terça-feira, 15 de junho de 2021

Não comemos PIB, mas...

Vez por outra a frase “não comemos PIB” aparece nas redes e nos jornais, lembro que apareceu quando o PIB começou a cair no governo Dilma e agora no governo Bolsonaro quando o PIB subiu acima do esperado. Curiosamente a frase não lembro da frase ter ganho destaque quando o PIB crescia bem no governo Lula, deve ser porque sou esquecido. De toda forma a frase é interessante e merece atenção. Realmente não comemos PIB, também não vestimos PIB, não moramos no PIB e não sairmos para dançar no PIB. PIB é uma construção teoria usada por economistas para tentar mensurar o quanto é produzido em uma região. 

No PIB estão computadores, relógios, trigo, cortes de cabelos, massas e maças. Quem é tanta coisa acaba por não ser nada, pode dizer algum observador, mas, creio eu, esse observador estaria sendo injusto. Como outras medidas do tipo o PIB simultaneamente carece e abunda de significados. A frase “não comemos PIB” é correta e bastante útil para apontar que existem coisa que o PIB não capta bem, porém a frase se torna enganosa quando usada para tirar relevância de uma queda ou de um aumento do PIB.

Logo no primeiro capítulo do livro Introduction to Modern Economic Growth (link aqui), Daron Acemoglu, economista merecidamente festejado pelo livro Por que as nações fracassam? (link aqui), trata de relação entre PIB per capita, que nada mais é do que o PIB dividido pela população, e os níveis de bem-estar de um país. Para ilustrar o ponto ele apresenta dois gráficos que vou reproduzir aqui, o primeiro mostra a correlação (que não é causalidade!) entre o logaritmo do PIB per capita e o logaritmo do consumo per capita. Fica clara a relação positiva entre as duas variáveis, ou seja, não comemos PIB, mas onde o PIB por pessoa é maior o consumo por pessoa também é maior.


 O segundo gráfico mostra a correlação entre PIB per capita e expectativa de vida ao nascer. PIB não comida nem remédio, mas onde o POB per capita é maior as pessoas tendem a viver mais. Isso óbvio, alguém pode dizer, correto, responderia eu, mas também deveria ser óbvio que crescimento do PIB é uma boa notícia e queda do PIB é uma notícia ruim.

 

Como sou chato, não sou tão cuidadoso quanto o Acemoglu e isso é um blog onde tento conversar com leitores e não um livro tomei a liberdade de mostrar outras correlações entre o PIB per capita e variáveis que alguém pode considerar relevantes. A figura abaixo mostra a correlação entre PIB per capita e o percentual da população com acesso a saneamento básico. Além de consumir mais e viver mais, quem vive em locais com PIB per capita maior tem menos problemas de acesso a água tratada. Por causa do PIB? Não dá para dizer isso, lembre que correlação não é causalidade, mas se é difícil, talvez impossível, estabelecer empiricamente uma relação de causalidade, não é tão difícil teorizar sobre tal relação, mas deixo isso para outra ocasião.

 

Consumir mais é bom, viver mais é bom, ter acesso a esgoto e água tratada é bom... mas o que vale tudo isso sem tomar uma? Pensando nisso fui olhar a correlação entre PIB per capita e consumo de álcool. Deu positiva, sim meu caro, se nada que falei até aqui te convenceu da importância do PIB talvez saber que onde o PIB per capita é maior se bebe mais mude sua opinião.

 

Belchior, meu conterrâneo, cantou que nada é maravilhoso, temo que ele esteja certo, mas definitivamente não é em conceitos econômicos que vamos encontrar algo para contradizer o poeta cearense. O PIB também está correlacionado com coisa indesejáveis, como, por exemplo, a poluição. Países com maior PIB per capita emitem mais CO2. Muita gente acredita que isso é motivo para não comemorar aumento de PIB, nem tanta gente parece disposta a migrar para países que emitem pouco CO2. Não sou especialista no assunto, mas creio que sacrificar PIB para preservar meio ambiente é uma estratégia complicada e limitada, resta apostar que a chegada de novas tecnologias, em parte estimuladas pelo aumento de custos do uso de tecnologias poluentes que é induzido por políticas ambientais, resolvam o problema e permitam a redução da correlação entre PIB e emissão per capita de CO2.

