabalhas e produtividade. Se o leitor ficou interessado pelo tema recomendo que leia o texto com atenção especial à seção que trata de um texto de 1992 do Lawrence Christiano e do Martin Eichenbaum publicado na American Economic Review cujo o título é Current business cycle theories and aggregate labor-market fluctuations.

A introdução acima nos mostra os perigos de raciocinar com uma correlação pré-estabelecida entre horas trabalhadas e produtividades. Como nos modelos em questão o salário é determinado pela produtividade do trabalho então o perigo da frase anterior pode ser aplicado a correlação entre horas trabalhadas e produtividade. Se a atual redução nas horas trabalhadas decorrer de uma contração da demanda agregada nas linhas dos modelos keyneisanos tradicionais então é possível que a proposta dos sindicatos de reduzir horas e aumentar salários seja viável, o mesmo pode ser dito se a redução das horas trabalhadas decorrer de um deslocamento da oferta de trabalho como no modelo do Christiano e do Eichenbaum. Porém se a redução das horas de trabalho vier de um choque de oferta no estilo dos modelos de ciclos reais ou mesmo no de vários modelos DSGE a tentativa de reduzir horas e aumentar salários poderá ser desastrosa. O governo e os que se dedicam a debater e entender a economia brasileira terão de fazer suas apostas. A minha já está feita: há muito que aponto que o problema da economia brasileira não é de demanda, nosso problema é de oferta e decorre da baixa produtividade.

A questão da produtividade muitas vezes é ignorada e relegada a um papel menor quando se analisa o mercado de trabalho e outras questões em macroeconomia de curto e médio prazo. No debate acadêmico as contribuições de Finn Kydland e Edward Prescott colocaram os choques de produtividade no centro da explicação para o ciclo econômico, é bem verdade que novas gerações de modelos conhecidos como DSGE (dynamic stochastic general equilibrium) colocaram falhas de mercado e formação de expectativas de volta no debate, mas tais modelos não ignoram o papel da produtividade no ciclo econômico. Porém no debate do dia a dia que ocorre nos jornais, em seminários e na internet a produtividade costume ser solenemente ignorada. Temas como câmbio, juros nominais, déficit fiscal e princípios morais como “quem não trabalha não come” ou “é preciso sofrer para ganhar algo” são mais facilmente encontrados do que referências à produtividade, é bem verdade que isso mudou um pouco nos últimos anos, mas acredito que a produtividade continua subestimada no debate.

Tome como exemplo a relação entre horas trabalhadas e nível de renda. Hoje acompanhando os debates que seguiam a notícia da possível redução na jornada de trabalho vi vários comentários afirmando que é impossível crescer e alcançar um nível de renda mais elevado sem trabalhar mais. Do ponto de vista prático a afirmação me parece, no máximo, uma meia verdade, do ponto de vista teórico a afirmação está errada. A diferença é que do ponto de vista prático os baixíssimos níveis de produtividade observados no Brasil e a dificuldade que temos em aumentar nossa produtividade que está praticamente estagnada já fazem 40 anos justifica dizer que só podemos aumentar nosso padrão de vida se trabalharmos mais, porém, em termos mais gerais, é perfeitamente possível trabalhar menos e ter um padrão de vida mais alto. O segredo para tal cominação está na elevação da produtividade.

Para o leitor cético recomento que olhe a figura abaixo, os dados são da OCDE.StatExtracts (link aqui). Na figura estão as horas médias trabalhadas por trabalhador em 2012 em diversos países da OCDE. Se a figura não estiver clara talvez seja útil saber que os cinco países onde o trabalhador médio trabalhou mais horas em 2012 foram: México, Coreia do Sul, Grécia, Chile e Rússia. Se o leitor está espantado talvez queria saber que os cinco países onde “menos se trabalhou” em 2012 foram: França, Dinamarca, Noruega, Alemanha e Holanda. Surpreso?




