Um dos fenômenos revelados pela greve dos caminhoneiros foi
a força dos movimentos que pedem uma intervenção militar. O que nas
manifestações de 2015 e 2016 parecia o desejo de uma minoria excêntrica e
inexpressiva tomou ares ameaçadores nas manifestações dos caminhoneiros. O
sinal de alerta disparou com a declaração de José da Fonseca Lopes, presidente
da Associação Brasileira do Caminhoneiros (Abcam), repercutida por vários
órgãos de imprensa (link aqui). Segundo José da Fonseca Lopes:
“Não é o caminhoneiro mais que está fazendo greve. Tem um
grupo muito forte de intervencionistas aí e eu vi isso aqui em Brasília, e eles
estão prendendo caminhão em tudo que é lugar. [...] São pessoas que querem
derrubar o governo. Não tenho nada a ver com essas pessoas nem os nossos
caminhoneiros autônomos têm. Mas estão sendo usados para isso.”
No mesmo dia que levou ao ar essa declaração o Jornal
Nacional mostrou imagens de concentração de caminhões onde era possível ler
pedidos por uma intervenção militar. Não creio que uma parcela significativa da
população apoie tal intervenção, mas é difícil não ficar preocupado com a ideia
que a parcela que apoia tem mais poder de fogo do que eu imaginava.
Como muitos dos que defendem uma intervenção militar costumam
argumentar com variáveis econômicas resolvi fazer um apanhado de dados para
descrever a economia do Brasil antes e depois do Golpe de 1964. Sei que as
pessoas estão acostumadas a comparar os dados do regime militar com os dados do
período que veio depois desse regime, a Nova República. Não creio que seja a
melhor comparação, muitos dos problemas econômicos da Nova República foram herdados
dos governos militares, além do mais me parece bastante razoável comparar o
período dos militares com o Brasil de antes da intervenção , que, para o bem ou
para o mal, não teve influência das políticas do regime militar do que com o
período posterior que, também para o bem o para o mal, sofreu influência destas
políticas.
Antes de começar a comparação é válido fazer uma breve
descrição do Brasil antes do Golpe de 1964. De 1930 a 1945 o Brasil viveu sobre
o Estado Novo, uma ditadura liderada por Getúlio Vargas que iniciou a transição
do Brasil rural da República Velha para o Brasil urbano dos dias de hoje. Em
1945 a onda de democracia que tomou conta do mundo ocidental ajudou a derrubar
Vargas de forma que em 1946 o Marechal Eurico Gaspar Dutra, que foi Ministro da
Guerra de Vargas entre 1936 e 1945, começa seu mandato como presidente eleito. AS
eleições de 1945 foram disputadas por Dutra, que era do Partido Social Democrático
(PSD), e o Brigadeiro Eduardo Gomes, que era da União Democrática Nacional
(UDN). A disputa dura entre o PSD, muitas vezes aliado ao Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) de Vargas marcou o Brasil do pós-guerra e gerou um crescente de tensões
que desaguou no Golpe de 1964.
