domingo, 28 de junho de 2015

O livre mercado e o casamento de pessoas do mesmo sexo

O tema da semana definitivamente foi a decisão da Suprema Corte dos EUA que tornou o casamento entre pessoas do mesmo sexo legal em todos os estados da federação. Não que a semana tenha sido morna, pelo contrário, ocorreu uma onda de ataques terroristas, a Grécia afundou de vez junto com o delírio populista do Syriza, por aqui tivemos o habeas corpus negado para Marcelo Odebrecht, mostrando que a o pedido de prisão, justo ou injusto, não é tão frágil quanto alguns tentaram fazer crer e finalmente o ministro Teori Zavasck do STF aceitou a delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC. Cada um desses episódios seria o assunto dominante de uma semana normal, mas nenhum parece ter a importância da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não que seja alguma novidade, até o Brasil já tinha decisão semelhante, mas por ser nos EUA, o país de onde boa parte das ideias e valores são disseminados para o mundo. Os amigos nacionalistas que me desculpem, mas a América ainda é o centro do mundo.


A decisão da Suprema Corte dos EUA é um marco na história recente. As consequências da decisão vão muito além dos problemas econômicos da Europa, que não devem ser menosprezados, e nem se comparam com qualquer coisa que aconteça por aqui. Ao reconhecer que práticas consensuais entre adultos não podem ser motivo para que a lei ofereça tratamento diferenciado entre indivíduos a Suprema Corte fez História. Entendo os que se preocupam com o federalismo e com o ativismo judiciário, são questões que também me preocupam, creio entender, embora não concorde, as preocupações com eventuais ameaças a estrutura familiar como base da sociedade, mas estou entre os que acreditam piamente que direitos não devem ser negados com base em princípios abstratos, nem que sejam princípios que eu compartilhe. Creio que direitos só devem ser negados quando a ação envolvida causa vítimas concretas, uma pessoa não tem o direito de matar outra não porque matar é pecado, mas porque matar causa perdas concretas a pessoas concretas.

Porém não estou fazendo o post para explicar porque sou favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, com pouco esforço o leitor pode encontrar autores mais qualificados do que eu explicando porque o casamento gay deve ser comemorado e outros autores, também muito qualificados, explicando porque o casamento gay não deve ser comemorado. Tenho posição e já explicitei minha posição desde o dia que a decisão foi tomada: eu saúdo e comemoro a decisão, mas não vou tentar convencer ninguém a mudar de opinião. No lugar disso vou tentar puxar brasa para minha sardinha e engrossar o coro dos que dizem que a origem da decisão da Suprema Corte está nas ideias e nos princípios liberais. A inspiração para o post veio do excelente texto de David Boaz que foi publicado no Mercado Popular (link aqui). O texto faz um forte argumento para defender a tese que os pensadores liberais foram pioneiros na defesa do princípio que o Estado não deve regular o que dois adultos fazem de forma consensual. Não vou resumir nem tentar acrescentar argumentos ou exemplos que não estão no texto, me limito a citar um trecho e recomendar fortemente que o leitor interessado no assunto leia o texto. O trecho é:

“Foram os liberais clássicos, ancestrais dos libertários modernos, os primeiros a reconhecerem este fato. De Montesquieu a Adam Smith no século 18 até o vencedor do Prêmio Nobel de economia F. A. Hayek, que ainda em 1960 (quando a sodomia era crime em todo os Estados Unidos) já afirmava que “práticas privadas entre adultos, mesmo quando tidas como horrendas pelo público geral, não devem sofrer qualquer interferência coerciva do Estado”.”

O que pretendo fazer é dar um passo além do texto e argumentar que não apenas o pensamento liberal está na origem das ideias que levaram a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo como algumas das práticas defendidas por liberais, especificamente o livre mercado, são condições necessárias para que a decisão tivesse sido tomada. Claro que não vou negar que associações formadas entre homossexuais e/ou entre homossexuais e defensores da liberdade (simpatizantes ou não dos homossexuais) foram fundamentais no processo, ações como as Marchas do Orgulho Gay foram essenciais para quebrar o preconceito, o que meus amigos de esquerda gostam de chamar de luta coletiva teve papel determinante no desenrolar dos eventos. Não vou contrapor a leitura da esquerda nem negar a importância da militância organizada na evolução dos eventos, apenas vou registrar que liberais não costumam ser contra associações voluntárias de qualquer natureza. Nosso problema é com associações não voluntárias.

A esta altura o leitor pode estar se perguntando o que pretendo fazer no post. Não vou tratar de ideias, insisto que o texto do Mercado Popular praticamente esgotou o assunto a nível de blogs, não vou comprar briga com a turma da esquerda questionando o papel dos movimentos sociais (não porque não possa, mas porque não quero) e não vou tentar vender a ideia que indivíduos isolados teriam chagado a resultado semelhante. Vou argumentar que a ação dos movimentos sociais só foi possível porque existe algum grau suficientemente grande de liberdade de mercado.

Para seguir meu argumento considere um mundo onde não existe mercado. Toda a atividade econômica é regulada pela coletividade. Suponha que nesse mundo um pequeno grupo de indivíduos, por qualquer que seja a razão, tenha um comportamento que desagrada ou mesmo causa fúria a maior parte da população. Como os participantes desse pequeno grupo poderiam agir para mudar a percepção da maioria da população? No exato momento que o indivíduo se revelar como parte do grupo ele passa a ser alvo do desprezo ou mesmo da fúria da coletividade, a reação provável será a de punir o indivíduo, era exatamente o que acontecia tanto nas economias de mercado quanto nas economias planificadas até meados do século passado. Ser exposto como homossexual era razão para perda de posição sociais, perda de emprego e até prisão.

Como foi possível mudar essa realidade a ponto do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser legalizado em países como a Inglaterra, EUA e Brasil e o mesmo não ter acontecido em países como Rússia, Cuba e China? Serão ingleses, brasileiros e americanos mais aguerridos em suas lutas coletivas do que russos, cubanos e chineses? As revoluções comunistas que ocorreram na Rússia, em Cuba e na China esgotaram a capacidade de organização social destes povos? Não creio. Entendo que a resposta está na diferença entre sociedades onde o poder coletivo, ou o poder tribal, exerce o controle do poder político e o poder econômico e as sociedades onde o poder tribal controla o poder político e o poder econômico está pulverizado entre diversas famílias.