A figura seguinte mostrando a relação entre PIB per capita e horas médias trabalhadas por ano é ainda mais incomoda. Perceba que a relação é negativa! Quanto mais horas trabalhadas menor o PIB per capita. Naturalmente a figura é apenas um exercício ilustrativo (repitam comigo: correlação não é causalidade) e não significa nada além de mostrar que os dados não permitem afirmar quem em 2012, para os países da OCDE, os países que trabalham mais têm renda per capita maior. Qualquer tentativa de ir além disso faz tanto sentido quando afirmar que filmes do Nicolas Cage matam as pessoas afogadas (link aqui). Por pouco que seja a firmação permitida pelos dados mostram que não é necessário trabalhar mais para ter um padrão de vida melhor. Estou entre os que acreditam que o caminho para riqueza não está na frugalidade nem na disposição para o trabalho, o segredo para riqueza está na produtividade. Poupar mais e trabalhar mais aumentam a riqueza pois permitem produzir mais com mais, porém há um limite para aumentar a riqueza por tal caminho. Para conseguir cada vez mais no longo prazo é preciso aprender a fazer mais com menos.




Infelizmente como já comentei em outro post (link aqui) e como vários outros pesquisadores já concluíram nossa produtividade é baixa e cresce pouco. Dada tal realidade uma mudança que nos leve a trabalhar menos deverá nos tornar ainda mais pobres, se a redução do trabalho vier acompanhada do aumento do valor da hora trabalhada corremos o risco de agravar a crise e aumentar o desemprego. Duas alternativas que deveriam estar fora de cogitação em país que já está atolado em uma crise.






sábado, 16 de maio de 2015

Políticas de Habitação no Brasil e o "Sonho da Casa Própria".

Duas notícias mostram que o governo está planejando intervir no mercado para estimular o setor de construção civil por meio de incentivos ao crédito para compra de casas próprias. A primeira do Estadão fala de um pacote habitacional que faria uso do FGTS e dos depósitos compulsórios que os bancos fazem no Banco Central como forma de aumentar o crédito para compra de casas próprias (link aqui), a reportagem chama atenção para dificuldades em financiar imóveis entre R$ 300 mil e R4 400 mil. Registre-se que imóveis nessa faixa não são destinados aos pobres. A outra reportagem está no Globo e tem um título mais assustador, fala que o governo estuda punir bancos que emprestem pouco para habitação (link aqui). A punição seria oferecer taxas negativas para os recursos destinados ao financiamento de moradias que os bancos deixem parados no BC, segundo a reportagem hoje os recursos ficam no Banco Central sem remuneração e não podem ser usados para outras finalidades. Os recursos são referentes a 65% dos depósitos feitos na poupança e que não podem ter outro fim que não financiar habitação.

Se tais medidas serão de fato tomadas é questão para o futuro, em um governo cada vez menos previsível e que não raro muda de opinião de um dia para o outro é praticamente impossível antecipar quais medidas serão tomadas mesmo em um futuro próximo. Porém fica clara a intenção do governo em induzir as pessoas a realizar o “sonho da casa própria”, o simples fato da lei obrigar que 65% dos depósitos na poupança sejam destinados ao financiamento de imóveis já mostra que de fato há um interesse do governo (não apenas desse, que fique claro) em facilitar a compra da casa própria.

Existem vários motivos para justificar o interesse do governo. Alguns argumentam que o governo deve estimular as pessoas a se tornarem proprietárias como forma de fortalecer a sociedade, a ideia é que o dono de uma propriedade seria de alguma forma um cidadão melhor. No passado essa ideia era tão forte que em muitos países apenas proprietários tinham direito de votar. Há também a questão econômica, o setor de construção civil gera muitos empregos e está fortemente ligado a muitos outros setores, estimular a construção civil seria uma forma eficaz de estimular a economia como um todo. Por fim, como sempre ocorre, existem motivos menos nobres. Construtoras costumam ser grandes financiadoras de campanhas eleitorais e agradar financiadores é sempre algo que alegra políticos do governo e da oposição.

