sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Sim, a bolsa está caindo, mas é hora de ter calma... ou de comprar uma W-870 Shotgun.


Não costumo falar de mercado aqui no blog, tem muita gente melhor e mais informada do que eu dando dicas de investimento na internet. Ocorre que vez por outra os movimentos de mercado começam a chamar muita atenção e passam a interessar até mesmo um macroeconomista que acha que swap reverso é alguma coisa que não se deve comentar em público. Foi o caso desta semana quando houve uma forte na queda na bolsa que foi associada a uma nova crise por algumas pessoas. Curiosamente boa parte desses analistas até pouco tempo consideravam os movimentos dos preços das ações irrelevantes para rapazes (e moças) latinos sem dinheiro no banco e muito menos em ações, mas isso é assunto para outro lugar.

A verdade é que movimentos nas bolsas importam, mas é preciso considerar a natureza desses movimentos. No caso em questão interessa saber se o movimento é de curto prazo ou de longo prazo e se é localizado ou global. Quanto ao primeiro ponto não tenho muito a dizer, como (quase) todo mundo não sei se é uma gripe boba que passa rápido ou um novo episódio de Resident Evil, de toda forma, se for a segunda opção, preços de ações não vão ser sua maior preocupação nos próximos anos, salvo se for para vender e comprar uma "W-870 Shotgun”. Em relação ao segundo ponto os dados até agora sugerem um fenômeno global, ou seja, se vier o fim do mundo não será por culpa da PEC do teto de Gastos.

Sendo um fenômeno global resta saber se a intensidade por aqui é muito maior (ou menor) que em outros países. A página do Yahoo Finance (link aqui) lista 35 índices de preços de ações pelo mundo, desses 31 tinham dados disponíveis para sexta-feira antes do carnaval, 21/02/2020, e para quinta-feira, 27/02/2020. Dos 31 apenas o CBOE Volatility Index, também conhecido como VIX, cresceu no período, o que é natural por ser um índice que capta a volatilidade do S&P 500. Todos os outros índices tiveram queda no período e estão na figura abaixo.




As variações são mensuradas em moeda local, ou seja, desconsideram os efeitos de alterações câmbio. Se o objetivo for comparar ganhos e perdas de quem colocou dinheiro em cada bolsa de valores ignorar os efeitos das variações cambiais pode ser um problema sério, mas nosso objetivo é tão somente avaliar a reação de cada bolsa ao coronavírus. Repare que a queda do IBOVESPA, o índice usado no Brasil, foi maior que a média, mas não está muito longe (menos de um desvio padrão). Índices importantes Nasdaq e S&P 500 tiveram quedas maiores que a nossa.

Confesso que não conheço bem com são construídos esses índices e, sem olhar na internet, não consigo identificar nem mesmo de quais países são todos os índices. Desta forma, não dá para ir muito além de comparações com a média ou coisas do tipo. Para dar uma visão mais concreta do que está acontecendo a figura abaixo mostra a variação de seis índices de diferentes países (lembre que é em moeda local). A escolha dos índices não tem um critério objetivo, na verdade foram os cinco índices que lembrei para fazer o post, só depois percebi que seria mais adequado mostrar todos os disponíveis para reduzir problemas de viés na seleção dos índices. Como afigura já estava pronta decidi colocar no post na esperança de dar uma comparação mais concreta para quem, como eu, não está acostumado com todos esses índices.




Como o leitor pode constatar a figura com os índices e países selecionados não distorce o resultado que a queda por aqui foi maior que a média, mas nada que assuste, e ilustra melhor nosso desempenho comparado ao de outros países. Caso discorde não precisa ficar nervoso, apenas ignore essa figura e fique com a anterior. Lembre que isso é um post em um blog e não um artigo submetido para alguma revista.

Em resumo, até o momento a queda na bolsa por aqui parece acompanhar o que está acontecendo no resto do mundo. Claro que qualquer um pode especular que a partir daí problemas locais podem aprofundar a queda e comprometer a recuperação da economia, mas até agora esse tipo de conclusão não passa de especulação.

