quinta-feira, 30 de julho de 2020

Uma avaliação do Brasil (e da América Latina) no ranking de competitividade da CNI

O ranking de competitividade da CNI foi divulgado (link aqui), mais um ranking do tipo onde o Brasil aparece mal na foto. Dentre os dezoito países analisados apenas a Argentina teve um desempenho pior que o nosso, muito pouco para um país que pretende entrar em uma trajetória de crescimento de longo prazo. No geral os países da América Latina que constam no ranking foram mal, o que também não é exatamente uma novidade. Os quatro últimos países são latino-americanos, o melhor classificado foi o Chile, também sem novidades, e mesmo assim ficou na oitava posição. A figura abaixo mostra o resultado de todos os países.

O quadro desolador ilustra os motivos da América Latina, inclusive o Brasil, não conseguirem sair da tal armadilha da renda média. O ranking é composto por nove categorias que, por sua vez, são divididas em subcategorias. A análise dessas categorias permite uma visão mais clara dos problemas de cada país e dos desafios que o Brasil vai ter que superar se quiser entrar em uma trajetória de crescimento.

A primeira categoria trata de trabalho. Nessa categoria ficamos na turma do meio, a nota de 5,16 nos deixou na nona posição entre os dezoito países. Considerando os países da América Latina apenas a Argentina ficou pior que o Brasil, de fato Peru e Colômbia são os países como melhor desempenho nesse quesito.

Na decomposição do quesito percebemos que a disponibilidade de mão de obra (subcategoria que leva em conta o tamanho da população economicamente ativa como proporção da população com mais de quinze anos e o crescimento da força de trabalho) puxa os países da América Latina para cima. Na outra subcategoria, que leva em conta a remuneração do trabalho na fatura e produtividade do trabalho na indústria, o Brasil ficou em décimo terceiro lugar. Os países da América Latina com melhores classificações nesta subcategoria foram o México e o Peru.

A segunda categoria trata do financiamento do investimento. Nesta categoria o Brasil aparece em último lugar no ranking. Aqui tem um problema que aparece em outras categorias e outros países, a nota do Brasil em uma das subcategorias, custo do capital, foi zero, não fica sempre claro se o zero representa um valor ausente, a informação não é conhecida, ou se é uma nota zero. Na dúvida calculei a nota da categoria, quando consigo obter a mesma nota do relatório usando como zero eu mantenho a nota como zero, quando obtenho a nota usando o zero como valor ausente eu tiro o zero. Usei esse procedimento em todos os casos onde aparece nota zero, a única exceção foi a categoria de Educação para China onde a questão dos valores ausentes é explícita e discutida no relatório. De toda forma se o zero em custo do capital for um valor ausente a média dos dois outros itens nos faria ultrapassar a penas a Argentina no ranking da categoria. Não há países da América Latina entre os cinco melhores desta categoria, o melhor desempenho é do Chile que aparece em sétimo lugar.

Já comentei o zero do Brasil no custo do capital (calculado a partir do spread da taxa de juros e dos juros reais de curto prazo). Na subcategoria que mede o desempenho do sistema financeiro (considera os ativos do setor bancário como porcentagem do PIB e a classificação de crédito do país) o Brasil aparece em oitavo lugar perdendo apenas para o Chile na América Latina, para surpresa de ninguém, creio eu, a Argentina aparece em último lugar nesta subcategoria. Na última subcategoria do financiamento, disponibilidade de capital (obtida a partir da oferta de crédito do setor privado, do tamanho do mercado de ações local e da disponibilidade de venture capital) o Brasil aparece na décima primeira posição, novamente o único país da América Latina com desempenho superior ao nosso é o Chile. Também novamente a Argentina aparece em último lugar, há quem não veja relação entre o desempenho do sistema financeiro do país, em especial a classificação de risco de crédito do país, e a disponibilidade de capital.

Na sequência vem a categoria de infraestrutura e logística. Brasil, décima quinta posição, e América Latina em geral novamente aparecem mal na foto. Peru e Colômbia ficam abaixo do Brasil, desta vez a Argentina ficou na nossa frente, mas ainda na metade de baixo do ranking. O único país da América Latina na metade de cima foi o Chile que aparece na sétima posição.

Na subcategoria infraestrutura de energia (considera o custo, a disponibilidade e a qualidade da energia elétrica) o Brasil aparece em último lugar, há quem seja contra privatizar a Eletrobras, o país da América Latina melhor avaliado é a Argentina e, fugindo à regra, o Chile está na rabeira ficando na antepenúltima posição geral. Na infraestrutura de telecomunicações (uso e acesso de tecnologias de informação e comunicação) temos nosso melhor desempenho na categoria ficando com a nona posição, logo atrás da Argentina que aparece logo atrás de Chile que nessa subcategoria volta a ter a melhor avaliação entre os países de nuestra América. Na infraestrutura de transportes (qualidade e conectividade de rodovias, eficiência do transporte ferroviário e densidade da malha ferroviária, eficiência dos portos e integração ao transporte marítimo global, eficiência do transporte aéreo e carga aérea) apenas o Peru teve uma avaliação pior que a do Brasil. Em logística internacional (considera o logistic performance index do Banco Mundial e o custo para importar e exportar) o Brasil fica na décima quarta posição. Não vou dizer que o Chile é o melhor classificado entre os países da América Latina para não ficar chato, mas é.

Na categoria tributação mais uma vez o Brasil só ficou melhor do que a Argentina. A combinação de carga tributária para padrões de países emergentes e a complexidade da legislação fazem do sistema tributário brasileiro uma espécie de serial killer de empresas pequenas e inovadoras. Um engenheiro ou programador que tente transformar uma ideia em um negócio tem tudo para ficar perdido na burocracia tributária e dedicar menos tempo ao aperfeiçoamento da ideia do que a descobrir quanto deve pagar de impostos. Como exceção do Chile, segundo melhor na categoria, os países da América Latina ficaram mal ranqueados ocupando as três últimas posições.

A categoria é composta por duas subcategorias. Em peso dos tributos (carga tributária e tributos como proporção do lucro das empresas) Brasil e Argentina estão nas últimas posições enquanto Pero e Chile receberam as melhores avaliações entre os países da América Latina e ficaram entre os cinco primeiros do ranking geral. Em qualidade do sistema tributário (número total de pagamentos e o índice de pós-declaração do Banco Mundial) o Brasil ficou em último lugar. Os cinco piores desta subcategoria são países da América Latina, apenas o Chile aparece na parte de cima do ranking.

Nosso ambiente macroeconômico teve a terceira pior avaliação entre os países avaliados, ficamos na frente apenas da Turquia e da Argentina. O melhor ambiente macroeconômico da América Latina está no Peru que é seguido pelo Chile. A Rússia lidera essa categoria.

