Várias pessoas estão confusas com a passividade da população
diante dos escândalos envolvendo políticos que continuam aparecendo em doses
semanais. Só nesta semana vimos um apartamento cheio de dinheiro que foi
associado a um dos homens forte do presidente Temer, Dilma e Lula denunciados duas
vezes pelo Procurados Geral da República e Palocci reforçando o imenso clube
dos acusadores do ex-presidente que acreditou ter refundado o Brasil. Isso tudo
e ainda nem saímos dos inquilinos do Palácio do Planalto. Podemos colocar ainda
as autoacusações do dono da JBS e principal beneficiário das ações do BNDES, os
rolos de um procurador que trabalhava diretamente com Janot e um sem número de
outras denúncias, investigações e prisões. Em um certo momento parecia que até
o STF ia entrar na dança.
Com tudo isso por qual razão não vemos o povo nas ruas? Não
creio que exista uma resposta única, vários fatores de naturezas distintas
devem ser considerados. Como um economista interessado em política vou tentar
apresentar um fator que me parece relevante: a inflação. Muita gente considera
o desemprego o maior flagelo econômico, de fato o desemprego é cruel, a perda
de parte da renda de uma família pode ter efeitos devastadores e de longo
prazo. Porém, por pior que seja, o desemprego atinge muito os que perderam o
emprego e muito pouco, em alguns casos nada, os que continuaram empregados, a
inflação, por sua vez, atinge todo mundo. Empregados, desempregados e mesmo os
que estão fora da força de trabalho sofrem com a inflação. A conta do
supermercado crescendo a cada mês enquanto o salário, a pensão, a bolsa ou qualquer
que seja a renda da família fica no mesmo lugar é desesperador. Abandonar hábitos
porque o salário não chega mais ao final do mês é duro.
Na década de 1950 Alvarenga e Ranchinho registram o drama da
inflação cantando “Tá Tudo Subindo”, a música começava com os versos:
“Do jeito que nós vai indo
Com as coisa tudo subindo
Eu num sei como há de ser
Pra falar a verdade, moço
Essa vida tá um osso
Bem duro da gente roer”
A inflação medida pelo IGP-DI foi de 13,4% em 1950, ano em
que Vargas foi eleito, caiu para 11,4% em 1952 e depois disparou chegando a
21,6% em 1953 e 25,1% em 1954, até então o maior valor observado tinha sido
23,7% em 1946 com queda drástica em 1947 quando ficou em 2,2%. Dois anos
seguidos acima de 20% era novidade, vale notar que neste mesmo período a crise
política aumentou culminando no suicídio de Vargas em 1954. Na primeira grande
política do pós-guerra lá estava a inflação, “as coisas tudo subindo” e vida
transformada em osso duro de doer não estavam apenas vendo de camarote a queda
de Vargas, talvez tenham até subido ao palco.
Saiu Vargas, entrou JK e inflação continuou a subir. A
instabilidade política continuou, desde a posse JK conviveu com ameaças de
rebelião, mas conseguiu terminar o mandato. O mesmo não pode ser dito dos
sucessores dele, Jânio renunciou e João Goulart foi deposto. Em 1961, ano da
renúncia de Jânio, a inflação passou pela primeira vez de 50% ao ano. Na
sequência a inflação foi aumentando e a crise política foi se agravando. Em
1964 a inflação chegou a 86,5%, neste mesmo ano foi dado o Golpe de Estado que
tirou Goulart do Planalto e iniciou um novo período na história brasileira. A
população que tinha ido às ruas contra Goulart ficou em casa na sequência do
Golpe, talvez aliviada com a queda inflação para 36,1% já em 1965.
Com uma ditadura no poder a pressão da população contra a
inflação, não por acaso também conhecida como carestia, ficou mais difícil.
Mesmo assim o governo se esforçou para controlar a inflação que, apesar de
absurdamente alta, caiu para 16,3% em 1973. Em 1974, na sequência do Choque do
Petróleo, a inflação pulou para 34,1%. Assim começava o governo Geisel, um
governo em que a inflação aumentou enquanto ganhava força a revolta contra o
regime, a abertura lenta e gradual talvez tenha ganho um empurrãozinho da
inflação. Figueiredo começa seu governo em 1979 com inflação de 79%, muito
alta, mas ainda menor que a de 1964. Durante o governo dele a inflação acelera
e chega a 212% em 1983, mais que o dobro da de 1964. A transição lenta e
gradual que já tinha virado anistia ampla, geral e irrestrita não foi mais
capaz de segurar a população que foi para as ruas pedir “Diretas Já”, movimento
que conquistou o país em 1984, ano que a inflação foi de 227%. Mais uma vez o
povo na rua coincide com a disparada da inflação.