Tais tensões começam a tomar força quando Vargas volta ao
poder em 1951, desta vez eleito. O duro embate entre as forças que apoiavam
Vargas, marcadamente o PTB e o PSD, com as forças de oposição ao antigo ditador
chegou ao ápice com o suicídio de Vargas em 1954. Na sequência desse momento
dramático tivemos três presidentes, Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos, até
que, não sem ameaças, Juscelino Kubitschek (PSD) tomasse posse como presidente em
1956 após derrotar Juarez Távora (UDN) em 1955. Kubitschek terminou o mandato
dele e foi sucedido por Jânio Quadros, uma espécie de outsider do pequeno Partido
Trabalhista Nacional (PTN) que era visto pela UDN como a forma de barrar a
dobradinha PSD-PTB no governo. De fato, Jânio derrotou o General Henrique
Teixeira Lott do PSD. O PTB não lançou candidato à presidência, mas lançou a
vice-presidência, naquelas eleições se votava para presidente e para
vice-presidente. A estratégia do PTB funcionou e João Goulart foi eleito
vice-presidente. Jânio Quadros renuncia em agosto de 1961, Ranieri Mazzilli
(PSD) assume a presidência por cerca de uma semana até que João Goulart retorne
do exterior e tome posse como presidente em setembro de 1961. A forte
resistência à João Goulart, visto como um extremista de esquerda, levou o
Brasil a um parlamentarismo que foi rejeitado pela população em plebiscito. João
Goulart se torna presidente de fato, mas é deposto em março (ou abril?) de
1964. No dia quinze de abril de 1964 o Marechal Humberto Castelo Branco toma
posse e inicia um regime que se transforma em uma ditadura e só acaba em março
de 1985 quando José Sarney toma posse como presidente sucedendo o General João
Batista Figueiredo
Durante o período democrático do pós-guerra que durou de
janeiro de 1946 a março de 1964, menos de vinte anos, tivemos nove presidentes,
um suicídio durante o mandato, um vice afastado, Café Filho, um presidente da Câmara,
Carlos Luz, deposto acusado de tentar impedir a posse do presidente eleito, um
presidente que renunciou, Jânio Quadros, e um vice-presidente deposto pelo Golpe
de 1964. Mesmo para os tensos tempos que vivemos me parece justo dizer que foi
um período conturbado. Em 1963 a economia desandou, a taxa de crescimento do
PIB naquele ano foi de 0,6%, até então a menor do pós-guerra, e a inflação
chegou a 82% ao ano. O caos político e o colapso da economia foram usados como
justificativa para o Golpe de 1964. Não vou analisar como o regime militar
afetou a política do país, deixo essa tarefa para quem é do ramo, pela mesma razão
não vou entrar nas graves violações aos direitos humanos e as liberdades civis
e individuais cometidas pelos governos militares, existem várias análises dessa
parte triste de nossa história por esta perspectiva. Meu foco vai ser a parte
econômica, aquela que costuma ser apontada como um sucesso.
Comecemos com um resumo do período entre 1946 e 1963, que
vou chamar de período democrático, e o período entre 1964 e 1984 que vou chamar
de período do regime militar. Não vou usar o termo ditadura para não entrar na
discussão se todo o regime foi ditadura ou se apenas um subperíodo pode ser
assim chamado, embora acredite ser correto chamar todo o período de ditadura deixo
essa discussão para os mais qualificados do que eu. A tabela abaixo faz a
comparação:
Variável
|
Medida
|
Período Democrático
|
Regime Militar
|
Taxa de crescimento do PIB per capita.
|
Média
|
4,1%
|
3,8%
|
Mediana
|
4,5%
|
4,0%
|
|
Máximo
|
9,0%
|
11,1%
|
|
Mínimo
|
-2,3%
|
-6,4%
|
|
Inflação (IGP-DI)
|
Média
|
25,2%
|
61.5%
|
Mediana
|
22,7%
|
36,5%
|
|
Máximo
|
82,0%
|
228,0%
|
|
Mínimo
|
2,2%
|
15,7%
|
|
Dívida/PIB
|
Média
|
18,0%
|
31,7%
|
Mediana
|
17,9%
|
25,0%
|
|
Máximo
|
34,6%
|
91,7%
|
|
Mínimo
|
5,5%
|
16,4%
|
Na tabela coloquei várias medidas porque, como vai ficar
claro nos gráficos, a média nem sempre mostra bem o que aconteceu com a
variável, mas para fins de análise desse parágrafo vou me limitar a média. O resultado
é cruel para a tese que os governos militares tiveram a economia como ponto
forte. No período do regime militar a economia cresceu menos, teve mais
inflação e o governo ficou mais endividado que no período entre 1946 e 1963. A
dita estabilidade política trazida pelos militares não entregou melhores
resultados que a “bagunça” vivida no período democrático em termos de
crescimento e inflação e ainda nos deixou bem mais endividados que do éramos.