Na subcategoria equilíbrio externo (considera o saldo em transações correntes como proporção do PIB) o Brasil ficou em sétimo lugar, melhor da América Latina. O pior desempenho foi o da Argentina, Chile e Colômbia completam a lista de países latino-americanos entre os cinco piores classificados. Como o regime de juros baixos e câmbio desvalorizado vai afetar essa variável é coisa que o futuro vai dizer, daqui fico na torcida para essa mudança não comprometa o melhor fundamento de nossa macroeconomia. Na subcategoria equilíbrio fiscal (dívida bruta e despesas com juros como proporção do PIB) ficamos em último lugar, o problema fiscal por aqui existe e é sério. O Chile tem o segundo melhor desempenho entre todos os países e o Peru completa o time da América Latina entre os cinco países com melhores avaliações. Na subcategoria equilíbrio monetário (considera a inflação), ficamos na décima quarta classificação. Sei que muita gente acredito que nossa inflação é baixa, mas não é, dos países analisados pela CNI em apenas quatro a inflação foi maior que no Brasil, entre eles a Argentina e o México. O país da América Latina com melhor desempenho foi o Peru, único da região na parte de cima do ranking. 

Na categoria estrutura produtiva o Brasil ficou em décimo segundo lugar, no quadro geral do desastre não foi tão ruim, repare que ficamos acima Austrália que é um país rico, em breve volto ao assunto. Dentre os países da América Latina o melhor desempenho foi do México, países da região ocupam quatro das cinco últimas posições. O Peru, pais do continente que mais cresceu neste século (link aqui), foi o pior classificado. A melhor avaliação desta categoria foi da China.

A primeira subcategoria dessa categoria considera a concorrência (barreira tarifária e dominância de mercado), pior do que o Brasil apenas Argentina e Tailândia. Isso é um problema sério, concorrência é um dos mais importantes motores da produtividade. A segunda subcategoria é escala (tamanho do mercado doméstico), o PIB tem um papel importante nesse item, dessa forma estamos bem, quinta posição, porque somos grandes. As três últimas posições ficam com Colômbia, Chile e Peru. Talvez um critério que também considerasse PIB per capita e até mesmo distribuição de renda desse uma ideia melhor do mercado interno, mas nesse caso nosso desempenho seria bem pior. A última subcategoria é estrutura de mercado (medida pelo Economic Complexity Index, ECI) aqui tem uma espécie de malandragem, como complexidade está muito associada com indústria de transformação temos a turma da indústria dizendo que para ser competitivo o país precisa ter indústria de transformação. Não duvido aparecer alguém pedindo mais subsídios e proteção para setores da indústria como forma de melhorar nossa competitividade... por conta de um conceito de estrutura de mercado que coloca a Austrália como segunda pior e a China como segunda melhor. No mais a resta a ironia do país com pior desempenho nesse critério, o país menos complexo, ter sido o que mais cresceu na América Latina durante o século XXI.

Na categoria ambiente de negócios o Brasil só ganha da Argentina e do Peru, também é uma ironia que o país latino-americano que mais cresceu no século XXI tenha o pior ambiente de negócios da amostra. Por outro lado, não chega a ser surpresa que países ricos dominem essa categoria com o Chile liderando entre os países da América Latina.

Na subcategoria burocracia (facilidade em abrir empresas e regras trabalhistas de contratação e demissão) o Canadá lidera e o Brasil tem o terceiro pior desempenho. Nenhum país da América Latina aparece entre os cinco primeiros, o melhor colocado é México que aparece na décima posição e é seguido pelo Chile. Não dá para não registrar que a burocracia da China, um país oficialmente comunista, tenha obtido a segundo melhor nota. Na eficiência do estado (controle da corrupção, regulação do setor privado e transparência dos dados do governo) o Brasil fica na turma do meio, o melhor desempenho é da Austrália e o Chile, terceiro lugar geral, lidera entre os países da América Latina. Na segurança jurídica (execução das normas jurídicas conforme o Rule of Law Index, eficiência das leis no questionamento de regras impostas pelo governo e execução de contratos) o Brasil volta para a rabeira e fica na quarta pior posição. Chama atenção que os cinco piores nesta subcategoria são países da América Latina, o Chile, no quarto lugar geral, obteve a melhor avaliação da região.

Na categoria educação o Brasil também ficou na parte inferior do ranking, ficamos na frente apenas da Colômbia, do México, da Índia e da Indonésia. A melhor avaliação geral ficou com a Austrália e na América Latina ficou com o Chile. É marcante o fraco desempenho da América Latina quando o assunto é educação.

Na subcategoria disseminação da educação (população com educação superior completa) o Brasil ficou no décimo terceiro lugar de dezessete países, o melhor desempenho na América Latina foi na Argentina que ficou na sétima posição geral. É importante ter em mente que essa é uma medida de quantidade, não necessariamente de qualidade, a distinção que geralmente é importante torna-se essencial quando o assunto é educação. Nos gastos com educação (gasto público com educação como proporção do PIB e gasto público per capita em educação) o Brasil ficou em quatro lugar geral e lidera na América Latina. O pior desempenho foi o da Rússia. A subcategoria peca por considerar apenas gastos públicos e por associar aumento de gastos com educação a aumento da competitividade do país, isso talvez explique algumas posições estranhas no ranking. Na qualidade da educação (avaliação dos estudantes em matemática, leitura e ciências no PISA de 2018) o Brasil fica na frente apenas da Argentina e da Indonésia. O contraste do ranking desta subcategoria com os dados subcategorias que consideram quantidade ou gasto é marcante. A concentração de países latino-americanos na parte inferior desse ranking deve ser motivos de preocupação.

A última categoria trata de tecnologia e inovação, o Brasil ficou na oitava posição geral e foi o melhor da América Latina. O melhor desempenho desta categoria ficou com a Coreia do Sul e o pior com o Peru.

Na subcategoria esforços de P&D o Brasil (despesa com P&D como proporção do PIB e despesas de P&D das empresas como proporção do total) repetiu a posição no ranking geral. Assim como na educação aqui aparece a hipótese que gastar mais em algo faz com que esse algo seja melhor, há quem discorde. Nos resultados de esforções em P&D (pedidos de patentes internacionais, publicação de artigos científicos e técnicos e exportações de alta tecnologia) o Brasil cai uma posição em relação ao ranking geral e fica em nono lugar. Aqui é impossível não imaginar qual teria sido nossa posição se no lugar de uma medida de quantidade como números de artigos publicados a CNI tivesse usado uma medida de impacto das publicações.