Um militante homossexual, ou de qualquer minoria, que se levante contra a opinião dominante em uma sociedade onde o poder econômico e o poder político andam juntos estará simultaneamente ameaçado de prisão e de viver na miséria. Mesmo que ele consiga driblar a lei (por exemplo, se a lei proíbe sodomia o sujeito pode alegar que é homossexual, mas não pratica nenhuma forma se sexo eque  por respeito à lei se limita a amores platônicos) poderá estar condenado à miséria ou ao desterro. Não são raros os casos onde minorias foram mandadas para regiões distantes e/ou dispersadas por um país, em casos mais drásticos são mandadas para campos de concentração. Se o poder tribal além de concentrar o poder político e econômico também concentrar o poder religioso o pobre sujeito além de tudo ainda será condenado ao inferno.

O mesmo militante em uma sociedade onde o poder econômico está dissolvido ainda poderá ser perseguido pelo poder político, mas também terá mais chances de pelo encontrar um emprego e se livrara da miséria. Uma vez livre da miséria o sujeito poderá começar a procurar outros que pertençam a mesma minoria e organizar alguma forma de mudar a percepção da maioria, mesmo quem não pertença à minoria pode começar a se engajar no processo e aderir a defesa da causa da minoria em questão. É possível que empresários pouco preocupados com valores coletivos e muito preocupados com lucro comecem a contratar os membros da minoria que muito provavelmente aceitarão fazer o mesmo trabalho por salários menores. No futuro os empresários que procederam de tal forma poderão até ser condenados, mas naquele momento foram a diferença entre a miséria e uma vida com alguma dignidade. Também é possível que alguma comunidade não esteja interessada nas particularidades do indivíduo e ele acabe conseguindo fazer prosperar uma empresa dele. Enfim, as possibilidades são mais do que eu posso listar ou mesmo imaginar, mas todas dependem da descentralização do poder econômico. Se o poder religioso também for descentralizado é possível que alguns líderes religiosos também aceitem o membro da minoria. Uma vez livre do inferno e da miséria fica mais fácil para um indivíduo organizar um movimento coletivo.

Tudo isso que estou falando pode parecer abstrato e distante da realidade, alguns amigos de esquerda podem dizer que é cinismo, mas se o leitor observar bem a história do movimento LGBT verá um padrão semelhante ao que descrevi de forma idealizada. As histórias de Oscar Wilde e Alan Turing são horríveis e aconteceram em uma sociedade aberta, mas a sociedade inglesa encontrou os meios para se redefinir e hoje David Cameron consegue apoiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e ser líder do Partido Conservador. O que aconteceu em Cuba ou na Coreia do Norte no mesmo período? Por que? Mesmo a ficção mostra a diferença entre os dois tipos de sociedade. Em 1993 foi lançado o filme Filadélfia onde um advogado gay era exposto pela AIDS e, por isso, perdia o emprego, na sequência ele encontra um advogado estilo topa tudo por dinheiro e da parceria sai o troco na empresa que o demitiu. Em 1994 o filme Morangos e Chocolates foi lançado tratando da homossexualidade em Cuba, não havia um advogado para ser coadjuvante em uma eventual virada do personagem, um advogado que topa tudo por dinheiro seria visto em Cuba como uma aberração de sociedades capitalistas onde a ganancia parece se sobrepor à generosidade e ao altruísmo. Nos dias de hoje a história de Andrew, personagem principal de Filadélfia, pareceria fora de tempo, até onde eu saiba a história de Diego, personagem homossexual de Morangos com Chocolate, ainda é normal na Cuba de hoje.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Falhas de Mercado, Falhas de Governo e a MP 677

O governo brasileiro não é o primeiro nem será o último a usar de recursos públicos e do poder de fazer leis para tentar mudar as decisões das famílias ou das empresas. Tais intervenções são objetos de intensos debates entre economistas e outros cientistas sociais, em termos teóricos é possível construir bons argumentos para defender e para criticar as intervenções do governo. Alguns argumentos contrários à intervenção partem da ideia que o mercado faz o melhor trabalho possível na alocação dos recursos e que qualquer alteração levará fatalmente a perdas de bem-estar. Os defensores da intervenção costumam apontar que o mercado pode falhar em diversas situações e que o governo pode corrigir essas falhas e que assim procedendo leva a sociedade a um maior nível de bem-estar.

Quem me acompanha aqui no blog sabe que eu me alinho no grupo dos que acreditam que o mercado faz um trabalho melhor que o governo na alocação de recursos. Porém, como economista, reconheço e entendo as possibilidades teóricas que permitiriam ao governo corrigir o mercado, o aprendizado destas situações faz parte da formação de qualquer bom economista. Reconhecer que o mercado pode falhar, as vezes pode falhar miseravelmente, e ao mesmo tempo negar que o governo pode fazer um trabalho melhor que o mercado é uma contradição? Creio que não. Para concluir que o governo deve conduzir as decisões econômicas das famílias e das firmas não basta acreditar que o mercado falha, é preciso acreditar que o governo pode corrigir as falhas do mercado. Aí que a coisa pega.

A maior parte dos modelos que justificam a intervenção do setor público nas decisões das famílias e das firmas supõem que o governo tem a informação necessária para colocar as coisas no lugar certo, que o governo deseja o melhor para a sociedade e/ou que é possível definir o que é melhor para sociedade. Eu não concordo com nenhuma das três hipóteses, pelo menos não em termos gerais. Não sou o único, muitos outros economistas discordam de uma ou mais das três hipóteses acima e, por isso, são céticos em relação às intervenções do governo na economia. Vários livros, artigos científicos e textos para divulgações em revistas e blogs já foram e ainda serão escritos a respeito das hipóteses necessárias para justificar a intervenção do governo nas vidas das pessoas, esse post não é um deles. No lugar de discutir teorias vou usar um exemplo de intervenção para questionar a aplicabilidade e os perigos existentes nas três hipóteses acima.

O exemplo é a MP 677 (link aqui para MP e link aqui, aqui e aqui para reportagens a respeito da MP). Um dos pontos da medida provisória é estender até 2037 o subsidio no preço da energia elétrica concedido às empresas que são intensivas em energia elétrica e atuam na região Nordeste. O argumento a favor da medida é que sem o subsidio as empresas sairão da região o que causaria uma perda de emprego e de renda no Nordeste. Para que o leitor tenha noção do tamanho do subsidio as empresas beneficiadas pagarão certa de R$ 130,00 por megawatt-hora, no mercado spot o megawatt-hora custa R$ 364,00 (link aqui), não achei dados relativos a quantidade de energia usadas pelas empresas beneficiárias e, portanto, não tenho estimativas do valor total do subsídio.