 

A última figura retorna à frase que motivou o post (já dizia meu saudoso pai que a maior prova que o mundo é redondo é que andamos muito e retornamos ao mesmo lugar). Não comemos PIB, fato, mas onde o PIB per capita é maior o percentual da população subnutrida é menor.

 

Paro aqui, as provocações do post não têm como objetivo contestar a frase que não comemos PIB, que é obviamente verdadeira, mas contextualizar a importância do crescimento do PIB e como uma maior PIB per capita está correlacionado com algumas características desejáveis de uma sociedade. Nunca é demais lembrar que, como também está registrado no livro de crescimento do Acemoglu, o processo de aumento do PIB per capita, embora geralmente bom para o bem-estar, cria perdedores e ganhadores, daí, talvez as resistências.

 

P.S. Se você é aluno de graduação da UnB o post também é uma propaganda do curso de crescimento que vou oferecer no próximo semestre (começa em julho, mas é o 2021/1). Os gráficos estarão lá e, nas aulas, “práticas” você vai aprender a fazer gráficos do tipo.

 

terça-feira, 1 de junho de 2021

Deu "V"!

Em dezembro do ano passado fiz um post dizendo que ainda era cedo para falar de recuperação em “V” (link aqui), pois bem, agora já dá para falar. A figura abaixo mostra o índice do PIB com ajuste sazonal do primeiro trimestre de 2019 ao primeiro trimestre de 2021. O valor da série no primeiro trimestre deste ano, 171,6, ficou igual ao do quarto trimestre de 2020. É claro que não é um “V” perfeito, mas o formato da recuperação vinga a tese defendida por Paulo Guedes de que a recuperação seria em “V”.

 


Sou chato, mas tento não ser de todo injusto.

 

Contas Nacionais no Primeiro Trimestre de 2021: Agropecuária, Indústria Extrativa e o Resto.

O IBGE divulgou as contas nacionais referentes ao primeiro trimestre de 2021 (link aqui). A recuperação da queda causada pela Coviv-19 no primeiro semestre de 2019 aparece nos números do PIB. Em relação ao trimestre anterior o PIB cresceu 1,2%, o crescimento faz parte do mesmo movimento que levou à queda recorde de 9,6% no segundo trimestre de 2020 e ao crescimento, também recorde, de 7,7% no terceiro trimestre daquele ano.

Assim como nos trimestres anteriores, o crescimento do primeiro trimestre de 2021 dificilmente pode ser analisado na perspectiva da dinâmica de crise e recuperação que costumo usar nos posts sobre contas nacionais. O máximo que pode ser feito é entender como será a recuperação da crise causada pela pandemia e tentar especular sobre como esta recuperação pode afetar a dinâmica da economia brasileira na ótica das contas nacionais.

A figura abaixo mostra o crescimento da economia desde 1996, as barras mostram o crescimento em relação ao trimestre anterior (com ajuste sazonal) e a linha mostra o crescimento acumulado em quatro trimestres. No acumulado houve uma queda 3,8%, o que mostra que, apesar do crescimento nos últimos trimestres, a crise do Covid-19 ainda não está no retrovisor. 


 

Como é tradição no blog a análise será feita pelo lado da produção. A análise da despesa, preferida por vários colegas de profissão, é interessante para entender como foi a distribuição do PIB. A figura abaixo mostra o crescimento dos grandes setores da economia. No acumulado de quatro trimestres a agropecuária, que no primeiro trimestre de 2021 respondeu por 11,9% do valor agregado e 10,2% do PIB, cresceu 2,3%; o setor de serviços, 68,2%% do valor agregado e 58,4% do PIB, teve uma queda de 4,5%; finalmente, a indústria, que responde por 19,9% do valor agregado e 17% do PIB, teve uma queda de 2,7%. Na comparação com o trimestre anterior a agropecuária teve crescimento de 5,7%, a indústria teve crescimento de 0,7% e nos serviços o crescimento foi 0,4%. O forte crescimento da agropecuária, que atingiu recorde em participação no PIB, explica boa parte do crescimento no primeiro trimestre de 2021.