 A figura abaixo resume o quaro geral do Brasil, quando a barra é maior do que um (destacado na linha pontilhada) o Brasil está acima da média da subcategoria, ocorre o contrário quando a barra está abaixo de um (abaixo da linha azul). As cores representam a posição do Brasil no ranking: azul claro quando o Brasil está no terço inferior, azul escuro quando está no terço do meio e verde quando está no terço superior.

O quadro não é nada bom. Na maior parte das subcategorias estamos no terço inferior, ou seja, na turma da rabeira, em várias delas uma melhora exige reformas profundas e complexas tanto do ponto de vista político quando econômico. Em subcategorias com qualidade e disseminação da educação além do desafio político e econômico é preciso ter muita paciência para usufruir dos resultados que devem começar a aparecer muitos anos, talvez décadas, após as reformas. A subcategoria onde estamos melhor, gasto em educação, não é exatamente uma medida de sucesso, talvez seja até o contrário, estar no alto em gastos e na parte baixa em resultados pode ser sinal de que estamos fazendo algo muito errado. A outra subcategoria que estamos bem avaliados, escala, diz mais sobre tamanho do que sobre eficiência ou algo do tipo.

Vez por outra reclamam que eu sou pessimista, mas vejo como esperar muita coisa de um país com problemas sérios no mercado de trabalho, no financiamento do investimento, na infraestrutura, no sistema tributário, no ambiente macroeconômico, nas condições de produção, no ambiente de negócios, na educação e na parte de P&D e que, não bastasse, tudo isso ainda tem de resolver problemas sociais graves como violência urbana, pobreza, desigualdade, saneamento, etc. Tudo isso precisa ser feito em uma época que não conseguimos um mínimo de consenso nem para enfrentar uma pandemia.

 


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Crescimento econômico nas duas primeiras décadas do Século XXI


Quais os países que mais cresceram no século XXI? Quais os que menos cresceram? Nesse post uso dados do Banco Mundial no período de 2001 a 2019 para responder essas perguntas. Como o objetivo é crescimento, e não comparação entre renda, calculei a taxa de crescimento do PIB per capita em valores constantes da moeda de cada país, desta forma elimino problemas com câmbio e com medidas de paridade de poder de compra. Na média dos países em 2019 o PIB per capita era 65,5% maior do que em 2001, mas essa média esconde variações importantes entre os países. Na China, país com maior crescimento, o PIB per capita em 2019 foi 334% maior que o PIB per capita em 2001, no Zimbabwe, país com pior desempenho, o PIB per capita em 2019 era quase 20% menor do que em 2001. Milagres e desastres continuam existindo no século XXI.

Considerei apenas países com mais de cinco milhões de habitantes e com dados disponíveis para 2001 e 2019, a amostra ficou com 101 países. Para facilitar a apresentação dos resultados dividi os países em quatro grupos de acordo com o crescimento do período. O primeiro grupo reúne os 25 países com maior crescimento, na média o crescimento do PIB per capita desses países entre 2001 e 2019 foi de 148,8%. Nesse grupo estão um país avançado, cinco países da Comunidade de Países Independentes, dez países emergentes da Ásia, quatro países emergentes da Europa, dois países da América Latina e Caribe e três países da África subsaariana. A figura abaixo mostra esses países.




Como pode ser visto na figura, dos campeões de crescimento no século XXI nada menos que 20 países apresentaram crescimento de mais de 100% do PIB per capita entre 2001 e 2019, ou seja, os habitantes desses países, em média, dobraram suas rendas no século XXI. Desses países três cresceram mais de 200% e dois cresceram mais de 300%.

O grupo seguinte é formado por 25 países com crescimento entre 53% e 92% entre 2001 e 2019. Nesse grupo de países com crescimento médio-alto a média de crescimento foi de 68,4%. O maior crescimento ocorreu na Sérvia, 91,5%, e o menor no Paraguai, 52,9%, oito países desse grupo cresceram mais que 75% no período. No grupo estão três países avançados, dois da Comunidade de Países Independentes, quatro países emergentes da Ásia, dois países emergentes da Europa, quatro países da América Latina e Caribe, dois países do Oriente Médio e oito países da África subsaariana. A figura abaixo mostra esses países.




Na sequência aparece o grupo formado por 25 países onde o PIB per capita cresceu entre 26,3% e 50% no período 2001 a 2019, os países com crescimento médio-baixo. O país com melhor desempenho do grupo foi o Egito, crescimento de 49,5%, e o país com pior desempenho foi o Brasil, 26,3%. É isso, menos um pouquinho e estaríamos “comemorando” o melhor desempenho entre os países de pior desempenho em termos de crescimento. A média de crescimento do grupo foi de 35,3%. No grupo estão quatro países avançados, seis países da América Latina e Caribe, cinco do Oriente Médio e dez da África subsaariana. A figura abaixo mostra esses países.




O último grupo é o de países que cresceram menos de 26,3% entre 2001 e 2019, o gripo dos países de crescimento baixo. O melhor desempenho do grupo foi um crescimento de 26,2% na República do Níger, o pior desempenho foi uma queda 19,2% no Zimbabwe. O crescimento médio dos países desse grupo foi de 11,8%. O grupo é composto por quinze países avançados, três países da América Latina e Caribe, três países do Oriente Médio e cinco países da África subsaariana. A figura abaixo mostra esses países.




A concentração de países avançados no grupo de baixo crescimento não causa espanto, vários modelos de crescimento apontam a relação inversa entre PIB per capita e crescimento, ou seja, ao contrário da crença popular, países ricos crescem menos do que países pobres. A validação empírica dessa proposição está (muito) além do objetivo desse post, o tema é objeto de pesquisa, vários autores encontram que a relação inversa vale para grupos de países homogêneos. A figura abaixo apresenta a distribuição dos grupos de países de acordo com o FMI, esse que estamos usando no post, segundo o grupo de crescimento.




É fácil observar a concentração de países avançados no grupo de crescimento baixo, isso não chega a ser um problema, afinal esses países já são ricos, mais preocupante é o baixo número de países da África subsaariana e da América Latina e Caribe no grupo de países de alto crescimento. Outro fato notável é a ausência de países emergentes da Ásia, da Europa e da Comunidade de Países Independentes no grupo de países com crescimento baixo e médio-baixo. Com todos os problemas na Europa Oriental países como a Rússia, 75,3%, e a Ucrânia, 60,7%, cresceram mais do que a média dos países da América Latina e Caribe, 44,5%, e bem mais que os 26,3% do Brasil.