Um último registro é sobre o momento particularmente infeliz para um choque deste tipo. Nos últimos meses, com a queda dos juros, muita gente entrou na bolsa em busca de maiores ganhos, isso é bom, mas, como estão acostumadas com o mundo da renda fixas, algumas dessas pessoas podem se assustar demais com a queda dos preços. Não sou analista financeiro, meu olhar é de um macroeconomista, mas, até pelo que li de quem entende do assunto, não é hora de vender no desespero. Tenta manter a calma, se preciso tome umas doses de uísque ou um Rivotril, e vai tentando ler para saber o melhor a ser feito. Sei que assusta, mas pode ser um bom aprendizado, afinal, se tudo der certo, investir em ações pode ser seu caminho para taxas melhores por muito tempo.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Resultado primário de janeiro de 2020.


Hoje a imprensa noticiou um superávit primário para recorde para janeiro (link aqui). De fato, já corrigido pela inflação, o maior superávit para janeiro até então tinha sido de R$ 38,3 bilhões em 2013, neste janeiro foi de R$ 44,1 bilhões. A figura abaixo mostra o superávit primário para janeiro desde 2015 quando começou o ajuste fiscal. Como o leitor pode observar o aumento foi de mais de R$ 10 bilhões, um feito que merece registro.



Outro ponto importante é que, embora tenha ocorrido um aumento real de 6,4% da receita líquida, houve uma redução real de 3,3% nos gastos, ou seja, é um ajuste que depende muito das receitas, mas também tem contribuição do gasto. A figura abaixo mostra a receita líquida e a despesa total desde 2015. Repare que a receita líquida está no maior valor da série para o período, o que mostra o ajuste via receitas, mas a despesa total está no menor valor, o que mostra que o ajuste também está sendo feito via gastos. Se o governo conseguir manter esse ritmo durante o ano talvez tenhamos um ajuste fiscal com redução de gastos, fenômeno que não ocorreu em 2019 (link aqui e aqui).




Olhando a composição da despesa a figura mostra que houve redução em todos os itens com exceção dos benefícios previdenciários. A reforma da previdência deve amenizar esse crescimento, mas não deve reduzir os gastos dessa conta de forma que será preciso continuar ajustando nos outros itens para manter os gastos em queda. A maior queda foi no item ”Outras Despesas Obrigatórias”, como esse item é composto por muitas categorias não dá para detalhar aqui. Destaque negativo para o impacto do FIES no gasto primário que foi negativo em cerca de R$ 40 milhões em janeiro do ano passado e passou para R$ 111 milhões em janeiro deste ano e Fundo Constitucional do DF que subiu de R$ 44 milhões para R$ 85 milhões. Do ponto positivo as compensações ao RGPS pelas desonerações caíram de R$ 1049 milhões em janeiro de 2019 para R$ 624 milhões em janeiro deste ano.




O item “Despesas do Poder Executivo Sujeitas à Programação Financeira” é composto por duas categorias: “Obrigatórias com Controle de Fluxo”, que teve queda de 8,7% na comparação entre janeiro de 2019 e janeiro de 2020, e “Discricionárias”, que teve aumento de 16,2%. A figura abaixo mostra a variação nos componentes da despesa discricionária.




A figura mostra que na comparação entre janeiro de 2019 e janeiro de 2020 houve aumento de gastos em saúde, defesa, transporte e segurança pública e queda de gastos em educação, administração, ciência e tecnologia e assistência social. Naturalmente não dá para especular sobre preferências do governo na comparação de janeiro contra janeiro, fico devendo um post com a comparação dos gastos discricionários e investimento nesses setores entre 2019 e os anos anteriores.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Precisamos falar sobre má alocação de recursos.

Ontem a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda publicou uma Nota Informativa intitulada: “Redução da má alocação de recursos (misallocation) para a retomada do crescimento da produtividade na economia brasileira” (link aqui). Tão logo terminei de ler corri para o Twitter e para o FB para divulgar a nota e pedir que os amigos fizessem o mesmo. Tanta pressão não foi por acaso, a má alocação de capital é um problema central da economia brasileira e é muito bom que o pessoal do governo tenha colocado o assunto em pauta.