Uma olhada em cada variável individualmente deixa uma
impressão ainda pior sobre o desempenho da economia no regime militar.
Comecemos pela taxa de crescimento do PIB per capita. A figura abaixo mostra
essa variável antes e depois do Golpe de 1964, repare que o grande crescimento
no começo da década de 70, responsável pela fama de milagreiro de Delfim Netto
e pela memória de prosperidade do regime militar, não se sustentou nos anos
seguintes e a média de crescimento do regime militar ficou ligeiramente abaixo
da média do período democrático.
Na inflação o desastre foi ainda maior. O regime que chegou
para acabar com a inflação de 81% observada em 1963 entregou a economia com uma
inflação de 228% ao ano. Mais uma vez as boas lembranças parecem vindas de um
período que não se mostrou sustentável. A verdade é que boa parte das
dificuldades econômicas iniciais da Nova República ocorreram por conta do
estado lastimável da economia após mais de vinte anos de governos militares.
Erros da década de 70 com subsídios, projetos megalomaníacos, incentivos a indústria,
controle de preços de combustíveis e outros do tipo levaram a década perdida de
1980 assim como os erros do segundo mandato de Lula e do primeiro mandato de
Dilma levaram a atual década perdida. É verdade que a Nova República cometeu erros
graves que nos levaram à hiperinflação, mas tais erros foram cometidos na
tentativa de controlar a inflação legada pelo regime militar.
Para avaliar a dívida vou usar duas variáveis. Primeiro a
dívida externa calculada como a dívida externa reconhecida e o PIB em dólares,
ambos disponibilizados pelo Ipeadata. Por esta medida a dívida externa foi de 16%
do PIB em 1965 para 48% do PIB em 1984, no período democrático o maior valor
observado foi de 22,4% em 1958. A figura abaixo mostra o comportamento da dívida
externa nos dois períodos.
A outra medida foi obtida na página do livro This Time is Different, Carmen Reinhart
e Kenneth Rogoff, e mostra a dívida total, interna e externa, do governo
central como proporção do PIB. Por esta medida a dívida foi de 21% do PIB em
1965 para 91% do PIB em 1984, no período democrático o maior valor observado
foi de 34,6% em 1956. Juscelino, constantemente acusado de endividar o Brasil
para fazer os 50 anos em 5, levou a dívida total de 17% em 1955, ano anterior à
posse dele, para 22% em 1960, último ano completo que governou. Nos cinco anos
entre 1980 e 1984 o general Figueiredo, último presidente do regime militar,
levou a dívida total de 48% do PIB para 91% do PIB. Se usarmos a medida de
dívida externa Juscelino levou de 12% do PIB para 20% do PIB e Figueiredo,
entre 1980 e 1984, levou de 23% do PIB para 48% do PIB.
É certo que comparar períodos distintos impõe alguns riscos,
a realidade do mundo era diferente no período entre 1946 e 1963 da que foi no
período de 1965 a 1984. Creio, porém, que tais diferenças não mudam a mensagem
final do post: o regime militar está longe de ser um exemplo de gestão da
economia. Os erros graves de política econômica observados principalmente a
partir do governo Médici são responsáveis pela grande crise da década de 1980.
Mesmo os que argumentam a culpa da crise de 1980 foi da dívida não podem negar
que o regime militar aumentou consideravelmente nossa dívida. Uma análise mais
profunda do período do regime militar e das consequências dele sobre a economia
da Nova República pode ser feita em outros lugares, é um tema em que já
publiquei alguns artigos que estão resumidos no nono capítulo do livro Desenvolvimento
Econômico: Uma Perspectiva Brasileira (link aqui), para o blog espero que os
números que mostrei sejam suficientes para mudar a percepção de o regime
militar foi um sucesso em termos econômicos. A verdade é que mão foi, muito
pelo contrário, o regime militar não apenas teve um desempenho ruim enquanto durou
como plantou boa parte dos problemas institucionais que até hoje travam nossa economia.