Dos países da América Latina e Caribe apenas o Peru, com crescimento de 101,3%, conseguiu dobrar o PIB per capita entre 2001 e 2019, a República Dominicana, com 95,7% de crescimento, completa a participação dos países de nuestra América no grupo de alto crescimento. Com crescimento médio-alto aparecem Bolívia, 61,5%, Colômbia, 61,1%, Chile, 56,8%, e Paraguai, 53%. A maior concentração de países da América Latina e Caribe ocorre no grupo de crescimento médio-baixo: Honduras, 39,4%, Equador, 36,2%, Nicarágua, 34,3%, El Salvador, 33,7%, Guatemala, 33,03%, e Brasil, 26,3%. No grupo de crescimento baixo estão Argentina, 25,1%, México, 13,1% e Haiti, -2,8%.

A figura abaixo mostra a relação entre crescimento e PIB per capita para todos os países da amostra, a classificação de cada país de acordo com o FMI está destacada pelas cores. Na figura estão destacados os cinco países de maior crescimento, os cinco com menor crescimento, os países da América Latina e caribe como crescimento acima do esperado considerando apenas o PIB per capita (os países acima da linha), o Brasil, o México, os Estados Unidos e a Suíça. Reparem a forte presença de países avançados no canto inferior direito da figura, alta renda e baixo crescimento, e de países emergentes da Ásia na parte de cima do gráfico, de fato o único país desse grupo abaixo da linha é Papua-Nova Guiné.




A figura acima traz duas preocupações que merecem destaque. Uma é a dificuldade dos países da América Latina e Caribe de saírem da faixa de renda-média, países mais ricos da região, como o México e a Argentina (que está no “z” do Brazil), crescem muito pouco, mesmo o Chile, tradicional “campeão” da região, não consegue um desempenho nível Ásia. A outra dificuldade é a presença marcante dos países da África subsaariana na parte de baixo da linha. Se em termos locais o grande desafio do século XXI é triar a América Latina e Caribe da renda-média em termos globais o grande desafio é tirar os países da África subsaariana da renda baixa.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Gastos militares no Brasil e no Mundo


No meio de tanta notícia envolvendo Fundeb, mini-reforma tributária e outros temas ligados à economia recebeu pouca atenção uma proposta do Ministério da Defesa de elevar o gasto em defesa do país para 2% do PIB (link aqui e aqui). Se a proposta se tornar realidade significará um aumento de pouco mais de 0,5% do PIB para área. Como o PIB do Brasil em 2019 foi de R$ 7,3 trilhões, estamos falando de aumento de cerca de R$ 36,5 bilhões de reais por ano, para efeitos de comparação o leitor talvez queira saber que o Bolsa Família custou cerca de R$ 33 bilhões em 2019. O custo de implementar a proposta do Ministério da Defesa permitiria dobrar o Bolsa Família, como de costume, cada um com suas prioridades.

Para avaliar a proposta do Brasil ter um gasto em defesa de 2% do PIB resolvi dar uma olhada nos gastos em defesa dos outros países. Peguei os dados do Banco Mundial de despesas em dólares e como proporção do PIB, selecionei o ano de 2018 e os países com mais de dez milhões de habitantes o que me deixou com uma amostra de 79 países. Segundo os dados do Banco Mundial o gasto com despesas militares no Brasil foi de 1,47% do PIB em 2018, isso nos deixa abaixo da média mundial, que foi de 1,79%, mas acima da mediana que foi de 1,44%. Na amostra o maior gasto militar como proporção do PIB foi na Arábia Saudita, 8,77%, e o menor foi no Haiti, 0,0008% do PIB. A figura abaixo mostra a distribuição do gasto militar como proporção do PIB em todos os países com alguns em destaque.




Na figura constatamos que o Brasil de fato está na metade dos países com maior gasto militar como proporção do PIB, repare que estamos logo acima do 0.50 no eixo vertical, para ser preciso 51,9% dos países possuem gastos militares menores que o do Brasil como proporção do PIB. Caso nosso gasto fosse 2% do PIB, como propõe o Ministério da Defesa, 67% dos países teriam um gasto militar como proporção do PIB menor que o nosso.

Nos onze países da América Latina e Caribe que ficaram na amostra o gasto militar como proporção do PIB ficou em média 1,28% e a mediana foi 1,19%. O Brasil está acima da média e mediana desse grupo de países. Caso nosso gasto fosse de 2% do PIB estaríamos atrás apenas da Colômbia e do Equador. A figura abaixo mostra o gasto militar como proporção do PIB nos países da América Latina e Caribe e destaca os 2% do PIB.




Mesmo entre os países da OTAN não são muitos que gastam 2% ou mais do PIB em defesa. Dos países da OTAN que ficaram na amostra em apenas quatro os gastos militares ficaram acima de 2% do PIB. A média do grupo foi 1,75% e a mediana foi de 1,78%. A figura abaixo mostra o gasto militar como proporção do PIB nos países da OTAN.




Se olhando o gasto militar como proporção do PIB o Brasil está na mediana quando consideramos o gasto militar em termos absolutos o quadro muda consideravelmente. Segundo os dados do Banco Mundial os gastos militares no Brasil em 2019 foram de US$ 27,8 bilhões, o número está acima da média, US$ 21,1 bilhões, e bem acima da mediana de US$ 3,1 bilhões. Considerando todos os países da amostra 86,1% possuem gastos militares menores que os do Brasil. A figura abaixo ilustra essa distribuição.




A liderança dos Estados Unidos em termos de gastos militares impressiona. As despesas militares dos americanos em 2019 foram de US$ 648,8 bilhões, na China, país com segundo maior gasto, as despesas militares foram de US$ 250 bilhões. Caso o leitor esteja curioso, em 2019 o gasto militar na China foi equivalente a 1,87% do PIB, um pouco menos que à proporção que Ministério da Defesa propõe para o Brasil.

Quando a análise fica restrita aos gastos militares dos países da América Latina e Caribe que estão na amostra a liderança do Brasil fica clara. Nossos gastos militares são mais que o dobro dos gastos militares do segundo lugar que é a Colômbia, caso a proposta do Ministério da Defesa estivesse em vigor nossos gastos militares seriam mais que o triplo dos da Colômbia. A figura abaixo mostra os gastos militares na América Latina e Caribe.




Na comparação com os países da OCDE os gastos militares do Brasil também não estão mal na foto. Dos quinze países da amostra apenas cinco gastaram mais que o Brasil com os militares. A figura abaixo mostra os gastos militares nos países da OTAN e no Brasil, os Estados Unidos foram excluídos para não distorcer as comparações da figura.




Considerando os dez países com maiores territórios da amostra os gastos militares no Brasil são menores que nos Estados Unidos, China, Índia e Rússia, todos potências nucleares e envolvidos em conflitos. A figura abaixo mostra os dados para esse grupo de países, mais uma vez os Estados Unidos ficaram de fora para não distorcer as comparações da figura.