Grosso modo má alocação de recursos, geralmente capital ou trabalho, significa que esses recursos estão sendo usados de forma ineficiente, mal comparando é como dirigir uma Ferrari em Monza a 60 km/h. É difícil explicar a existência de má alocação de recursos. Por que um empresário colocaria dinheiro em um projeto pouco eficiente? Por que alguém escolhe trabalhar em algo que não dá retorno nem pessoal nem profissional? Por que alguém pagaria para dirigir uma Ferrari em Monza a 60 km/h? Tais comportamentos não são compatíveis com as hipóteses de racionalidade que costumam guiar os economistas, a não ser que... alguém que não está preocupado com eficiência ofereça os incentivos para que as pessoas façam o que não fariam em outras circunstâncias. Talvez o sujeito dirigindo a Ferrari a 60 km/h em Monza tenha ganho um prêmio em um sorteio e não podia vender.

A má alocação de recursos costuma ser associada a políticas públicas, muitas vezes governos oferecem inventivos com foco em resultados de curto prazo, talvez as eleições sejam no final do ano, e não levam em conta os efeitos desses incentivos sobre a eficiência da economia. Já no começo do século XX economistas a Escola Austríaca apontavam a misallocation como fonte de problemas da economia. Vejam esse trecho d no texto “Economic depressions: their cause and cure” que está no livro The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays publicado em 1996 pelo Ludwig von Mises Institute onde Rothbard comenta os efeitos de uma queda artificial da taxa de juros por conta de um intervenção do Banco Central.

“For businessmen, seeing the rate of interest fall, react as always would and must to such a change of market signals: They invest more in capital and producers’ goods. Investments, particularly in lengthy and time-consuming projects, which previously look unprofitable now seem profitable, because of the fall of the interest charge. In short, businessmen react as they would react if savings had genuinely increased: They expand their investment in durable equipment, in capital goods, in industrial raw material, in construction as compared to their direct production of consumers good”

Sei que alguns colegas ficam irritados só de ouvir falar em Rothbard, mas um economista bem mais convencional como Hayek subscreveria essa passagem. A ideia de que juros artificialmente baixos induzem investimentos errados está na base da Teoria Austríaca do Ciclo Econômico (TACE) que Hayek, Mises e outros economistas austríacos elaboraram e divulgaram. Estritamente falando a TACE é uma teoria de má alocação de capital. As razões dessa teoria não ter prosperado na academia como uma das teorias de referência para explicar ciclos e depressões é assunto para outro post, aqui apenas quis registrar que misallocation é um conceito mais antigos do que alguns imaginam. Também para cutucar a redução de juros patrocinada pelo Banco central, não vou negar porque é feio mentir.

Em tempos modernos a questão da má alocação de capital ganhou destaque com um artigo escrito pelo Hsieh e pelo Klenow que foi publicado no Quarterly Journal of Economics em 2009 e intitulado “Missalocation and Manufacturing TFP in India and China” (link aqui). No artigo os autores afirmam que má alocação de capital, ou seja, capital destinado a projetos pouco eficientes reduzem de forma significativa a produtividade na China e na Índia. Especificamente os autores concluem que se o investimento nesses países fosse tão eficiente quanto nos EUA a produtividade da manufatura na China teria ganhos entre 30% e 50%, na Índia esses ganhos seriam entre 40% e 60%.

Ao contrário dos austríacos que centravam o foco em juros artificialmente baixos por conta do Banco Central tentando estimular a economia (não precisava ter escrito isso de novo, eu sei, mas eu sou chato), Hsieh e Klenow apontam várias razões para a existência de má alocação de recursos. Por exemplo, eles citam um estudo da McKinsey que afirma que a razão para baixa produtividade do varejo no Brasil pode estar na legislação trabalhista que aumenta o custo do trabalho para grandes supermercados em relação a pequenos comércios informais, causando um deslocamento de capital e trabalho para esses pequenos comércios que muitas vezes apresentam baixa produtividade. Outro fator que eles apontam, e que é particularmente relevante para o Brasil, é a presença de crédito subsidiado que pode desviar capital para setores ou empresas menos produtivas.

