Tenho visto algumas comemorações por conta do saldo da
balança comercial que foi positivo e acima do previsto. Em termos gerais
associar saldos positivos da balança comercial a progresso e crescimento
econômico é um resquício da lógica mercantilista que ainda assombra o
pensamento econômico. Nunca é demais lembrar que a obra geralmente aceita como
fundadora da ciência econômica, Um Inquérito sobre a Natureza e as Causas da
Riqueza das Nações de Adam Smith, tinha como objetivo central argumentar que a riqueza
das nações não vinha de saldos comerciais positivos e sim de ganhos de
produtividade. Porém, em algumas condições, um país acaba sendo obrigado a
buscar saldos comerciais positivos, a obrigação não é imposta por economistas
ou governantes e sim pela dinâmica do próprio mercado.
A necessidade de saldos comerciais positivos costuma
aparecer quando um país pega dinheiro no exterior e usa tais recursos para
atividades que não geram um retorno econômico compatível com o custo do dinheiro
que foi trazido do exterior. Se uma empresa brasileira pega dinheiro no
exterior para aplicar em um projeto de alto retorno a renda gerada pelo projeto
será suficiente para equilibrar os pagamentos do empréstimo, juros e principal,
sem grandes problemas e sem necessidade de mudanças no câmbio. Se o recurso é
usado em projetos sem retorno será preciso conseguir dinheiro em outro lugar ou
esperar por ajustes no câmbio para que o problema seja resolvido.
A variável econômica que mede o quanto de recursos um país
pega ou manda para o exterior é o saldo em transações correntes, além da
balança comercial as transações correntes incluem o dinheiro enviado a recebido
à guisa de juros ou de outras remunerações de fatores. Quando o saldo em
transações correntes é positivo o país está mandando renda para o exterior,
pode ser como empréstimos ou como pagamento de empréstimos, quando o saldo é
negativo o país está recebendo renda do exterior. O gráfico abaixo, retirado
diretamente da página do Banco Central, mostra o saldo em transações correntes como
proporção do PIB. Trata-se de uma das melhores maneiras de entender nossa
história econômica recente.
A década de 1950 é lembrada como um período de prosperidade,
Getúlio Vargas até hoje é chamado de pais dos pobres e Juscelino Kubitschek é
lembrado pelos 50 anos em 5. Repare que na década de 50 o saldo em transações correntes
era negativo, ou seja, estávamos sendo financiados pelo resto do mundo, a conta
chegou no início da década de 1960, lembrada por crises e um golpe militar. O
governo militar reabriu as possibilidades de financiamento externo que foram
facilitadas pela crise do petróleo que colocou as grandes economias mundiais em
recessão no começo da década de 1970. O gráfico mostra claramente como foi o
financiamento do Milagre Brasileiro e porque até hoje os governos militares são
lembrados como um período de prosperidade. A conta do regime militar chegou no
começo da década de 1980, a fim da crise nos países ricos trouxe inflação por
lá e como consequência ocorreu um aumento da taxa de juros no mundo, faz um
Google por Paul Volcker para conhecer esta história, o dinheiro fácil sumiu e
lá fomos nós ter de pagar nossa conta. Não por acaso a década de 1980 é
lembrada como a década perdida.
No início da década de 1990 o ciclo começa a se repetir,
desta vez no lugar de comprar infraestrutura como em JK e nos governos
militares decidimos “comprar” estabilidade econômica. Mais uma vez o saldo em
transações correntes ficou negativo, ou seja, estávamos novamente nos
financiando com o resto do mundo. A conta da década de 1990 chegou no começo do
século XXI na sequência da crise dos países emergentes. Foi por esta época que
FHC apareceu com o lema “exportar ou morrer”, mais uma vez caminhávamos para
uma crise econômica e política. Em 1999, logo após as eleições de 1998, o PT
pediu o impeachment de FHC e a popularidade do governo entrou em queda livre
(qualquer semelhança não é mera coincidência), em 2002 acabava o período tucano
que em seu auge alguém falou que iria durar mil anos. Lula chega ao poder com o
abacaxi de um ajuste nas mãos, seguido o rumo normal provavelmente teríamos
mais uma década de crise, se bem trabalhada a estabilidade seria mantida, mas a
recessão era inevitável. Daí o “milagre” aconteceu com o boom das commodities e
os juros baixos nos EUA e por consequência no mundo. O boom das commodities
garantiu o saldo da balança comercial sem sacrifícios, no lugar do dramático “exportar
ou morrer” tivemos o maravilhoso “exportar, importar e viver bem”, a queda dos
juros permitiu acesso a capital barato, ou seja, menos juros pagos para o
exterior e taxas menores por aqui. O pagamento da conta foi adiado.