Um último exercício consiste em deixar de lado as comparações com outros países e avaliar os gastos militares do Brasil no passado. No período entre 1960 e 2018 o maior valor do gasto militar como proporção do PIB no Brasil ocorreu em 1965, no ano seguinte ao Golpe que derrubou João Goulart os gastos militares chegaram a 3,35% do PIB, em 1966 caiu para 3,02%, estes foram os únicos dois anos em que os gastos militares superaram 3% do PIB.

Até meados da década de 70 os gastos militares ficavam em torno dos 2% do PIB que o Ministério da Defesa deseja colocar como referência. Depois de 1976 os gastos militares começam a cair como proporção do PIB, o menor valor ocorreu em 1980 e foi de 1,14%. No final da década de 80 os gastos militares voltam a ficar acima de 2% do PIB por alguns poucos anos, a última vez que os gastos militares ficaram acima de 2% do PIB foi em 1994. No período pós-estabilização o maior valor dos gastos militares como proporção do PIB foi de 1,33% e ocorreu em 2013, o maior valor foi 1,95% em 2001. A figura abaixo mostra esses dados e destaca o valor de 2% do PIB.




Em termos gerais o gasto militar em torno de 1,5% do PIB deixa o Brasil na mediana dos países da amostra, um aumento para 2% do PIB colocaria o Brasil no terço superior dos países com maior comprometimento do PIB com defesa. Em 2019 nem a China dedicou mais de 2% as despesas militares. Em termos absolutos os gastos militares do Brasil estão entre os 15% maiores do mundo e são, com folga, os maiores da América Latina e Caribe. Aumentar os gastos para 2% do PIB não mudaria muito nossa posição global, mas aumentaria de forma significativa nossa distância para os outros países do continente. Considerando os países com grandes territórios os gastos militares brasileiros ficam atrás dos Estados Unidos, China, Índia e Rússia, gastamos com militares do que, por exemplo, Austrália e Canadá. Em termos históricos o percentual de 2% dos gastos com defesa nos levaria de volta para o período pré-estabilização, quando a média era de 2,06% do PIB contra 1,54% no período pós-estabilização. Durante a ditadura militar a média foi de 2,07%, bem próxima do desejado pelo Ministério da Defesa.

A divisão do orçamento público envolve conflito entre grupos de interesses e revela as prioridades dos governantes e do Congresso. O Brasil gastar 1,5% do PIB com defesa não parece algo fora de propósito, é legítimo que alguém diga que 2% seriam compatíveis com nosso passado e fariam mais justiça a nossa estatura, para usar a expressão do ministro da Defesa. Resta saber qual é nossa estatura visto que já fomos chamados de anões diplomáticos, mas essa é outra história. Enfim, se a prioridade do governo é deslocar 0,5% do PIB para gastos com defesa é direito deles, da minha parte espero que o Congresso não concorde com a proposta.

Da minha parte tentaria aliviar os pagadores de impostos de bancar esse aumento de 0,5% do PIB, mas, se não fosse possível, preferia que os recursos fossem usados para dobrar o Bolsa Família. Enfim, como disse no primeiro parágrafo, cada um com suas prioridades.


sábado, 18 de julho de 2020

Teto de Gastos, Fundeb, desonerações e caneladas.


Próxima semana o Congresso deve discutir uma PEC para possibilitar a continuidade do Fundeb. Para quem não sabe trata-se do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação que foi instituído pela Emenda Constitucional no. 53 de 2006. Nesta emenda ficava determinado que por 14 anos os estados, o Distrito Federal e os municípios destinariam recursos para o Fundeb, a União também contribui para o fundo, em 201º ficou estabelecido que a contribuição da União seria de 10% da contribuição total de estados e municípios.

O objetivo desse post não é discutir o Fundeb. Poucos economistas discordam que educação básica tem impacto na renda dos indivíduos e na distribuição de renda, da mesma forma poucos economistas discordam que o estado deve financiar parte da educação e trabalhar para garantir que todas as crianças recebam educação. Se o Fundeb é a ferramenta adequada para atingir esse objetivo é coisa que não sei dizer. Fiz uma pesquisa rápida sobre avaliações do Fundeb e encontrei um artigo de 2017 publicado na Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE) escrito por Iara Maira da Silveira, João Eustáquio de Lima, Evandro Camargos Teixeira e Rubicleis Gomes da Silva intitulado “Avaliação do efeito do Fundeb sobre o desempenho dos alunos de ensino médio no Brasil” (link aqui). Os autores usam o método de diferenças e diferenças e concluem que “a valorização salarial pretendida com o Fundeb teve efeitos positivos no rendimento dos alunos.”. Foi encontrado efeito positivo em português e matemática. Por outro lado, a pesquisa mostrou que o Fundeb foi menos efetivo nas escolas onde os alunos têm um baixo desempenho, de forma que o Fundeb não contribui para equidade entre as escolas.

Como o objetivo desse post não é discutir o Fundeb me dou por satisfeito com esse artigo. No post anterior (link aqui) comentei o programa de desonerações que o Congresso pretende prorrogar até 2021. Como mostrei no post grande parte da literatura aponta que as desonerações não tiveram os efeitos desejados e mesmo os políticos que defenderam a política de desonerações reconheceram ser essa uma política ruim. Por que trazer essa questão aqui? Porque imagino que muita gente vai culpar o Teto de Gastos pela possibilidade de o Fundeb acabar mesmo sabendo que esse fim estava previsto desde 2006. Desta forma, aviso aos interessados, que existe uma política ruim, as desonerações, que entre 2014 e 2019 teve mais impacto no gasto primário, medida relevante para o Teto de Gastos, do que os aportes da União para o Fundeb. Neste período as compensações ao RGPS por conta das desonerações, gastos que entram no teto, foram de R$ 115,5 bilhões contra R$ 91,6 bilhões para o Fundeb. Até 2017 as compensações foram maiores que os aportes para o Fundeb em todos os anos, em 2018 os valores        ficaram bem próximos, R$ 14,3 bilhões para as compensações e R$ 14,6 bilhões para o Fundeb, e em 2019 a diferença cresceu com o Fundeb ficando com R$ 15,9 bilhões e as compensações com R$ 10,4 bilhões. A figura abaixo mostra cada gasto ano a ano.




Se uma pesquisa na literatura mais cuidadosa que a minha mostrar que as evidências apontam que o Fundeb não tem impacto que o fundo seja descontinuado. Se existir uma alternativa melhor, cabe a quem propor essa alternativa mostrar que ela é melhor, que o Fundeb seja substituído por essa alternativa. É certo que a mania nacional de deixar tudo para última hora vai dificultar uma eventual troca de política e quase certamente exigir alguma forma de transição. Agora se o argumento para encerrar o Fundeb for o Teto de Gastos uma alternativa é desistir de derrubar o veto à prorrogação das desonerações abrindo espaço para a manutenção do Fundeb. A não ser que nossos congressistas prefiram uma política mal avaliada por especialistas, por ex-presidentes e por ex-ministros da economia do que manter o Fundeb, mas aí não vale culpar o Teto de Gastos.