É de se esperar que fato a concessão de tamanho subsidio impeça que algumas empresas reduzam atividade e demitam empregados, porém a questão é mais complexa. Como a medida afeta outros setores? De saída me parece razoável supor que o subsidio retira incentivos para que as empresas beneficiadas invistam em tecnologias poupadores de energia. Sem sentir o peso do custo da energia as empresas beneficiadas não terão motivos para pesquisar ou adquirir tecnologias que usem menos energia do que a tecnologia que está sendo atualmente utilizada. Ao não poupar energia tais empresas pressionam a demanda por energia o que tem o efeito de aumentar o preço da energia para as famílias e as firmas não beneficiadas. Ao não investir em pesquisa a firma pode deixar de contratar engenheiros e cientistas. Ao não comprar máquinas com tecnologia poupadora de energia as firmas podem deixar de adquirir outras tecnologias que estivessem embutidas nas máquinas.

De saída vemos que a política que visava salvar renda e empregos pode levar a um aumento no custo, e, portanto, na renda real de várias famílias, pode eliminar empregos de engenheiros e cientistas, pode atrasar a substituição de tecnologias velhas por tecnologias novas, pode agravar problemas ambientais. Tem mais, as empresas que não receberam o benefício podem ser expulsas do mercado levando a um aumento da concentração e consequente aumento do preço e redução da produção dos bens e serviços dos mercados onde as empresas beneficiadas atuam. É possível, na realidade é muito provável, que existam muitos outros efeitos que não me ocorrem agora. Considerando tudo isso quais seriam os efeitos finais do subsidio? Não sei, o problema é que governo também não sabe, na verdade ninguém sabe pela simples razão que não é possível saber. Via de regra as interações que ocorrem no mercado são muito complexas para que sejam previstas e mensuradas com o grau de precisão necessária para justificar o uso do dinheiro dos contribuintes e para garantir que os prejuízos não serão maiores que os custos. É bem possível que o custo da medida seja maior que o previsto pelo governo e que os efeitos sejam bem diferentes do desejado. Impressiona que o governo não tenha aprendido essa lição quando da última intervenção no setor elétrico. Naquela oportunidade o governo prometeu energia abundante e barata e entregou energia cada vez mais cara e mais escassa.

Mesmo que o governo tivesse condições de estimar com precisão todos os ganhos e perdas do subsidio haveria o problema de ponderar ganhos e perdas de diferentes famílias e firmas. Suponha que seja possível afirmar que quinhentos empregos serão salvos pela medida, mas que as perdas das empresas não beneficiadas custarão cem empregos e o aumento do custo da energia destruirá cinquenta pequenas empresas com perda de cem empregos. O que vale mais dez empregos salvos ou três pequenas empresas destruídas? E se uma das empresas fosse a única fonte de renda de uma família com dois idosos e quatro crianças? E se um dos empregos salvos for de um senhor de cinquenta anos que sustenta o irmão que tem uma doença que o impede de trabalhar? Como medir o que é mais importante?

Finalmente suponha que seja possível mensurar os efeitos da medida e definir um critério que torne possível ponderar as perdas e ganhos das diversas famílias e empresas que serão afetadas pela medida. Quem garante que o governo vai seguir o que é melhor para todos? E se o melhor para todos for não dar o subsidio e isso trouxer grandes prejuízos para as empresas que receberiam tais subsídios? E se uma das empresas for financiadora de campanha do partido do político que vai tomar a decisão? O aumento do preço da energia pode ser prejudicial para várias pequenas empresas espalhadas por todo o Nordeste, mas as perdas de cada empresa talvez não sejam tão volumosas e em alguns casos os prejudicados não têm informações suficientes para estabelecer o vínculo entre o subsidio e o aumento no preço da energia. Mesmo que as perdas sejam grandes e as empresas saibam exatamente a origem das perdas talvez as pequenas empresas não sejam organizadas suficiente para fazer valer os interesses delas. Por outro lado, as grandes empresas beneficiadas pelo subsidio sabem que os ganhos envolvidos são consideráveis, sabem que os ganhos decorrem da implementação do subsídio e, por serem poucas, podem se organizar facilmente para pressionar pela adoção da política.

Talvez o leitor não esteja convencido dos problemas que apontei, talvez o leitor acredite que estou abusando na má vontade com os políticos. Nesse caso o leitor talvez se interesse em saber que as principais empresas beneficiadas pela MP 677 são a Vale, a Braskem e a Gerdau. A Vale e a Gerdau dispensam apresentações, a Braskem é controlada pela Odebrecht. A empresa daquele sujeito que ameaçou destruir a República se fosse preso e quando foi preso preferiu soltar uma nota criticando o juiz que o sentenciou...



terça-feira, 16 de junho de 2015

Exportar importa, não nego, mas custo também importa?

Hoje o jornal O Globo publicou uma reportagem mostrando que o apoio do BNDES para construtoras executarem obras em países como Cuba, Venezuela e Angola custa aproximadamente R$ 1,1 bilhão por ano aos trabalhadores brasileiros (link aqui). A reportagem tem por base um estudo do Insper que leva em conta a diferença entre os juros que o governo paga para pegar os recursos e os juros que o BNDES cobra das empresas. Um outro estudo citado na reportagem, desta vez da FEA/USP de Ribeirão Preto, afirma que as operações do BNDES desrespeitam a Constituição.

Como de costume empresários, governo e governistas de plantão reagiram atacando os autores dos estudos e o jornal que divulgou os estudos. O BNDES mostra que é adepto da economia sem restrições e ignora a existência de subsídios alegando que os recursos são oriundos do FAT. Luciano Coutinho afirma que é importante financiar as exportações de serviços, não lembro de ninguém dizendo que não é, mas não explica porque cabe ao BNDES financiar tais exportações e porque com juros tão baixos, no lugar de explicar ele preferiu acusar de desonestidade intelectual os que criticaram a ação do BNDES. Aparentemente na economia sem restrições se algo é importante deve ser financiado não importa o custo e de preferência com o dinheiro do contribuinte.

Não ficou por aí, Delfim Netto, o eterno porta voz da indústria paulista, czar econômico da ditadura, especialista em jogar crises para o futuro, mentor da crise da década de 1980 e avô da hiperinflação resolveu entrar na briga e acusar complexo de vira-latas os que criticam o BNDES. Melhor complexo de vira-lata do que complexo de poodle, diria eu se desfrutasse o status de ser considerado genial a despeito do que eu digo ou do que eu faço, mas não tenho e não almejo ter tal status, apenas economistas que nos conduziram a grandes crises e/ou inflação descontrolada merecem tamanha consideração. Ao pedestal consagrado a iluminados da estirpe de Delfim, Beluzzo, Bresser e Mantega prefiro a rua onde entre latas e vira-latas me pergunto sobre o quão adequado é usar o dinheiro do povo para financiar as exportações. Já não me refiro apenas as exportações de serviços, penso nas exportações em geral que são alvos de programas como o BNDES Exim (link aqui) citado por Delfim Netto.