Menos conhecidos são os motivos para não comprar uma casa própria. Ter uma casa própria é muito caro, via de regra o imóvel equivale a vários anos da renda da família. A ideia que sair do aluguel compensaria o esforço para comprar um imóvel não raro está errada, em geral os que usam tal argumento esquecem de computar o custo do capital de ter um imóvel. Para tornar claro o que estou dizendo dou um exemplo, considere uma família da velha classe média que ganha um milhão de reais em um sorteio, a família pode comprar um apartamento e sair do aluguel ou colocar o dinheiro no banco e continuar pagando aluguel. Se colocar o dinheiro no banco a uma taxa de 0,5% ao mês ganhará R$ 5.000 por mês, se o aluguel de uma residência que vale um milhão de reais na cidade for menos que R$ 5.000 por mês a família poderá morar na residência, pagar o aluguel e ainda ficar com a diferença para aumentar o patrimônio. Sempre que os juros pagos pelo banco por uma aplicação no equivalente ao do imóvel desejado forem maiores que o valor do aluguel será possível aplicar o dinheiro para morar onde se deseja e ainda ficar com a diferença.

O argumento acima ignora a valorização do imóvel, em várias cidades do Brasil comprar um imóvel nos últimos anos acabou sendo um bom negócio mesmo que o valor do aluguel ficasse abaixo do que se ganharia de juros aplicando o dinheiro. Isso ocorreu por conta do aumento no valor dos imóveis. Porém a valorização não é algo certo nem ocorre da mesma forma com todos os imóveis, aí está outro ponto problemático na compra de um imóvel. A boa prática de finanças recomenda diversificar os investimentos, ao comprar um imóvel a família está fazendo uma aposta altíssima em um determinado bairro. Se o bairro se valorizar a compra poderá ser um bom negócio, mas se o bairro entrar em decadência poderá seu um negócio desastroso para as finanças da família. A perda no valor do imóvel pode significar alguns anos de trabalho perdidos, a insistência em morar na propriedade pode implicar em perdas de bem-estar por conta de uma vizinhança decadente.

A perda de mobilidade é outro problema relacionado a compra de um imóvel. Suponha que após investir dez anos de seu salário para se tornar o feliz proprietário de um apartamento você receba um convite para um trabalho em outra cidade. O novo trabalho é melhor que o anterior e a nova cidade é agradável, mas o que fazer com o imóvel? Se o mercado estiver bom vender pode ser uma opção, mas vender com pressa é receita para fazer negócios ruins e a oferta de emprego não vai durar para sempre, isso sem falar na burocracia e nos custos para transferir o imóvel. Outras decisões importantes podem ser afetadas pela família ser proprietária de um imóvel... deixarei ao leitor imaginar quais.

Por questões como as listadas acima nem sempre ser proprietário do imóvel onde se mora foi visto como um sonho a ser alcançado. Em um passado não tão distante era perfeitamente aceitável que uma família remediada pagasse aluguel para morar. Ser proprietário era coisa de rico. O reflexo disso é que em alguns países ricos o percentual de residências ocupadas por seus proprietários é bem menor que no Brasil (link aqui). A guisa de exemplo na Alemanha apenas 43% dos imóveis urbanos são ocupados por seus donos, na França é 47% e no Reino Unido é 50%, no Brasil é 74%, maior que os 65% dos EUA.

A referência aos EUA é relevante porque de certa forma foi lá que começou o “sonho da casa própria”. No pós-guerra a construtora Levitt & Sons apostou na ideia de construir bairros residenciais voltados para a classe média, não por acaso o primeiro desses bairros foi chamado de Levittown (link aqui). Tais bairros hoje formam parte da paisagem americana consagrada no cinema e na televisão, em sua origem há um conceito oposto ao de nossas políticas de habitação. A ideia era tirar as pessoas dos centros urbanos, no lugar de apartamentos em bairros superpopulosos e não raro violentos a tranquilidade de uma casa no subúrbio. As políticas públicas menos do que subsidiar ou usar dinheiro público para financiar a compra dos imóveis se concentrou em oferecer a infraestrutura necessária para ligar os bairros residenciais dos subúrbios americanos aos centros das cidades onde ficavam os empregos e as diversões. A retirada das moradias dos centros urbanos significou uma redução significativa nos custos dos imóveis o que facilitou a realização do “sonho da casa própria”. Um efeito (não tão) colateral foi a expansão da indústria automobilística, afinal viver longe do trabalho requer não apenas boas estradas como bons carros.