Sim, hoje eu resolvi chutar na canela!

P.S. ‪O problema de dar canelada é acabar pisando na bola. O Fundeb não entra no Teto de Gastos, falha minha, o post continua porque a comparação ainda é válida, gasto é gasto, e pisadas na bola devem ficar registradas para que não sejam esquecidas. ‬

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Uma contribuição à causa contra a prorrogação das desonerações.


Leio nos jornais que o Congresso vai derrubar o veto de Bolsonaro à prorrogação das desonerações até o final de 2021 (link aqui). Programas para desonerar a folha de pagamento voltados a empresas ou setores específicos não são novidades no Brasil, recentemente estiveram no centro das polêmicas envolvendo os erros de política econômica do governo Dilma. Em 2015 a Folhas de São Paulo anunciou que as desonerações concedias por Dilma somariam R$ 458 bilhões de reais entre 2011 e 2018 (link aqui), para o leitor ter uma ideia de proporção o gasto com o Bolsa Família entre 2011 e 2018 foi de R$ 204 bilhões em valores correntes e R$ 260 bilhões em valores de maio de 2020. Segundo a Folha o valor seria suficiente para bancar dezessete anos de Bolsa Família.

Só as compensações do Tesouro ao RGPS por conta das desonerações, que estão no teto de Gasto e, portanto, disputam orçamento com outras contas importantes, somaram R$ 10,4 bilhões em 2019. O valor é pouco menor que os R$ 11,4 bilhões da conta de subsídios, subvenções e Proagro onde estão mais de vinte e cinco programas, por exemplo, programas agrícolas como a política de preços agrícolas e o Pronaf, PROEX (aquele dos bancos), PSI (aka bolsa empresário). Também equivale a quase dois terços dos gastos da União com complementação do Fundef/Fundeb que foram de R$ 15,9 bilhões em 2019. O espaço do Teto de Gastos ocupado pelas compensações ao RGPS por conta das desonerações também pode ser apresentado como quase 20% dos R$ 57,2 bilhões gastos pela União em investimento no ano de 2019 ou quase um terço dos R$ 33,6 bilhões destinados ao Bolsa Família no ano passado.

Com um custo tão alto, quais os benefícios das desonerações? Como gosto de provocar começo com a avaliação feita pela própria Dilma Roussef (link aqui):

"Eu acreditava que, se diminuísse impostos, teria um aumento de investimentos... Eu diminuí. Eu me arrependo disso. No lugar de investir, eles aumentaram a margem de lucro".

Fica claro que nem a presidente que usou e abusou de uma política que foi chamada de brincadeira por Joaquim Levy (link aqui) e foi criticada por Lula (link aqui) aprovou o resultado desta política. Mérito dela que soube reconhecer o erro, demérito do atual Congresso que deseja prolongar a política

Não é só Dilma que avaliou mal as desonerações. Um estudo publicado pelo IPEA em 2018 com o título “Impacto da Desoneração da Folha de Pagamento sobre o Emprego :novas evidências” e assinado pelo Felipe Garcia, Adolfo Sachsida e pelo Alexandre Xavier Ywata de Carvalho (link aqui) concluiu que:

“A despeito das intenções positivas da lei de desoneração, pode-se dizer que, pelas avaliações ex post já realizadas, o que inclui o presente estudo, não há evidências robustas de efeitos reais positivos da desoneração... Assim, em função da magnitude da renúncia fiscal concedida pela desoneração, a revisão da desoneração é uma proposta para o debate.”

Como pode ser visto, a falta de resultados significativos e o alto custo da política levam os autores a recomendar uma revisão das desonerações. Essa é uma forma polida de especialistas dizerem que uma política é ruim.

Também publicado pelo IPEA, desta vez em 2019, o estudo “Desonerações do Imposto sobre Produtos Industrializados e seus Impactos sobre o Mercado de Trabalho” de autoria de Igor Vinícius de Souza Geracy, Carlos Henrique Leite Corseuil e Fernando Gaiger Silveira (link aqui), traz como conclusão:

“Nesse período como um todo, nossos resultados apontam efeitos nulos em todas as variáveis investigadas, referentes ao mercado de trabalho. Quando dividimos em dois subperíodos, aparece um efeito de desonerações do IPI reduzindo demissões somente entre 2010 e 2012. Todos esses resultados são robustos a uma série de escolhas metodológicas alternativas. Os resultados ensejam discussão do uso desse tipo de política de desoneração ao setor industrial como forma de estimular a atividade econômica, sobretudo em contextos de severa restrição orçamentária.”

Assim como no caso anterior, os autores não encontram resultados fortes das desonerações e pedem uma discussão desse tipo de política. Novamente alerto ao leitor que esse tipo de conclusão é uma forma educada de dizer que a política é ruim.
  
Em dissertação intitulada “A desoneração da folha e seu efeito sobre o mercado de trabalho no Brasil” defendida em 2017 na FEA/USP (link aqui), Erick Baumgarter afirma em sua conclusão que:

“Os resultados não encontram efeito sobre o nível salarial dos setores desonerados, assim como para o nível de emprego das empresas desoneradas em função do NCM de seus produtos. Para os desonerados por sua classificação na CNAE, porém, há um efeito claro da desoneração sobre as empresas no regime normal de tributação (fora do SIMPLES), indo de acordo com o apresentado em estudos anteriores sobre o tema. Uma análise das empresas do SIMPLES, porém, aponta para uma queda (ainda que em menor magnitude) do nível de emprego, o que indica que a utilização das empresas do SIMPLES como contrafactuais, como realizado por Scherer (2015), pode acarretar problemas de endogeneidade.”

Grosso modo o parágrafo acima diz que efeitos podem ou não encontrados de acordo com a forma de classificar produtos e empresas. Usando a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) não encontra efeitos, com Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) foi possível encontrar efeitos. O efeito encontrado é parcialmente compensado pelo efeito contrário encontrado nas empresas do SIMPLES, em geral pequenas empresas. A questão fina relativa a endogeneidade é assunto técnico que escapa a esse post.

Mesmo antes da crise ser revelada pesquisadores mostravam um impacto pequeno ou muito localizado das polícias de desoneração. No artigo “As Políticas Industriais Brasileiras: um ensaio sobre a desoneração da folha de pagamentos”, publicado em 2015 pela Revista Paranaense de Desenvolvimento por Leandro Meyer, Humberto F. S. Spolador e Cláudio Lucinda (link aqui), os autores concluem que:

“Dessa forma, apesar de a desoneração da folha de pagamentos atenuar um relevante problema da indústria brasileira – que é a sobrecarga tributária inserida sobre as firmas industriais – seus resultados pouco expressivos até o momento podem estar relacionados à falta de atuação do governo nos moldes daquilo que Hausmann e Rodrik (2003) classificam como “políticas industriais novas”.”