Talvez por ser míope eu não chegue a dizer que “exportar é o que importa” como diz Delfim no encerramento do texto no Valor Econômico (link aqui), mas que exportar importa não sou eu quem vai negar. Se exportar importa e se economistas dentro e fora do governo estão cientes disso é de se esperar que exista um esforço para facilitar a vida de quem exporta, não falo de financiar os que se enquadram em critérios estabelecidos pelo BNDES ou por outros braços. Não que eu duvide da seriedade e justiça de tais critérios, é que me incomoda a coincidência entre as empresas beneficiadas por tais critérios e as empresas que costumam financiar campanhas, coisa de neoliberal mal-humorado. Falo de medidas que facilitem toda e qualquer exportação independente de avaliações e coisas do tipo.

Comecei olhando o quesito de comércio exterior no relatório Doing Business elaborado pelo Banco Mundial (link aqui). Em uma lista de 189 países ficamos na posição 123 no que tange ao comércio exterior. Talvez seja por conta de bloqueios as importações, pensei eu, fui olhar a parte relativa as exportações. Comecei pelo número de documentos necessários para exportar, no Brasil são necessários seis documentos para realizar uma exportação, a média da OCDE é de 3,8 e a média da América Latina e do Caribe é de 5,7. Não estamos tão mal na foto, mas podemos melhorar, se a Itália consegue autorizar exportações com três documentos e a França com dois não há porque nos contentarmos com seis. Depois olhei o tempo em dias para exportar, mais uma vez não ficamos mal, nossos exportadores precisam de 13,4 dias para exportar. A média da OCDE é de 10,5 dias e a média da América Latina e Caribe é de 16,8 dias, ficamos no meio do caminho, devo confessar que imaginava que estivéssemos pior. Por fim fui olhar o custo para exportar, de certa forma é a informação mais relevante posto que engloba e resume as anteriores e outras que não foram listadas.

De acordo com os dados do Banco Mundial o custo para exportar no Brasil é de US$ 2.322,8 por container. Para que o leitor tenha uma noção de grandeza o mesmo custo é US$ 895,6 no Extremo Oriente e Pacífico, US$ 1.100,4 na OCDE, US$ 1.307,0 no Oriente Médio e na África, US$ 1.299,1 na América Latina e Caribe, US$ 2.117,8 na Ásia do Sul, US$ 2.439,5 na Europa e Ásia Central e US$ 2.930 na África Subsaariana. É fato que várias características, inclusive geográficas, podem influenciar o valor do custo de exportação. Ciente disso e não querendo cometer injustiças resolvi olhar os números com mais cuidado.

Cruzei os dados do Banco Mundial com os da Penn World Table 8.0 e limitei a amostra a países com mais de 10 milhões de habitantes, a amostra ficou com 66 países. Dividi a amostra em quatro partes onde a primeira parte contém os países onde mais barato exportar e a última parte contém os países onde é mais caro exportar, o Brasil ficou na última parte, para ficar na terceira parte o custo de exportar deveria cair para US$ 2.292, para que ficássemos na metade de baixo o custo deveria cair para US$ 1.297,5 e para ficar na primeira parte, os países onde exportar é mais barato, o custo deveria cair para US$ 911,25. Um tanto inconformado com nossa posição resolvi checar em quais países o custo de exportar é maior do que o nosso, são eles: Chade, Colômbia, Etiópia, Iraque, Cazaquistão, Mali, Nepal, Níger, Rússia, Ruanda, Sudão, Uganda, Uzbequistão, Zâmbia e Zimbábue. Da América Latina só na Colômbia o custo de exportar é maior que no Brasil, entre os BRICS só na Rússia. Para que o leitor visualize nossa posição coloquei a figura abaixo com todos os países da amostra. Creio que podemos melhorar.




Para terminar o exercício aproveitei que já tinha cruzado os dados com a PWT e fui ver a relação entre exportações e PIB per capita. Como esperado o PIB per capita não explica o custo de exportar, mas a relação é significativa. Na tentativa de fazer um gráfico mais claro retirei os países com custos de exportação acima de US$ 4.000 (eram os outliers de acordo com o boxplot, antes de reclamar lembre que não estou escrevendo um paper, estou fazendo um post para um blog), a figura abaixo mostra custo de exportar e PIB per capita para os países que sobraram na amostra.

O gráfico mostra que países mais ricos tendem a ter menores custos para exportar (ou seria o contrário, países com menores custos para exportar são mais ricos?), mas isso não explica nosso alto custo para exportar. Se fosse depender do PIB per capita, o que não é uma boa hipótese, o custo para exportar no Brasil deveria ser próximo a US$ 1.500. Marquei no gráfico o Chile, que costuma ser referência para América Latina, e a China, que costuma ser referência de país grande e populoso que cresce e exporta muito, ambos estão abaixo da reta.




Termino o texto com a dúvida que apareceu no meio do texto. Por que não estamos buscando reduzir o custo de exportação com a mesma ênfase que buscamos financiar as exportações? Quando ainda estava no Ceará lembro de um colega que trabalhava com exportação de castanhas comentando que a tonelada de castanha no Ceará era mais barata do que na Índia, mas que a da Índia chegava mais barata em Miami, uma olhada no mapa mostra o absurdo da situação. Se o estudo do Insper estiver certo, não vejo um bom motivo para acreditar que não está, só o BNDES gasta R$ 1,1 bilhão por ano para financiar apenas as exportações de serviços. Quanto gastaríamos para cortar na metade nosso custo de exportar? Reduzir tais custos não seria uma estratégia mais eficiente e com menos riscos de ser capturada pelo compadrio entre grandes empresários e políticos do que os financiamentos do BNDES? Será que nossos governantes preferem manter o compadrio? Será? Será?





sábado, 13 de junho de 2015

Por que o Brasil não cresce?

Vez por outra alguém me pergunta o que eu faria se eu estivesse em um alto cargo na equipe econômica de um governo. Minha resposta padrão é que eu faria o (im)possível para garantir a estabilidade macroeconômica e dedicaria todo o resto do tempo para elaborar e tentar aprovar reformas que mudassem a estrutura legal brasileira de uma estrutura que penaliza a produção e a transformação de boas ideias em negócios e beneficia a burocratização e o controle para uma estrutura legal simples e voltada para facilitar a livre iniciativa e a realização de negócios. Hoje no FB esbarrei em dois posts que em conjunto formam um exemplo pronto e acabado da minha tese.

