Estabelecer relação de causalidade em economia é uma tarefa difícil,
em macroeconomia é praticamente impossível. Criar experimentos está fora de
cogitação para macroeconomistas, restam os tais experimentos naturais que são
raros e cheios de ruídos, com muita perseverança o pessoal coloca algumas variáveis
instrumentais para conseguir dizer alguma coisa com um pouquinho de segurança.
Mas é tudo muito frágil e fica ainda mais frágil quando lembramos que dados macroeconômicos
são difíceis de medir, não raro é difícil até mesmo estabelecer uma relação
entre o conceito que aparece nos modelos e a variável que foi usada na
estimação. O caso do consumo é um clássico, vários autores usam séries de
consumo em suas estimativas esquecendo que na maioria dos países, inclusive o
Brasil, tais séries incorporam o consumo de bens duráveis enquanto os modelos
são construídos para bens não duráveis. Edward Prescott e Finn Kydland,
ganhadores do Nobel em 2004, escreveram um artigo crucial para quem se
interessou pela questão (link aqui), não por acaso já em seu título o artigo
aponta o descompasso entre medida e teoria e as medidas do ciclo de negócios.
Apesar dessa dificuldade em estabelecer relações de
causalidade não são poucas as pessoas que afirmam categoricamente a existência
de uma relação de causalidade entre crescimento e inflação. Basta você falar da
queda da inflação que aparece alguém dizendo que a inflação por causa da
recessão. Políticos, jornalistas, interessados em geral e mesmo alguns profissionais
da área parecem considerar que a existência de uma relação causal entre
inflação e desemprego é tão natural quanto a relação causal entre apertar o
botão do elevador e o elevador parar no andar desejado. Me pergunto de onde vem
tanta certeza diante do conhecimento da dificuldade de estabelecer relações
causais em macroeconomia.
De nossa história recente não é, creio que antes da crise
atual o período de crise mais forte que a maioria dos brasileiros tem
recordação foi a década de 80, a infame década perdida. Naquela década vivemos
uma inflação alta e crescente. A inflação medida pelo IGP-DI foi de 95% em 1981
a 1.216% em 1990 chegando a 2.012% em 1989. A memória da década de 80 nos
levaria a crer que aumento a inflação aumenta durante as crises. Tal percepção
poderia até ser reforçada pela experiência de 1990, quando a economia encolheu 4,25%
e a inflação, como já vimos, foi de 1.216%. A memória recente também não sugere
que recessão cause queda da inflação, basta ver o aumento da inflação que acompanhou
a chegada da recessão lá por 2014.
Uma alternativa para explicar a crença generalizada que queda
no crescimento causa queda inflação seria a existência de uma correlação
positiva entre as duas variáveis. Nesse caso poderíamos imaginar que a
experiencia da década de 90 e do começo da atual recessão são casos atípicos
onde outros fatores fizeram com que a inflação subisse apesar da crise. Algumas
teorias bem aceitas dariam suporte a esta tese, se bem que existe teoria para
todos os gostos quando o assunto é a relação entre inflação e recessão. Com
isso em mente peguei os dados de inflação e crescimento no Brasil disponíveis
no Ipeada. Como eu queira o maior período possível escolhi a inflação medida
pelo IGP-DI, que está disponível a partir de 1945.
A figura abaixo mostra o resultado de uma regressão entre o
logaritmo de um mais a taxa de inflação e o crescimento, repare que a relação
descrita na figura é negativa, quanto maior o crescimento menor é a inflação.
Tomando por base essa figura alguém concluiria que crescimento alto causa
inflação baixa, exatamente o contrário da ideia que a queda no crescimento causou
a queda da inflação. Mas a conclusão estaria errada, primeiro porque a
correlação não significa causalidade e depois porque a relação negativa não é
significativa. Para não incomodar o leitor com conceitos de estatística basta
pensar que a relação que aparece é mero fruto do acaso, afinal dificilmente seria
exatamente zero, e que os dados não mostram relação entre inflação e
crescimento.