Mais uma vez os autores concluem que as desonerações apresentam resultados pouco expressivos. Os autores ainda arriscam um “até o momento”, talvez com a esperança de que o futuro trouxesse melhores resultados, como já vimos isso não aconteceu.

Em 2014, o ano em que a crise já estava instalada, mas ainda havia quem a negasse, a Carolina Caparroz Dallava defendeu dissertação de mestrado na FGV/SP com o título “Impactos da desoneração da folha de pagamentos sobre o nível de emprego no mercado de trabalho brasileiro: um estudo a partir dos dados da RAIS (link aqui). Na conclusão a autora escreve:

“Os resultados sugerem que apenas a Seção da CNAE Informação e Comunicação apresentou resultado positivo e estatisticamente significativo, tanto para emprego quanto para salário.
...
Para a Seção de Indústria de Transformação praticamente todos os modelos não apresentaram resultados significativos nem para emprego nem para salário, sugerindo que a política analisada não teve, neste setor, o efeito que se pretendia.
...
Com relação à Seção Alojamento e Alimentação (principalmente hotéis), os resultados foram negativos e significativos para o nível de emprego, contrários ao objetivo da medida, tanto para o total do setor quanto para micros/pequenos clusters.
...
Quanto à Seção que contém Call Center, nenhum dos modelos apresentou resultados estatisticamente significativos nos modelos de emprego, muito embora este setor utilize bastante mão de obra.”

Ainda não foi dessa vez que as desonerações mostram resultados. Talvez o leitor já esteja convencido, mas ainda vou abusar da paciência de quem chegou até aqui e pedir para comentar mais dois estudos.

Em 2012 uma dissertação intitulada “Avaliação empírica da desoneração da folha salarial” foi defendida no Insper pela Michelle Schuindt do Carmo (link aqui). O objetivo era medir o impacto das desonerações no grau de formalização das relações de trabalho e no índice de realocação entre setores que foi usado como proxy para estabilidade no trabalho. A conclusão da autora já apontava para os resultados do futuro:

“Constata-se que o impacto medido não é estatisticamente diferente de zero a qualquer nível razoável de significância. Assim, não há evidências de que o grupo afetado pela desoneração tenha sofrido alteração significativa na sua probabilidade de migrar para a informalidade, nem na probabilidade de mudar de setor de atividade econômica. Conclui-se, portanto, que, no período avaliado, a medida adotada pelo governo não teve impacto nas variáveis analisadas.”

A dissertação da Michelle Schuindt do Carmo já apontava a necessidade de pensar melhor as desonerações. Infelizmente os então responsáveis pela política econômica não leram ou não deram a devida atenção aos resultados.

O último estudo que vou comentar é o único a encontras resultados favoráveis à desoneração. Trata-se de de Working Paper do International Institute of Social Studies publicado em 2015 pelo Clóvis Scherer com o título “Payroll tax reduction in Brazil Effects on employment and wages” (link aqui). Apesar de publicado em 2015 o estudo usa dados de 2012, o que o próprio autor reconhecer ser um problema. A alternativa de usar empresas do SIMPLES para controle pode não ter sido das mais felizes conforme apontado no trecho citado da dissertação do Erick Baumgarter. A verdade é que em 2012 era difícil separar os efeitos gerais da economia dos efeitos específicos das desonerações, difícil, mas não impossível, como mostra a dissertação da Michelle Schuindt do Carmo.

A grande maioria dos trabalhos que li para esse post apontam para resultados fracos ou mesmo inexistentes das desonerações, o único que destoa foi feito com dados de 2012. Dilma, que apostou alto nesse tipo de política, reconheceu o erro. Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma, criticou pesadamente as desonerações, Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer, registrou que o custo da desoneração da folha foi maior que o benefício esperado (link aqui). Bolsonaro, quase certamente orientado por Paulo Guedes, vetou a prorrogação das desonerações. E difícil entender a razão de mesmo com tantos argumentos contrários o Congresso insiste na possibilidade de derrubar o veto de Bolsonaro à prorrogação, mentira, não é difícil, mas isso é assunto para outro post.



quinta-feira, 9 de julho de 2020

Alíquotas de impostos sobre a renda das empresas no Brasil e no Mundo


Hoje o titular da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Salim Mattar, fez um tuíte comentando os números da OCDE mostrando que o Brasil taxa muito as empresas. Resolvi dar uma olhada nos dados e compartilhar alguns comentários com os leitores do blog, já vou avisando que o secretário está correto.

Os dados estão no Corporate Tax Statistics Database da OCDE (link aqui) e consideram impostos sobre a renda das empresas do governo central e dos governos regionais. São disponibilizados dados para 108 países, 36 pertencentes à OCDE e 72 não pertencentes. As taxas mais altas estão na Índia, 48,3%, seguida pela República Democrática do Congo e por Malta, 35%, e pelo Brasil com 34%. É isso mesmo, as empresas brasileiras pagam a quarta maior alíquota de impostos sobre renda entre os 108 países avaliados pela OCDE, mais ainda, em nenhum país da OCDE a alíquota é maior que no Brasil. Chega perto, como é o caso da França, mas não é maior.

Considerando todos os países da amostra a alíquota média é de 20,7%. Retirando os 11 países onde alíquota dos impostos sobre a renda das empresas é zero, nenhum deles pertence à OCDE, a alíquota média sobe para 23%. Para os países que não pertencem à OCDE e cobram alíquotas maiores do que zero a alíquota média é de 22,8% e a mediana é de 25%. A figura abaixo mostras as alíquotas desses 61 países com o Brasil em destaque.




Na amostra apenas com países da OCDE a alíquota média é de 23,3% e a mediana é de 23,5%. A figura abaixo mostra essa amostra de países adicionada do Brasil. Fica claro que as alíquotas de impostos sobre a renda enfrentadas pelas empresas brasileiras são bem maiores que as de outros países, inclusive de países ricos.




A figura abaixo mostra as alíquotas em todos os países da amostra com destaque para um grupo selecionado de países, quanto mais para direita maior a alíquota do país. O eixo vertical mostra quantos países possuem alíquotas menores que a do país, 97,2% dos países possuem alíquotas menores que a do Brasil e 12% possuem alíquotas menores que a Hungria.