O primeiro vem de uma campanha do governo federal que foi divulgada pela Advocacia Geral da União, é um anúncio contra o trabalho infantil que informa que criança ajudando no negócio da família também é crime (link aqui). A imagem que acompanha a postagem é a que está abaixo:


A mensagem não deixa margens para dúvidas: no Brasil crianças não podem nem mesmo ajudar os pais nos negócios da família. A outra postagem chegou pelo Instituo Liberal de São Paulo (link aqui) e diz respeito a uma garota americana de 14 anos que ao perceber as dificuldades dos colegas em comprar materiais esportivos específicos e fez uma empresa para resolver o problema. Ela já faturou duzentos mil dólares com a empresa e espera chegar a um milhão de dólares ainda esse ano (link aqui).

É bem verdade que o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo segundo define com criança como quem tem até 12 anos, porém o mesmo estatuo no art. 65 afirma que: "É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.". A jovem teve aos 13 anos! Na página do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT, link aqui) está escrito que:


  • Adolescentes entre 14 e 18 anos incompletos: é permitido o trabalho na condição de aprendiz. Nessa hipótese, o Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve que não há necessidade de autorização judicial, uma vez satisfeitos os requisitos exigidos.
  • Adolescentes a partir de 16 anos: é permitido o trabalho executado fora do processo de aprendizagem, ou seja, é a idade mínima para ingresso em qualquer atividade profissional.

Desta forma, se alguém perguntar porque uma estudante brasileira de 14 anos não é a proprietária de uma firma que a permitiu faturar mias de seiscentos mil reais a resposta não passa por restrição ao crédito, diferenças culturais em relação ao empreendedorismo e etc. A resposta é bem mais simples: uma garota brasileira não pode fazer o mesmo que a garota americana porque nossa lei não permite.




terça-feira, 9 de junho de 2015

Novo Plano de Concessões: Agora Vai?

Hoje o governo lançou o novo plano de concessões, é um plano ambicioso, sem dúvidas. O plano prevê investimentos de R$ 198,4 bilhões em transportes, dos quais R$ 37,4 bilhões em portos, R$ 8,5 bilhões em aeroportos, R$ 66 bilhões em rodovias e R$ 86 bilhões em ferrovias (link aqui). A infraestrutura de transportes no Brasil de fato está mal das pernas e precisa urgentemente de ser revitalizada. Como transportes afetam praticamente todos os setores da economia um plano de investimento que reduza os problemas de transportes tem potencial para beneficiar a economia como um todo, mais ainda, uma melhora no setor de transportes pode ajudar a reduzir o problema crônico de baixa produtividade que afeta o Brasil e ainda pode ajudar a trazer novos investimentos.

Então finalmente temos motivos para festejar? Não creio, pelo menos ainda não. Mansueto Almeida no excelente blog dele mostrou ceticismo com o programa (link aqui). Faz sentido, gato escaldado tem medo d’água e no passado recente tivemos outros programas grandiosos que não deram em nada. Terá o governo aprendido com os próprios erros? Terá a chegada de Joaquim Levy contribuindo para que o governo aceite formas mais eficazes de colocar em prática as concessões? O flerte com o sistema de outorgas sugere que sim. Para os que não lembram o sistema de outorga era a base dos modelos de privatizações da década de 1990 (na época de FHC concessões eram chamadas de privatizações, se não acredita no que digo faça uma busca por privatização da Dutra). O PT trocou as outorgas pelo modelo de tarifa mínima e demonizou o antigo modelo como coisa de neoliberal que odeia o povo. Se o modelo de outorgas será mesmo adotado só o tempo vai dizer, para um governo que tem negado várias teses que defendeu nos últimos anos negar as críticas que fez ao modelo de privatização usado por FHC não deve ser algo muito traumático.

Se o governo usar modelos mais eficientes de concessão vamos ter motivos para festa? Eu sugiro que não coloquem a cerveja para gelar, creio que o principal fator que impediu o sucesso das outras iniciativas continua presente. Antes de dizer do que falo convido o leitor a refletir a respeito de algumas questões:

Por que a transposição do rio São Francisco não está pronta? A ideia de fazer a transposição do rio São Francisco data de 1847, quando o Brasil ainda era um império comandado por D. Pedro II, na época a ideia não foi adiante. Quase cem anos depois, em 1943, Getúlio Vargas recolocou o tema em pauta, mas também não foi muito longe, o projeto voltou a ganhar força no governo Figueiredo, último presidente do regime militar. Já na democracia a transposição do rio São Francisco recebeu atenção de Itamar e de FHC. No governo Lula o projeto finalmente saiu do papel e as obras foram iniciadas, o projeto foi aprovado em 2004, as obras começaram em 2007 e já deviam estar prontas desde 2012. Estamos em 2015 e as obras ainda não estão prontas. Por que? Para que o leitor tenha uma ideia será útil observar o que aconteceu entre 2004, quando o projeto foi aprovado, e 2007, quando as obras começaram. Ainda em 2004 o Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco foi aprovado, mas a transposição ficou de fora por conta de um pedido de vistas. As idas e vindas do projeto geraram um conflito entre o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e a Agência Nacional de Água (ANA). No entender da agência o CNRH é o responsável pelos planos de obras e definições de prioridade da bacia do São Francisco, mas o uso da água da bacia é atribuição dos órgãos estaduais e da ANA. A disputa criou um conflito jurídico que ainda não foi resolvido. Mesmo com o conflito as obras começaram em 2007, atualmente estão no STF pelo menos 14 ações contra a transposição. As ações tratam de questões indígenas, normas de recursos hídricos e normas ambientais. O IBAMA já aprovou o relatório de impactos ambientais do projeto, mas as ações continuam. É razoável investir em uma obra que leva água do São Francisco para outras regiões do Nordeste? Não sei, seria preciso um estudo para isso, já li a respeito, mas existem múltiplas conclusões. Porém a pergunta não é bem essa, a pergunta mais apropriada seria: É razoável investir em um projeto que está se arrastando e que é questionado por 14 ações no STF e que nem mesmo os órgãos do governo se entendem a respeito? Me parece difícil uma resposta diferente de não. O que impede que investimentos privados (ou mesmo públicos) sejam feitos para terminar a transposição do São Francisco? Os R$ 8 bilhões necessários para a obra ou a confusão jurídica que descrevi? Para ajudar na resposta o leitor pode lembrar das centenas de bilhões de reais que o BNDES usou para financiar o investimento durante o primeiro governo Dilma (as informações que usei estão na Wikipédia, link aqui).