Se o “sonho da casa própria” nascido nos EUA e que se espalhou para o mundo é um modelo a ser seguido é algo que não me arrisco a afirmar. Como comentei acima existem bons argumentos para defender ou criticar a compra de um imóvel. Porém o modelo brasileiro de incentivar a casa própria em grandes centros urbanos me parece fora de propósito. A adoção de tais políticas em um passado não tão distante nos legou o caos urbano em nossas principais cidades. Também levou a uma crise no setor habitacional quando a maior empresa de crédito imobiliário da época, o grupo Delfin, se envolveu em fraude e não conseguiu honrar seus compromissos com o antigo Banco Nacional de Habitação (BNH) e acabou quebrando e prejudicando as finanças de várias famílias de classe média. O momento para isso acontecer não poderia ter sido pior: final de 1982, na hora mais crítica a crise no setor imobiliário agravou a crise na economia e contribuiu para transformar a década de 1980 na “Década Perdida”. O BNH acabou sendo incorporado pela Caixa, mas a tentação do governo de salvar a economia estimulando o crédito imobiliário renasceu nos últimos anos e parece seguir firme e forte no segundo governo Dilma. É fato que não devemos viver no passado, mas aprender com o passado é algo que não devemos nos recusar a fazer.





sábado, 2 de maio de 2015

Sobre vendeta neoliberal, sociólogos europeus e mordidas de vira-latas.

Nesta semana recebemos a visita do sociólogo italiano Domenico De Masi (autor do livro Ócio Criativo, link aqui). A Folha de São Paulo o entrevistou (link aqui) e deu a seguinte chamada para entrevista: “Intelectual brasileiro tem mentalidade de Terceiro Mundo, diz sociólogo.” Na última frase da entrevista o sociólogo italiano afirma: “Os brasileiros têm complexo de vira-lata.”. Me pergunto qual seria a reação da intelectualidade local se as mesmas declarações fossem dadas por um conservador americano, um liberal inglês ou algum pensador que nossa intelligentsia classifique como “de direita”.

A conclusão final aparentemente resulta de uma pesquisa com uma amostra impressionante de 11 intelectuais brasileiros que se mostraram pessimistas com o Brasil e depois se mostraram mais otimistas quando foram confrontados com dados reais tais como: “O PIB brasileiro é o sétimo do mundo, à frente da Itália e da Inglaterra. O Brasil está em quinto em produção industrial. Está em terceiro lugar em acesso à internet, atrás dos EUA e da Suécia.” Aparentemente o fato de nosso PIB per capita, ajustado por paridade do poder de compra estar na posição setenta e alguma coisa a depender do método de ajuste não impressionou De Masio nem os 11 intelectuais que viram a luz após confrontados com “a realidade”. Para manter a comparação com a Itália o leitor por de estar interessado em saber que o PIB per capita da Itália em 2013, de acordo com o Banco Mundial, foi de $35.281 e o do Brasil foi de $15.013, menos da metade do italiano. Também pode ser útil saber que a Itália está na 26º posição no ranking de IDH e nós estamos na 79º. Imagino que para o sociólogo italiano a possibilidade que brasileiros queriam ter uma renda maior que metade da dos italianos seja uma ousadia comparável a contrariar o conselho de Manuel Castell, outro sociólogo europeu, e manter nosso Congresso funcionando (link aqui).

Mas não foi para tratar disso que resolvi fazer o post, o que motivou a escrever foi a parte da entrevista em que De Mais classificou as críticas a Dilma como uma vendeta neoliberal, segue o trecho:

“Hoje, Dilma é vítima de uma vingança neoliberal. Aécio Neves (PSDB) perdeu as eleições, e o movimento neoliberal se voltou contra Dilma, que não é pior que outros presidentes. A corrupção sempre existiu no país.”