Chega a Nova República e a inflação aumenta cada vez mais
rápido. O Plano Cruzado faz com que a inflação caia para 60,1% em 1986 e
transforma Sarney numa espécie de Rei do Brasil. O amor se transforma em ódio
quando a inflação volta e já em 1987 chega a 431%. Talvez a Assembleia
Constituinte de 1988 tenha segurado os ânimos no ano que inflação chegou passou
de 1000% pela primeira vez e os vários movimentos “Fora Sarney” que existiam na
época tenham sido derrotados. Sarney termina o governo de forma melancólica e
no seu lugar chega Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde
a década de 1960. Em março de 1990 Collor toma posse com um plano para lá de
desastrado para combater a inflação, por desastrado que tenha sido o Plano
Collor a inflação caiu de 1216% em 1990 para 496% em 1991, mas a queda foi
breve, em 1992 a inflação já era de 1167% e o povo foi para as ruas puxado
pelos jovens estudantes de caras pintadas e pediu a saída de Collor. Pediu e
conseguiu, Collor, o primeiro presidente eleito diretamente desde a década de
60, sofreu um impeachment.
Itamar chega com pressão para acabar com a inflação, mas em
1993 a inflação chegou a 2851%. O governo Itamar estava ameaçado, inclusive com
pedido de impeachment protocolado pelo PT. Dois impeachments seguidos pareciam
demais e Itamar teve folego para chegar a 1994 com o Plano Real. Em 1994 a inflação
foi de 908%, em 1995 foi de 15% e por muito tempo a inflação ficou abaixo de
15%. O resultado foi que Itamar elegeu FHC, que tinha sido ministro de Itamar e
era visto como criador do Plano Real, no primeiro turno. Em 1998 FHC concorreu à
reeleição, a inflação medida pelo IGP-DI era 1,83% ao ano, FHC foi novamente
eleito no primeiro turno, feito que nem Lula no auge da popularidade conseguiu
repetir. No segundo governo de FHC a inflação voltou, em 1999 o IGP-DI foi de
27%, a população começou a abandonar FHC e o PT entrou com pedido de
impeachment. A primeira fase do Plano Real acabou, Armínio Fraga foi para o
Banco Central e implementou o regime de metas de inflação, em 2000 o IGP-D
tinha caído para 9,5% e o governo respirou. A folga foi breve, em 2002 a inflação
voltou para 27% e o homem que ganhou duas eleições em primeiro turno não
conseguiu fazer o sucessor e foi transformado em uma espécie de inimigo público
pelo governo que o sucedeu. Mais uma vez a inflação alta andou junto com
mudanças na política.
Lula chegou e priorizou o combate à inflação. Colocou
Meirelles, um homem que vinha do mercado financeiro na presidência do Banco
Central, e o bancou mesmo contra o Vice-Presidente da República no esforço de
redução da inflação. Em 2005 a inflação foi de 1,4%, em 2006 foi de 3,6% e
mesmo com o Mensalão nos jornais Lula foi reeleito. Em 2009 o IGP-DI tem o
único valor negativo da série, é verdade que foi para 11,2% em 2010, mas muito
desta variação estava ligada a ajustes da crise de 2008 e não chegou ao
consumidor, naquele ano o IPCA foi de 5,9%. Lula faz sua sucessora e ela
resolve colocar crescimento como prioridade. O resultado desastroso é conhecido
por todos, o crescimento não chega a inflação cresce. Em 2015 o IGP-DI chega a
11,2%, desta vez a conta chegou no consumidor e o IPCA chega a 10,7%, a última
vez que o IPCA tinha passado de 10% tinha sido em 2002, o ano que Lula foi
eleito. Longe de uma mudança de governo e com a inflação em alta a população
foi às ruas pedindo a saída de Dilma que, como Collor, sofreu impeachment. Mais
uma vez a crise política andou junto com a inflação. A figura abaixo ilustra a
histórica que contei, repare que uma das grandes crises políticas é precedida
por um aumento significativo da inflação.
Antes que alguém tire conclusões apressadas reforço que não
é objetivo desse post dizer que a inflação sozinha explica as grandes crises
políticas. Bem mais modesto que isso o post tem como objetivo mostrar que
inflação é um dos ingredientes que levam a grandes crises políticas. Talvez a
falta desse ingrediente ajude a explicar porque Temer não é alvo de protestos
de rua, se for verdade que fique de lição para os próximos presidentes.