Por que a ferrovia Norte-Sul não está pronta? Uma outra consulta a Wikipédia (link aqui) ensina que a ferrovia Norte-Sul deve conectar os estados de Pará, Maranhão, Tocantins, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em um país com déficit crônico de transportes e reconhecida carência no setor ferroviário é difícil não se empolgar com o projeto. Porém seguindo a leitura aprendemos que as obras da ferrovia começaram em 1987 e atualmente estão no trecho entre Açailândia (MA) e Palmas (TO). O custo da ferrovia é estimado em R$ 25 bilhões. Terá sido a falta de recursos que impediu a construção da ferrovia? Em quase trinta anos o Brasil não conseguiu R$ 25 bilhões para uma obra tão importante? O leitor pode mais uma vez lembrar das centenas de bilhões do BNDES ou, se preferir, o leitor pode lembrar dos custos dos estádios da Copa. Se não foi falta de recursos então o que foi? Segundo relatório do TCU o trecho entre Palmas (TO) e Anápolis (GO) tem 700km que sequer podem ser chamados de ferrovia. Suspeitas de superfaturamento, erros de projetos como curvas muito fechadas e problemas de execução como trilhos que não forma soldados também foram apontados no TCU (link aqui). Ações na justiça ajudam a parar a obra, considerando o número de estados envolvidos e que a justiça de cada estado pode ser acionada é possível imaginar o custo jurídico e a confusão de decisões judicias que são enfrentadas para tocar a obra. Assim como no caso da transposição do São Francisco, creio que não foi por falta de dinheiro que a ferrovia Norte-Sul não foi terminada.

Como foi possível fazer a Copa? Provavelmente o leitor lembra dos receios a respeito das obras essenciais para a Copa, inclusive alguns estádios, não ficarem prontas em tempo hábil. É bem verdade que muitas das obras prometidas, algumas que importantes para o evento, não ficaram prontas, mas as obras essenciais foram entregues no tempo. Teve Copa e não fosse o desempenho vexatório da seleção brasileira teria sido uma festa para recordar por muito tempo, cara demais para nossas possibilidades, é verdade, mas bonita. Teriam sido os receios infundados? A matéria da Veja projetando que nem mesmo os estádios ficariam prontos estava desprovida de fundamentos? Há diga que sim, mas não é o meu caso. O fato é que foi necessário mudar a lei de licitação e criar o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (Lei 12.462, link aqui), também conhecido como RDC. É bem verdade que o Sindicato da Arquitetura e Engenharia e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil argumentam que o RDC não agilizou as obras da Copa (link aqui), mas vários gestores ligados aos projetos da Copa disseram o contrário, inclusive alguns com quem conversei. Creio que ainda veremos debates a respeito do RCD ter o u não ter sido uma boa opção, mas o fato de o governo ter sentido a necessidade de mudar a lei de licitação para conseguir viabilizar obras importantes para Copa sugere que quando pressionado por um prazo fatal o governo percebeu que menos do que a falta de recursos eram as complicações legais que podiam comprometer a realização da Copa.

A lista de exemplos de obras que não terminam poderia ser bem maior: Belo Monte, Estação Morumbi da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo, duplicação da BR-101 em Pernambuco, Arco Metropolitano do Rio, Transnordestina e etc. Dificuldades comuns a todas as grandes obras iniciadas e não terminadas nas últimas décadas incluem projetos mal feitos, corrupção, ações na justiça em relação a competência de quem autorizou a obra ou relativas a questões ambientais e indígenas, erros graves de execução, profusão de decisões envolvendo agências reguladoras, estados e municípios bem como as diversas procuradorias, licitações mal feitas e orçamentos iniciais inconsistente com o custo da obra. Problemas relacionados a falta de recursos são raros, talvez inexistentes.

Se o leitor ficou sensibilizado com meu argumento que não é por falta de recursos que não conseguimos realizar grandes projetos espero que o leitor, assim como eu, questione onde o novo plano de concessões trata do assunto. Modelos de concessão, planos de financiamento e fontes de recursos são questões importantes, não nego, mas sem resolver os problemas que nos levaram aos fracassos anteriores não creio que uma nova rodada de concessões terá sucesso em resolver nossos problemas. Os chineses possuem recursos suficientes para construir ferrovias que cortem o Brasil e cheguem no pacífico, é difícil não concordar que tal ferrovia tem valor econômico, mas também é difícil imaginar tal ferrovia pronta nos próximos anos, talvez na próxima década. É muito provável que o emaranhado de leis estaduais, normas de diversas agências federais e estaduais, alvarás que demoram anos para ser emitidos e ações promovidas por grupos de interesse locais acabem por espantar os investidores chineses e o caminho para o pacífico seja feito por outro lugar.

Naturalmente não estou sugerindo que abramos mão do combate a corrupção, da autonomia dos estados, da proteção ambiental ou que desrespeitemos os direitos de populações indígenas. Longe disso, mas é preciso pensar um sistema de leis que garanta as importantes questões listadas, mas que não transformem grandes investimento em um empreendimento quase impossível. É preciso encontrar formas ágeis de arbitrar interesses dos estados ou de averiguar impactos ambientais. Um regime jurídico que permite que uma obra seja construída e após a construção proíbe que a obra seja utilizada tem problemas sérios. Na minha avaliação sem resolver tais questões nossos problemas de infraestrutura e investimento em geral não serão resolvidos, pelo menos não com a eficiência necessária.




quinta-feira, 4 de junho de 2015

Reflexões a respeito do liberalismo e da liberdade

Nas últimas semanas me deparei com vários textos que em algum momento sugeriam que um determinado comportamento não é liberal. Textos assim não são novidade e costumam aparecer de tempos em tempos, porém, por alguma razão, na última semana me senti mais incomodado que o normal com o assunto. Um liberal poder ser contra o bolsa família? Um liberal pode ser favorável a proibição do aborto? Um liberal pode entrar na disputa política defendendo um partido e ignorando necessidades de mudanças profundas no sistema? Liberais são de esquerda? Liberais são de direita? Liberais são contra a existência do estado? O liberalismo é compatível com uma rede de proteção social? Liberais podem ser contra o casamento de homossexuais? Qual a definição de família para um liberal? Por alguma razão fui confrontado com todas essas questões nas últimas semanas.

Não vou cair na tentação de tentar responder as perguntas, nem mesmo vou tratar do tema de cada uma. O que pretendo aqui é fazer uma breve e presunçosa reflexão a respeito do que eu considero ser um liberal. Breve porque será curta para o tamanho adequado para tal reflexão e presunçosa porque não creio ter a maturidade com o tema necessária para tornar públicas minhas reflexões sobre o assunto. A falta de maturidade não vem de uma recém conversão as ideias liberais, pelo contrário, sou chamado de liberal há um bocado de tempo, minha identificação com as ideias liberais vem do tempo de escola, lá por meados da década de 1980, me distanciei por um curto período e depois voltei, a falta de maturidade vem do fato que nunca dediquei o tempo necessário para refletir sobre a obras de autores liberais e nem estudei formalmente tais autores para além das ideias mais básicas ou diretamente relacionadas à economia. Porém um blog é uma espécie de diário público onde é lícito registrar e compartilhar impressões e reflexões mesmo que sem o devido amadurecimento, sendo assim, um pouco por estímulo de amigos e um pouco por excesso de ousadia, resolvi registrar as reflexões seguintes.