 


No acumulado de quatro trimestres a construção teve queda de 6,9%. Na indústria de transformação a queda foi de 2,7%. Ao contrário de outros períodos quando a queda na indústria de transformação podia ser vista como parte da arrumação de casa após a sequência de investimentos questionáveis, para dizer o mínimo, da primeira metade da década., esta queda ainda reflete o impacto da pandemia no setor A indústria extrativa teve queda de 0,3%. Na comparação com o trimestre anterior a construção cresceu 2,1%, a indústria extrativa cresceu 3,2% e a indústria de transformação teve queda de 0,5%. No primeiro trimestre de 2021 a indústria extrativa correspondeu a 21,5% da indústria total, a construção por 13,1% e a de transformação por 51,9%. Os números mostram que a indústria extrativa foi fundamental para o resultado positivo do trimestre.

 


Nos serviços o maior crescimento ficou por conta do setor de atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados que cresceu 5% no acumulado de quatro trimestres, também houve crescimento de 3% nas atividades imobiliárias. Administração, defesa, saúde e educação públicas e seguridade social teve queda de 5,5%., as maiores quedas foram de 8,6% no setor de transportes e 13% em outras atividades de serviços A figura abaixo mostra o crescimento no setor de serviços. Na comparação com o trimestre anterior apenas o setor “Administração, defesa, saúde e educação públicas e seguridade social” registrou queda Mais uma vez o crescimento faz parte do mesmo movimento que causou a queda no trimestre anterior.

 


Por fim, passemos a análise pelo lado da demanda, ou seja, como foi distribuída a produção do país. O investimento, a parte do produto destinada a criar mais produto no futuro, cresceu 2% no acumulado em quatro trimestres. Na comparação com o trimestre anterior o investimento cresceu 4,6. O crescimento do investimento costuma ser um importante sinalizador para recuperação da economia, mas nunca é demais lembrar que é preciso analisar a qualidade do investimento.

O consumo das famílias e do governo caíram 5,7% no acumulado de quatro trimestres. As exportações caíram 1% e as importações caíram 9,2%. Na comparação com o trimestre anterior o consumo das famílias caiu 0,1%, o consumo do governo caiu 0,8%, as exportações cresceram 3,7% e as importações tiveram aumento de 11,6%.

 


Os números das contas nacionais mostram que a pandemia do coronavírus interrompeu o processo de lenta recuperação que vínhamos seguindo desde 2017, mas sugerem uma boa recuperação em relação a queda causada pela própria pandemia. Essa recuperação pode ser comprometida pelo recrudescimento da pandemia. De fato, o comportamento da economia depende essencialmente dos rumos da pandemia. Sem uma campanha de vacinação em massa só um milagre pode nos tirar da crise.

O crescimento do trimestre veio acima do esperado, a agropecuária e a indústria extrativa tiveram um forte papel neste resultado. Isso sugere que o bom resultado pode estar mais associado à dinâmica do resto do mundo, visto que os dois setores são exportadores de commodities, do que à dinâmica da economia interna. Não que tal dependência seja ruim ou mesmo um problema, mas é uma característica que merece registro.

Para ter crescimento de longo prazo o governo precisaria liderar uma sólida agenda de reformas, nesse sentido ao trocar a agenda de abertura pela necessidade de proteger o patrimônio da indústria é um péssimo sinal. Continua valendo que se o governo partir para políticas de estímulos turbinadas por planos como o Pró-Brasil, Casa Verde e Amarela e uso de estatais podemos até ter bons números no curto prazo, ainda assim condicionados à dinâmica da pandemia, mas começaremos outra caminhada em direção ao abismo. A disparada dos preços no atacado, levando junto o IGP-M, mostra que, além da recuperação do PIB, o governo deve se preocupar em evitar que a inflação que já atinge os preços aos consumidores.

 

P.S. Os gráficos setoriais não são os ideais, continuo procurando uma forma melhor de passar os desempenhos dos setores sem abrir mão de grande parte da série.