Suponha que um pai de família resolva proporcionar dias mais felizes para os seus e decida usar os limites de crédito que dispõe para levar uma vida de rico. Ele começa com aquelas linhas de crédito baratos (para os padrões brasileiros, que fique claro) disponíveis para quem está com o nome limpo na praça. Com o dinheiro troca o carro apertado por um maior e leva os rebentos para Disney. Depois da viagem em família é hora de uma segunda Lua de Mel, em Paris, é claro.
Como o banco tem uma linha especial para crédito imobiliário ele resolve comprar um apartamento amplo com suíte para o casal e para cada um dos dois filhos, a quarta suíte fica para quando os parentes quem moram longe forem visitá-lo. Entrada de 10% do valor do imóvel financiada em dez vezes com a primeira a perder de vista. Naturalmente o apartamento novo não pode ficar com a mobília velha e o feliz pai de família compra móveis novos. Tanta coisa boa merece uma comemoração e a família vai fazer um passeio cultural na Europa.
Por incrível que pareça boa parte da classe média alta, a velha classe média, pode fazer aventura semelhante. Se você tem renda familiar acima de, digamos, R$ 15.000 e não está endividado provavelmente tem limite de crédito suficiente para dar entrada em um bom apartamento, trocar de carro, fazer as viagens descritas e ainda mobiliar o apartamento novo. A questão é como você vai ficar depois da festa.
As prestações do apartamento novo levam quase metade da renda familiar e ainda tem as do carro e dos móveis novos. O empréstimo usado para fazer os passeios começa a ter de ser pago. O salário já não dura até o final do mês e o sujeito começa a se financiar no cartão de crédito ou no cheque especial, duas linhas de crédito absurdamente caras. Rapidamente os juros pagos viram uma parcela significativa do orçamento da família, o jeito é atrasar umas prestações dos móveis o que acaba colocando o agora infeliz na lista dos inadimplentes. Como as contas não param de chegar o sujeito procura uma daquelas financeiras especializadas em emprestar para "negativados" e aprofunda ainda mais sua tragédia.
Os cortes começam a ficar inevitáveis: um plano de saúde mais modesto (somos saudáveis, nunca ficamos doente e não precisamos de um plano com apartamento VIP no hospital), o almoço de sábado passa a ser em casa (quem precisa de restaurantes?), os filhos podem ir para uma escola mais em conta (o importante é que eles estudem), talvez seja o caso de dispensar uma das empregadas e assim por diante. Nada disso equilibra o orçamento da família, agora o pagamento de juros já é o item mais pesado nas contas do mês. A possibilidade do calote em mais algumas dívidas passa a ser considerada, mas e o apartamento? Talvez seja o caso de arrumar um emprego à noite para aumentar a renda da família, aliás o filho mais velho já está com mais de dezoito, bem que podia arrumar um emprego e ajudar nas despesas da casa. Com o tempo, se o reforço na renda não foi suficiente, a família é obrigada a vender o apartamento e voltar para o aluguel em um apartamento mais apertado em um bairro menos nobre.
A primeira parte da história pode ter feito com que o sujeito fosse bem visto pelos amigos e pela família, na segunda parte, quando ocorrem os cortes, é possível quem alguém o tenha visto como miserável, insensível aos dramas da família, ou mesmo cruel (o garoto estava pronto para cursar administração na FGV e o pai o força a trabalhar de dia estudar na federal à noite, que sujeito sem visão). A segunda parte, a parte cruel, é o que chamamos de austeridade.
Porém a questão relevante não é exatamente se o sujeito era bom e ficou mau, a questão é saber onde foram feitas as escolhas. Os cortes em saúde e educação que a família fez foram escolhas, eles podiam ter vendido logo o apartamento ou ter dado calote em mais dívidas, mas foram escolhas decorrentes de escolhas anteriores. Repare que a escolha que mudou o destino da família foi a de usar o crédito disponível para ter uma vida de rico, as outras foram tentativas mais ou menos felizes de enfrentar as conseqüências da primeira escolha.
Escrevo esta fábula com a óbvia intenção de tratar da questão da austeridade que veio à tona no Brasil quando o governo resolveu cortar direitos e gastos e elevar impostos (quando o governo precisa de mais dinheiro quem faz hora extra somos nós) e tomou conta do mundo com as eleições na Grécia. Assim como em outros episódios do tipo não faltou quem apontasse a insensibilidade política e o excesso de rigor do ajuste "imposto" à Grécia como responsáveis pela vitória da esquerda radical. É uma afirmação que faz tanto sentido quanto culpar os cortes de gastos da família por uma eventual rebeldia do filho mais novo. A verdade é que as escolhas feitas na fase de cortes decorrem das escolhas feitas na fase da bonança financiada por dívidas.
Se for o caso de culpar o pai pela eventual rebeldia do filho me parece fazer mais sentido apontar para o gasto irresponsável do que para o corte necessário. Da mesma forma se Dilma é obrigada a fazer cortes duros e tirar mais dinheiro do contribuinte é porque ela e o antecessor dela gastaram de forma irresponsável em um passado recente. Usamos o crédito barato que existia no mundo para fazer festas e embarcar em aventuras tresloucadas. O mesmo se aplica à Grécia, a culpa dos políticos tradicionais gregos não está no ajuste necessário, está na gastança irresponsável que forçou um ajuste tão drástico.