O que é um liberal? Uma boa resposta seria dizer que liberal é alguém que defende a liberdade como um princípio fundamental da organização de uma sociedade. Como costuma acontecer com boas repostas há uma carência de precisão na resposta sugerida. Estou entre os que acreditam que definir todos os termos com absoluta precisão não é condição necessária para realizar um debate, porém para as reflexões que quero fazer preciso de uma definição mais apurada do que seja um liberal. Para isso será preciso discutir o conceito de liberdade, o que não é uma tarefa trivial. Quem quer tenha dedicado algum tempo para ler sobre o conceito de liberdade se deparou com os conceitos de liberdade negativa (liberdade de) e de liberdade positiva (liberdade para). O primeiro conceito está relacionado a liberdade de opressão externa, o segundo está relacionado a liberdade para realizar as próprias potencialidade.

O discurso de liberdade predominante nos debates atuais me parece fundado na ideia de liberdade negativa. Com justiça estamos preocupados em ficar livres da opressão do estado, grande parte do que leio em portais liberais está direcionado a criticar leis e medidas do governo que restringem nossa liberdade de fazer o que desejamos. Em meios liberais simpáticos a ideias conservadoras o debate gira em torno de leis e licenças que proíbem indivíduos e empresas de exercerem atividades que seriam possíveis em um mercado livre, grosso modo o ponto é a liberdade de produzir e comercializar que está em foco. Em meios liberais mais distantes do conservadorismo costumam aparecer discussões relativas à liberdade de manter relacionamentos e constituir família com quem quer que seja, à liberdade de comercializar algumas ervas e outras substâncias atualmente proibidas e a liberdade da mulher fazer o que quer com o próprio corpo, inclusive aborto, um tema que pode ir muito além da liberdade da mulher. Aqui é importante dizer onde me encontro, não quero sugerir que sou neutro no debate, não sou, estou entre os que priorizam as liberdades negativas. Creio que o foco da luta pela liberdade deve estar em denunciar a eliminar as opressões externas impostas pela coletividade. Sou favorável a agenda da liberdade econômica e sou favorável às liberdades individuais. Tenho uma simpatia pelos conservadores à medida que minhas escolhas me levam a uma vida compatível com a agenda moral conservadora, mas me distancio dos conservadores quando tentam transformar escolhas morais em leis. Aborto é pecado e quem pratica pode até ir para o inferno se não se arrepender aos olhos de Deus, mas não creio que deva ir para cadeia.

Ocorre que minha simpatia com a agenda de liberdade negativa não me impede de reconhecer os méritos e a importância da agenda das liberdades positivas, vou além, não creio possível a existência de liberdades negativas em um nível razoável sem a existência de um nível igualmente razoável de liberdades positivas. É perfeitamente compreensível que diante da ausência quase absoluta de liberdades positivas grande parte da população abra mão das liberdades negativas e apoie algum tirano que acaba chegando ao poder e eliminando a liberdade negativa de todos. A história registra vários casos onde isso acontece e, creio eu, que isso explica o que ocorreu na Venezuela, na Argentina e outros países bolivarianos.

Percebo que adiantei a conversa, voltemos a questão da liberdade positiva. Como um garoto nascido na velha classe média eu tive a oportunidade de realizar vários de meus potenciais, talvez não todos, se eu quisesse ser piloto de fórmula um é possível que as condições financeiras de minha família e as condições da Fortaleza dos anos 80 não permitissem. Mas esse seria um potencial um tanto específico e não creio que venha ao caso no momento, usei apenas para ilustrar as ideias que seguem. As condições financeiras e de minha família e as condições de sociais que encontrei teriam me permito ser médico, engenheiro, advogado ou me tornado um empresário, vários colegas de escola seguiram por esses caminhos. Nesse sentido eu posso dizer que tive a liberdade para ser médico, engenheiro, advogado ou empresário, não fui porque escolhi não ser. O mesmo pode ser dito de uma criança que nasceu no sertão do Ceará e migrou com a família para Fortaleza aos 15 anos fugindo de uma seca? É certo que alguém pode encontrar um exemplo e tentar argumentar a partir do exemplo que tal criança tinha as liberdades positivas que eu tive. O exemplo vai me impressionar, vai fortalecer a fé que tenho em cada indivíduo e pode até me emocionar, mas não vai me convencer. O meu veredicto é que tal criança não teve um conjunto minimamente razoável de liberdades positivas e que isso não necessariamente decorre da falta de liberdades negativas dos pais da criança. Como criticar essa criança se ao tornar-se adulta ela preferir abrir mão da liberdade de qualquer opressão em troca da liberdade para o filho dela exercer uma profissão que ela não teve a liberdade de escolher?

Eu acredito que uma sociedade que garanta liberdades negativas, onde sejamos livres da opressão, é uma sociedade onde as oportunidades para crianças nascidas pobres têm mais chances de aparecer. Porém isso não me dá o direto de negar que mesmo em sociedades livres existem os excluídos. A liberdade é o melhor caminho para igualdade de oportunidades, a garantia de um conjunto razoável de liberdades negativas é o melhor caminho para garantir as liberdades positivas. Porém a existência de um caminho, por melhor que seja, não é garantia que todas as pessoas ou mesmo um número significativo de pessoas conseguirão percorrer o caminho. O que dizer para criança que nascida no sertão do Ceará como sétimo filho de uma família cujo a lavoura foi destruída para seca e que chegou à Fortaleza com 15 anos sem educação formal? Que se vire? Que um sujeito nas mesmas condições conseguiu sucesso? Que abra seu próprio negócio? Sei que vários amigos pensam que essas seriam boas respostas, algumas vezes eu também penso, não sei se esses amigos teriam coragem de dar tais respostas se estivessem frente a frente com a criança, eu não teria.

O que fazer? Abrir mão das liberdades negativas? Ir para Cuba? Mandar a criança para Cuba? Não, nada disso, pelo menos não de forma absoluta. O indivíduo é muito importante, na minha perspectiva o indivíduo é centro da civilização, criado a imagem e semelhança de Deus, acredito que é impossível superestimar o que um indivíduo possa fazer. Indivíduos livres conseguiram vitórias importantes contra o lado tirano da natureza, indivíduos livres ganharam guerras e derrubaram tiranias, indivíduos livres criaram e destruíram preconceitos, indivíduos livres venceram os limites do corpo humano. Mas indivíduos livres também sentiram a necessidade de se associar para conseguir tudo isso, a associação acaba sendo uma forma redução nas possibilidades de estar livre de qualquer opressão. Se eu tivesse saído de casa aos 10 anos eu estaria livre das regras impostas por meus pais, porém eu talvez não estivesse livre para ter me tornado um professor de economia. Da mesma forma se eu abandonar a sociedade e resolver viver no meio do mato é possível que eu fique livre de vários constrangimentos que a sociedade me impõe, mas também é possível que eu não fique livre para refletir a respeito da liberdade e colocar minhas reflexões em um blog para compartilhar com alguns amigos. A coletividade é uma criação dos indivíduos que possibilita a conquista de liberdades positivas, mas, como efeito colateral, reduz o conjunto de liberdades negativas que desfrutamos.