A discussão a respeito das alíquotas de impostos sobre a renda das empresas ganha ainda mais relevância em um momento onde o governo fala de taxar dividendos, uma tributação que incide sobre o dinheiro que a empresa paga aos acionistas. Do ponto de vista teórico existem críticas relevantes a esse tipo de imposto, da minha parte fico incomodado com o potencial efeito do imposto de prender recursos em uma firma que pode não ser a mais interessante para investir. Se o imposto sobre dividendos for muito alto o acionista pode preferir manter o dinheiro na firma do que receber os dividendos e investir em outra empresa mais produtiva. Por outro lado, o argumento que a grande maioria dos países usa esse tipo de imposto não deve ser ignorado. Teorias dizem muitas coisas e dependem de hipóteses por vezes de difícil averiguação. Estudos empíricos podem jogar uma luz sobre o real impacto de um imposto sobre dividendos, mais as conclusões desses estudos são limitadas por dificuldades de identificação e de estabelecer causalidade.

De todo modo, se o governo brasileiro optar por seguir a maioria e adotar um imposto sobre dividendos, é fundamental reduzir o Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e/ou a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). A não ser que o Brasil queira disputar com a Índia o topo do ranking dos países que mais tributam o lucro das empresas, o que não me parece ser uma boa ideia.


domingo, 5 de julho de 2020

Votos do Brasil na ONU entre 1991 e 2019: o que mudou com Bolsonaro?

O post de hoje é um exercício com números de uma área que conheço pouco, mas tenho interesse. Como é comum em exercícios onde temos os números, mas não dominamos bem os conceitos alguns erros de interpretação podem aparecer aqui e ali. Por tais erros peço desculpas, se o objetivo fosse fazer um artigo sobre o tema certamente buscaria ajuda de quem entende do riscado, como é apenas um post creio que dá para seguir adiante.

Com base nos dados organizados por Erik Voeten, Anton Strezhnev e Michael Bailey em United Nations General Assembly Voting Data (link aqui) e inspirado em um estudo de caso do Datacamp guiado pelo Dave Robinson (link aqui) resolvi dar uma nos votos do Brasil na ONU e se houve alguma mudança de padrão com a chegada de Bolsonaro ao poder. Os dados cobremos votos nas Assembleias Gerais da ONU entre 1946 e 2019. Para cada sessão de cada assembleia estão disponíveis informações como o voto do país, a importância do tema e a natureza do assunto. Pelo que entendi a regra geral é que quando o país vota “sim” está seguindo a orientação da ONU, desta forma o percentual dos votos “sim” nas assembleias de cada ano oferece uma medida de adesão do país à ONU ou à comunidade internacional.

A figura abaixo mostra o percentual de votos sim do Brasil, da China e dos Estados Unidos desde 1991. Repare quem em todos os anos do período os Estados Unidos acompanham a ONU em menos de 50% das votações, na grande maioria dos anos China e Brasil flutuam entre 75% e 100% de adesão à ONU. Perceba que a partir de 2015 o Brasil começou a divergir mais da ONU com uma forte em queda em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, quando o Brasil votou “sim” em 72,5% das vezes. A última vez que o percentual de votos “sim” do Brasil tinha ficado abaixo de 73% foi em 1974. De 1991 para cá a menor adesão à ONU tinha sido em 2004 quando o Brasil votou “sim” em 83,3% dos casos e maior adesão foi em 1991 com 97,3% de votos “sim”. Desta forma parece válido afirmar que, considerando a proporção de votos “sim” como medida de adesão à comunidade internacional, o governo Bolsonaro reforçou a tendência de queda iniciada em 2016. É curioso notar que o aumento da adesão da China na mesma época que cai a adesão do Brasil. Não dizer se os dois fenômenos estão relacionados.



 

Os dados também permitem avaliar o comportamento dos países por temas de interesse. A figura abaixo mostra as proporções de votos “sim” do Brasil, China e Estados Unidos entre 1991 e 2019 para cada um dos temas disponíveis na base de dados.




As quedas mais expressivas na proporção de votos “sim” ocorrem nos temas relacionados ao conflito na Palestina e aos direitos humanos. Na questão da Palestina o grau de adesão do Brasil caiu de 87,5% em 2018 para 35,7% em 2019, nestes dois anos a adesão da China foi de 100% e a dos Estados Unidos foi de 0%. No tema direitos humanos a adesão do Brasil caiu de 72,7% em 2018 para 50% em 2019, nos mesmos anos a adesão dos Estados Unidos subiu de 27,3% para 35,7% e a da China de 66,7% para 71,4%. Como causou estranheza a adesão da China maior que a dos Estados Unidos no quesito direitos humanos fui dar uma olhada na adesão de outros países. Em 2019 a proporção de votos “sim” no tema direitos humanos foi de 35,7% na representação do Canadá, 38,5% na da Austrália, 42,9% nas do Reino Unido, Bélgica, França e Alemanha, 71,4% na da Venezuela, 76,9% na de Cuba, 78,6% na do Iraque, 87,5% na Guiné Equatorial, 92,9% na da Arábia Saudita e 100% na da Bolívia. Não quanto ao leitor, da minha parte, quando o assinto é direitos humanos, prefiro que o Brasil esteja próximo da França e da Alemanha do que da China e da Venezuela. Dois registros sobre direitos humanos devem ser feitos: a maioria dos países do continente tem alta adesão, inclusive o Chile, e é possível que tenhamos a mesma proporção de “sim”, mas por conta de votações diferentes. Não chequei nesse nível de detalhe, fica para outra oportunidade.

No tema colonialismo o Brasil descolou da China e da ONU a partir de 2017 quando saiu de uma sequência de 100% de votos “sim” para 87,5%, caindo para 66,7% em 2018 e voltando para 87,5% em 2019. Não fiz o mesmo exercício de checar países que fiz para o tema direitos humanos, mas arrisco dizer que a mudança reflete o fim do período do PT e da política de buscar ser líder dos países emergentes. A proporção de votos “sim” do Brasil no tema controle de armas e desarmamento não mostrou alterações relevantes, a adesão à ONU foi de 88,2% em 2018 para 87,5% em 2019 ficando acima da adesão da China e dos Estados Unidos. Uma última curiosidade não relacionada ao Brasil é mudança na adesão da China à ONU no tema armas e materiais nucleares. Será?

Não sei os impactos da mudança na adesão à ONU ocorrida no governo Bolsonaro. O índice de votos “sim” nos níveis do começo da década de 1970 me parece um sinal claro de que a postura anti-ONU (alguns preferem dizer anti-globalismo) de Bolsonaro teve efeito na representação brasileira na ONU. Outro tema onde a influência de Bolsonaro parece clara é a questão da Palestina. Curiosamente não parece ter ocorrido mudanças significativas no tema relacionado ao controle de armas. Na questão dos direitos humanos a proporção de votos “sim” do Brasil caiu, mas se aproximou da de países europeus.