Não é preciso conhecer a literatura especializada para pensar em exemplos de má alocação de capital no Brasil, basta ler jornais. Projetos como o Comperj, vários estádios construídos para a Copa de 2014, Rio Maravilha, refinaria Abreu e Lima, refinarias Premium I e II (felizmente abandonadas antes de causar mais estragos), ferrovias que nunca ficam prontas, Belo Monte, são exemplos de capital e trabalha mal alocados. É difícil até mesmo imaginar alguém botando dinheiro do próprio bolso ou pagando juros de mercado para investir em um desses projetos, se não acredita em mim e quer um exemplo de entende das coisas clique aqui.

Se o leitor não se contenta com exemplo anedóticos e quer literatura deixo duas referências, tem mais, mas isso é um post de blog e não um capítulo de dissertação. A primeira é uma dissertação escrita por Addisu Lashitew e intitulada “Resource misallocation and aggregate productivity” (link aqui), lá são estimadas as perdas de eficiência em vários países por conta de má alocação de capital. A estimativa para o Brasil, realizada com dados de 2003, mostra que nossa produtividade é 62% da que seria se tivéssemos uma alocação eficiente de capital. Com foco apenas no Brasil, Rafael Vasconcelos, da Universidade Federal de Pernambuco, escreveu o artigo “Misallocation in the Brazilian manufacturing sector“, que foi publicado em 2017 na Brazilian Review of Econometrics (link aqui). Dois resultados desse texto merecem destaque: a má alocação de recursos no Brasil vinha em trajetória de queda até 2005, quando começou a subir, e a manufatura brasileira trabalha com um nível de produtividade que ´50% do que poderia ser caso nosso investimento fosse eficiente.

É com essa discussão em mente que a nota da SPE deve ser lida. A literatura especializada aponta que o Brasil pode ter ganhos significativos de produtividade (e produto) se conseguir reverter incentivos que induzem à má alocação de capital e trabalho. A SPE não apenas reconhece essa possibilidade como tenta relacionar o assunto com doze políticas do governo que podem reduzir a má alocação de capital.

Claro que políticas diferentes possuem impactos diferentes e que vale discordar da relevância de algumas políticas listadas, é do jogo, mas o fundamental é colocar a questão da má alocação em destaque e tentar avaliar os impactos da política econômica sobre alocação de recursos e produtividade. Só esse cuidado nos afasta da “maldição de Córdoba e Kehoe” (link aqui) que diz que se não consideramos os efeitos da política econômica na produtividade no longo prazo estaremos todos em uma grande depressão. Se entre 2009 e 2014 os economistas do governo tivessem tomado esse cuidado não estaríamos em outra década perdida.

O post já está longo e, também por isso, não vou comentar uma a uma as políticas listadas pela SPE, mas algumas merecem destaque. A redução do direcionamento do crédito é fundamental, desde os austríacos o papel do custo do capital tem destaque na literatura de misallocation, o crédito direcionado causa um efeito semelhante ao descrito por Rothbard, porém, além de bens errados, os empresários colocam o dinheiro em stores errados. A reforma tributária também pode ser uma peça importante na redução da má alocação de recursos, o próprio relatório da McKinsey citado em Hisieh e Klenow dá a pista de como a estrutura tributária brasileira pode levar a misallocation.

As privatizações são fundamentais, já ficou mais do que claro que as instituições brasileiras são incompatíveis com estatais eficientes, invariavelmente o inquilino do Planalto usa essas empresas para agradar empresários-amigos em projetos voltados para muita coisa, menos eficiência, vide Comperj. Outra política fundamental lembrada pela SPE é a abertura da economia, mais abertura leva a mais competição e menos espaço para investimentos ruins, espero que a turma da SPE convença Paulo Guedes a retomar o antigo discurso de salvar a indústria dos industriais e esquecer essa conversa de que só pode abrir a economia depois de resolver todos os nossos problemas e do Botafogo ganhar a Libertadores e Mundial. O aprimoramento da lei de recuperação judicial e a revisão das normas regulamentadoras do trabalho também merecem destaque.

Enfim, a agenda de redução de má alocação de recursos é fundamental e está recebendo atenção da equipe do Ministério da Economia. O que posso fazer para ajudar é tentar divulgar o assunto e pedir, pelo menos para os que ficaram sensibilizados com a relevância do tema, que façam o mesmo. Reduzir a má alocação de recursos é um dos grandes desafios para que o Brasil entre em uma trajetória de crescimento de longo, um desafio que passa pelas políticas aqui citadas.