Já falei diversas vezes, mas nunca é demais lembrar, que
aqui perdemos uma oportunidade de ouro de colocar o Brasil em uma rota de crescimento
de longo prazo. Como a economia estava estabilizada não havia mais a necessidade
de “comprar” estabilidade, o regime de câmbio flutuante nos liberou de elevar
juros para defender o real aliviando a pressão dos juros na dívida pública. A
situação fiscal relativamente controlada exigia alguma atenção, o que foi feito
em 2003, mas não era uma barreira definitiva ao crescimento. Em 2005 Palocci,
então Ministro da Fazenda, propôs um ajuste fiscal de dez anos que se tivesse
sido feito teria legado uma situação muito mais favorável para enfrentar a
época de ajuste. Infelizmente a Ministra Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
conseguiu barrar o ajuste. O fato é que a partir de 2006 abandonamos a agenda
de reformas e voltamos a usar a estratégia das décadas de 1950 e 1970, em 2011
abandonamos o compromisso com a estabilidade e demos o passo definitivo para a
crise atual. Neste momento todo cuidado é pouco, o ciclo das transações
correntes não é maldição divina, decorre de vários fatores inclusive e principalmente
de decisões que tomamos, boas decisões podem prolongar a fase de financiamento
externo ou deixar a economia preparada para um ajuste indolor, decisões ruins
geram grandes crises.
Como a balança comercial entra na história? Lembra do “exportar
ou morrer”? É isso. Pagamentos de juros e outros serviços de fatores são peças
importantes do saldo em transações correntes, mas no curto e médio prazo estão
dados, logo o caminho para começar a reverter o saldo em transações correntes
passa pela balança comercial. A figura abaixo ilustra o que estou dizendo, a
história contada pela balança comercial é diferente da história contada pelas
transações correntes, a principal diferença são os juros, mas é possível ver
que toda vez que foi preciso reverter as transações correntes a ajuste começou
pela balança comercial.
Aqui é válido olhar com atenção para a década de 1980, como
vimos foi nesta década que ocorreu o ajuste para pagar a conta da década de
1970, reparem que por quase toda a década tivemos saldo positivo na balança
comercial e isso não impediu que a década fosse perdida. Que o aumento do saldo
da balança comercial costume ocorrer em épocas de crise não é nenhuma surpresa,
pelo contrário. Modelos macroeconômicos básicos, do tipo usados em cursos de
graduação, colocam as exportações como função do câmbio real no sentido que
quanto mais desvalorizada a moeda local (quanto mais caro for o dólar) maiores
serão as exportações, por sua vez as importações são apresentadas como função do
câmbio real e da renda do país, quanto mais desvalorizado o câmbio (quanto mais
caro for o dólar) menores serão as importações e quanto menor a renda menores
as importações. Sendo a balança comercial a diferença entre exportações e importações
fica fácil perceber que o saldo da balança comercial aumenta quando o dólar
fica caro e/ou quando a renda cai.
Com esta lógica vários economistas (inclusive, mas não
exclusivamente, os desenvolvimentistas) enxergam a desvalorização como o melhor
caminho para gerar saldos positivos na balança comercial. Sendo eu um economista
ortodoxo/liberal/neoclássico/malvadão não me alinho com o pessoal que pede a
desvalorização do câmbio real, meu motivo é simples: via de regra governos não
conseguem determinar preços e quando conseguem é por pouco tempo e com alto
custo. O câmbio real, assim como outros preços, acaba ficando onde tiver de
ficar independente dos desejos dos elaboradores de política econômica. De fato,
quando governos interveem para definir o câmbio acabam criando inflação no caso
de tentativas de desvalorizar o câmbio na marra ou entram no famoso e
desastroso populismo cambial quando forçam uma valorização artificial do
câmbio. Deixemos o câmbio o flutuar e cuidemos da vida, senão chega a morte ou
coisa parecida.
Se o câmbio não é capaz de fazer o serviço resta uma crise
econômica que derrube a demanda por importações, foi o que aconteceu na década
de 1980 onde a despeito da maxidesvalorização cambial do Delfim tivemos uma
gigantesca crise, foi o que poderia ter acontecido em 2002 e é o que está
acontecendo agora. Não é que o governo esteja forçando uma crise para ajustar o
lado externo, é que a crise está se impondo ao governo, assim como na década de
1980 o governo vai tentar de tudo para evitar o aprofundamento e alongamento da
crise, mas crise econômicas são parecidas com atoleiros, quanto mais o infeliz
se debate mais afunda e mais dificulta a saída. O caminho para sair da crise passa
por serenidade e pelo entendimento que a crise existe, decorre de decisões
erradas que tomamos e que pode ser superada.
A superação da crise não é fácil, mas é possível. Em
primeiro lugar é preciso que o governo mantenha o pé no chão e não faça nada
que comprometa ainda mais a estabilidade, outra deterioração das expectativas
no estilo 2015 pode ser fatal. Depois é preciso retomar a agenda de reformas
que permitam o crescimento da produtividade, a redução de burocracia e entraves
a competição é um elemento fundamental, também é necessário encontrar formas de
permitir e ampliar investimento privado em cada vez mais setores de
infraestrutura. Enquanto tais reformas são discutidas é necessário contornar a
crise fiscal por meio de corte de gastos e aumento na eficiência de impostos,
porém mantendo o princípio que a criação ou aumento de alíquota de um imposto deve
sempre vir acompanhada do fim ou redução de alíquotas de outros impostos de
forma que a carga tributária não aumente. No longo prazo será preciso desfazer
o nó da educação e da pesquisa.