Já que o sociólogo gosta de dados e de mostrar a realidade creio que podemos ver alguns números para avaliar se as críticas e o desencanto da população com Dilma são mesmo resultado de uma vendeta.

Como sabemos Dilma tomou posse em 2011. No ano anterior a economia cresceu 7,6%, e a inflação foi de 5,9%. Em 2014 o crescimento foi de 0,1% e a inflação foi de 6,40%, para 2015 previsões aceitas pelo próprio governo mostram redução do PIB e inflação acima de 8%. Imagino que na Itália ou qualquer país da Europa um governo que conseguisse reduzir em mais de sete pontos a taxa de crescimento da economia e ainda aumentasse a inflação não fosse exatamente aplaudido pela população. Mesmo que consideremos que 2010 foi um ano de crescimento atípico e usemos a média dos anos anteriores o governo Dilma terá trazido uma redução do crescimento. Mas não para por aí, durante o governo Dilma ocorreu uma redução no ritmo de crescimento do salário mínimo (link aqui) e, a valer a regra atual e as previsões de crescimento para 2015, já está contratada uma redução real do salário mínimo. Em 2013, pela primeira vez em dez anos, a miséria aumentou no país (link aqui), outro feito do governo Dilma. O aumento da renda do trabalho também foi revertido no governo Dilma e hoje existem sinais de queda na renda do trabalho (link aqui).

A única variável relevante que não piorou no governo Dilma foi o desemprego, até agora, é bem verdade que se comparamos dezembro de 2010 com março de 2015 (último dado antes de Dilma tomar posse e último dado divulgado) o desemprego subiu de 5,3% para 6,2%, mas não seria uma comparação justa, a comparação mais adequada seria mês com mês ou ano com ano. Em março de 2010 o desemprego foi de 7,6% e em março de 2015 foi de 6,2%, da mesma forma em 2010 a taxa de desemprego foi de 6,7% e em 2014 foi de 4,8%. Porém se observamos a tendência temos motivos para acreditar que o quadro tende a piorar. Em 2011 o desemprego de março foi 6,5%, caiu para 6,2% em 2012, 5,7% em 2013 e 5,0% em 2014, por este ângulo o desemprego de 6,2% em março de 2015 é preocupante. As seguidas quedas na criação de empregos formais (link aqui) reforçam a preocupação.

Enfim, no governo Dilma o crescimento diminuiu, na realidade desapareceu, a inflação aumentou, a renda trabalho dá sinais de queda, o salário mínimo subiu menos e pode ter redução real, a miséria parou de cair e mesmo a redução do desemprego, única variável favorável ao governo, está ameaçada. Com tudo isso acontecendo um sociólogo italiano vem aqui e afirma que a reação ao governo Dilma é uma vendeta neoliberal. O que motiva o sociólogo? Ativismo político? Desconhecimento da realidade brasileira? Arrogância típica de certos círculos intelectuais europeus que acreditam que ficar descontente com governos é um privilégio que não está disponível para latino americanos? Seja o que for a declaração é absurda e não deveria ter ficado sem resposta.

Infelizmente não vi nenhuma resposta as declarações de De Masi, portais governistas divulgaram a entrevista (link aqui), mas portais e blogueiros de oposição preferiram ignorar. É uma pena, refutar afirmações como a de Domenico De Mais é fundamental para não perder o debate que definirá qual será a versão do que ocorreu no governo Dilma que passará para história: um governo que nos conduziu a um desastre econômico ou um governo vítima das elites. Conta a lenda que certa vez um recifense entrou em um bar em Fortaleza e falou alto para que todos ouvissem que ali não tinha nenhum macho. Então um cearense levantou e disse: então tu vai voltar para tua terra dizendo que apanhou de um baitola. Em tempos politicamente corretos imagino que a lenda não seja mais contada, mas a mensagem fica. Teria sido bom se o sociólogo italiano tivesse voltado para casa com algumas mordidas de vira-lata.