Muita coisa aconteceu entre 1945 e 2013, mudanças na forma
de mensuração do PIB e da inflação, manipulação de dados e mesmo a hiperinflação
podem estar contaminando o resultado. Para minorar tais problemas fiz a mesma
regressão com dados de 1996 a 2013, o ano de 2013 foi escolhido porque é o
último da série longa disponível no Ipeadata, a figura abaixo mostra o
resultado. Agora a relação ficou positiva, porém continua não significativa, o
que reforça a tese que tanto a correlação negativa quanto a positiva encontrada
resultam do acaso e não de uma relação entre inflação e crescimento.
Seria o Brasil uma exceção? Seríamos como o cara que come
feito um desgraçado e, mesmo sendo sedentário, não engorda. Seríamos como um
infeliz que sempre pega um elevador quebrado de forma que nunca consegue parar
no andar desejado? Para tirar a dúvida recorri aos dados do FMI, peguei dados
de inflação e crescimento para todos os países com mais de cinco milhões de
habitantes em 2016 e com dados disponíveis para o período 1981 a 2016, excluí
1980 para não ter de tirar o Brasil da lista de países selecionados. Para cada
país fiz a regressão entre inflação e crescimento dos 66 países da amostra, a
figura abaixo mostra o resultado para 64 desses países. Retirei a Bolívia e a
República Democrática do Congo porque os coeficientes estimados, respetivamente
-20,2 e -15,9, estavam muito longe dos outros e distorciam a figura.
Dos 64 países que aparecem na figura apenas 15 apresentam
relações significativas a 5% entre inflação e crescimento, desses apenas dois,
Japão e Cingapura, apresentam relação positiva, em todos os outros que
apresentaram relação significativa a relação foi negativa, ou seja, quanto
maior o crescimento menor a inflação. O Brasil, como esperado da análise na
primeira parte do post, não apresentou relação significativa. Se formos um
pouco mais exigentes e pedirmos um nível de significância de 1% então apenas
oito países apresentam relação significativa, das quais seis são negativas.
Se procurar por aí o leitor vai encontrar econometristas
muito bem formados com estimativas muito bem-feitas mostrando que a correlação
existe e é positiva, infelizmente também vai encontrar econometristas muito bem
formados com estimativas muito bem-feitas mostrando que a correlação existe e é
negativa. Se bobear vai encontrar até alguns econometristas, não sei dizer se
tão bem formados, encontrando relações de causalidade entre crescimento e
inflação. Caso o leitor for mais audacioso e procurar nos modelos teóricos vai
encontrar de (quase) tudo sem precisar da lista de ganhadores do Nobel, tem
modelos onde crescimento causa inflação, tem modelo onde inflação causa
crescimento, tem modelo onde existe uma correlação e não existe causalidade e
tem modelo onde ne mesmo correlação aparece.
Não creio que a crença generalizada seja por conta dos
econometristas e macroeconomistas incríveis e seus modelos voadores, por mais
incríveis que sejam os textos que essa turma escreve não costumam ser lidos por
tanta gente assim, ademais está cheio de coisas que eles dizem com mais
convicção que a relação entre inflação e desemprego e ninguém parece acreditar.
Será que é porque políticos, empresários amigos e banqueiros costumam ficar
felizes com uma inflação “um pouquinho mais alta”? Não, não deve ser, só de
pensar nisso já me vejo ficando paranoico. Olhei os dados, escrevi o post e
ainda não sei de onde vem tanta certeza que a recessão causou a queda da
inflação, principalmente quando vejo que houve uma clara mudança de trajetória
logo após a mudança de governo (link aqui), deve ser coincidência... ao leitor
que teve paciência de ler até aqui, lamento, mas não deu para dizer de onde vem
tanta certeza, talvez seja porque o Mantega falou.