Claro que devemos ter como objetivo diminuir e até mesmo eliminar os efeitos colaterais ruins das soluções que criamos. Acredito que temos tido algum sucesso. Há mil anos o conceito de liberdade individual era ofensivo, há quatrocentos anos monarcas incorporavam a coletividade e negavam liberdades negativas que são usufruídas mesmo em algumas ditaduras modernas em troca de poucas liberdades positivas, no Brasil de trinta anos atrás grande parte da sociedade acreditava que se submeter ao general de plantão era um preço justo a pagar para usufruir das benesses do progresso. O poder da coletividade ou poder da tribo já foi quase que absoluto quando da união de suas duas formas mais expressivas: a política e a religiosa. Quando o líder político descende das divindades ou resulta da vontade divina não há espaço para liberdade alguma, superamos esta fase (será?!?).

O advento do cristianismo abriu as portas para afirmação do indivíduo em uma sociedade complexa. Se no Velho Testamento o individualismo, que não é oposto de altruísmo e sim de tribalismo ou coletivismo, estava estampado na ordem amar o próximo como a ti mesmo (uma versão tribalista seria amar a tribo como a ti mesmo), no Novo Testamento o individualismo ganha força com o fim das referências ao povo de Deus e a consequente adesão à tese da salvação individual. O indivíduo será julgado pelas ações que praticou e não pelo o grupo a qual pertenceu. Se eu serei julgado por minhas ações é mais do que natural que eu tenha o direito de reivindicar o direito de praticar as ações que eu julgo justa e não as ações que a coletividade julga justa.

Aqui o leitor pode estar confuso, eu confesso que estou confuso, afinal quais as liberdades importantes? Quando as duas se complementam fica fácil responder que as duas são importantes, a liberdade para casar com alguém do mesmo sexo depende da liberdade de uma lei que proíba relações homossexuais e também depende da liberdade de uma lei que me impeça de ter meu sustento de forma independente do que pensa algum ser iluminado. O problema aparece quando as duas liberdades entram em conflito, a liberdade da criança nascida pobre para se tornar um médico pode depender da falta de liberdade de produzir sem pagar impostos. O que fazer em um caso assim?

Em casos como o que encerra o parágrafo anterior creio que não há uma solução, o que existe é um conflito eterno. Ao contrário da dialética que aprendemos onde tese e antítese formam uma síntese que será uma nova tese eu acredito que as duas teses vão ficar sempre em conflito sem produzir uma síntese, mas uma série de equilíbrios temporários. Quando a liberdade positiva entra em conflito com a negativa os defensores da liberdade vão se dividir e procurar aliados em outros grupos, no lugar uma vitória definitiva surgirá um acordo possível entre as forças que se dividiram. Na década de 1960 as ações afirmativas faziam parte do equilíbrio possível nos EUA, hoje não fazem mais, pelo menos não da mesma forma. Atualmente as ações afirmativas fazem parte do equilíbrio possível no Brasil, nada impede que em um futuro próximo deixem de fazer. As ações afirmativas não destruíram a liberdade nos EUA e não destruirão no Brasil, porém, os que perfilam do lado das liberdades negativas, é o meu caso, gostam de apontar as ações afirmativas como ameaças a liberdade. Argumento semelhante pode ser feito em relação a programas como bolsa família. Ser contra ou ser favorável ao bolsa família não faz nem desfaz um liberal, apenas coloca as pessoas em campos distintos da dialética infinita que aparece quando um tipo de liberdade enfrenta a outras. Aqui cometo uma ousadia suprema e arrisco dizer que ser liberal está menos relacionado ao lado que cada um ocupa do que a uma postura de não se opor e até apreciar o conflito de ideias.

Deus me livre de um mundo onde tudo que eu defendo se torne realidade, esse é o meu mote e esse é o mote que, creio eu, deveria marcar o discurso liberal. Quem me acompanha deve ter percebido que sou aguerrido e até agressivo na defesa de minhas ideias, porém tento sempre ser respeitoso e amigável com os que debatem comigo. Mais do que a certeza que posso estar errado me guio pela certeza que em muitas coisas eu estou errado, o mesmo acontece com meus interlocutores. A sobrevivência da eterna dialética que contrapõe as ideias depende da sobrevivência do conflito entre as ideias, quanto mais duro o conflito, mais vigoroso será o processo e mais dinâmica será a sociedade onde o conflito ocorre. Porém a sobrevivência da mesma dialética sem fim demanda que as ideias sobrevivam e para que isso ocorra é importante que os portadores das ideias não sejam intimidados.


O resultado de toda essa confusão de ideias que fiz acima é um sujeito que considera o desenvolvimentismo o maior dos males de nossa economia, mas quer que desenvolvimentistas tenham voz ativa no debate econômico. Um sujeito que tem várias críticas ao bolsa família, mas se recusa a fazer tais críticas enquanto o equilíbrio possível incluir coisas como o BNDES e a universidades gratuitas. Um sujeito que não acredita em político e partido algum, mas acredita piamente que o políticos e partidos são necessários. Um sujeito que acredita que todos devem ser livres para fazer as loucuras que desejarem, mas fica em casa de bom grado escrevendo em um blog enquanto a esposa está viajando. Um sujeito que acredita que todos devem ter o direito de consumir o que bem entender, mesmo que prejudicial à saúde, mas mal lembra a última vez que tomou um porre. O resultado de toda essa confusão sou eu.




P.S. Propositalmente não fiz citações e nem coloquei links no post, meu objetivo era não dar um ar acadêmico a reflexões que não são acadêmicas. Porém me sito obrigado a fazer alguns registros, os conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva estão em Isaiah Berlin em uma palestra chamada “Dois Conceitos de Liberdade” e foram muito bem usados por José Guilherme Merquior na análise histórica que fez do liberalismo no livro O Liberalismo Antigo e Moderno. A defesa do individualismo, inclusive o amar ao próximo versus o amar a tribo, eu tomei emprestada de Karl Popper, especificamente de Sociedade Aberta e seus Inimigos. A dialética infinita ou dialética que não gera uma síntese é muito bem explicada por Olavo de Carvalho em Jardim das Aflições.