sábado, 30 de junho de 2018

Uma leitura do Raio X das Universidades Federais


Aproveitei o dia de folga da Copa para olhar com cuidado os números sobre repasses do governo para as universidades federais que o G1 obteve junto ao MEC e divulgou em uma série de reportagens (link aqui e aqui). Os valores, corrigidos pelo IPCA, dizem respeito aos repasses para universidades federais excluídas despesas obrigatórias como pagamento de professores e técnicos administrativos, ou seja, é o orçamento que a universidade pode usar para investimento e para manutenção (incluídos os gastos com serviços terceirizados de limpeza, portaria e vigilância).No decorrer do post vou me referir a este orçamento de despesas não obrigatórias simplesmente como orçamento. O número que chama atenção é a queda de quase 30% nos repasses para as universidades quando comparados os valores empenhados em 2017 com os valores empenhados em 2013. A figura abaixo reproduz a figura que ilustra a reportagem do G1, nela estão os valores previstos para o orçamento das universidades e os valores que de fato foram empenhados, ou seja, os valores que foram liberados.




Até 2013 ambos os valores subiram de forma significativa e aparentemente insustentável. Em 2014 e 2015 ocorre um descolamento das séries com os valores previstos se mantendo estáveis e os valores empenhados caindo consideravelmente. O descompasso entre a promessa do governo e os recursos que realmente chegavam as universidades reflete bem uma época em que o governo Dilma tentava esconder a necessidade de ajuste fiscal. A partir de 2015, após as eleições, não havia mais necessidade de esconder o ajuste e os valores prometidos pelo governo caíram de forma a se aproximar dos valores reais. O gráfico também mostra que o ajuste nas universidades começou ainda em 2014, antes da chegada de Levy ao governo e antes da regra do teto de gastos, mas ficou “escondido” até 2015.

Comparando o orçamento de cada universidade durante o período de cortes é possível ver que apenas a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a Universidade Federal do Tocantins (UFT) e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) tiveram em 2017 um orçamento real maior que o de 2013. Na outra ponta nove universidades tiveram em 2017 um orçamento menor que a metade do orçamento 2013. A figura abaixo mostras as vinte universidades com maiores quedas de orçamento em 2017 relativo a 2013.




A maior queda ocorreu na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), uma universidade fundada em 2005 que conta com menos de dez mil alunos de graduação, mas na figura também aparecem universidades grandes como a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a Universidade de Brasília (UnB), a  Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a Universidade Federal de Goiás (UFG), a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), todas com mais de vinte mil alunos de graduação. Os valores significativos dos cortes explicam as medidas de contenção de despesas tomadas em várias universidades, inclusive a UnB, conforme os dados do G1 obtidos junto ao MEC teve em 2017 o equivalente a 54% do orçamento para despesas não obrigatórias de 2013.

Os dados parecem confirmar minha impressão que a elevação dos repasses as federais que ganhou força com o REUNI lá por 2008 era insustentável. Ao contrário de setores da comunidade acadêmica que enxergam os cortes como parte de um projeto dos atuais inquilinos do Palácio do Planalto acredito que os cortes eram inevitáveis. Do contrário qual seria a razão de Dilma e Mantega, a mesma dupla que bancou a expansão, passar a tesoura nos orçamentos das universidades? Desta forma acredito que as universidades vão ter de reajustar seus tamanhos e buscar outras formas de financiamento, tal financiamento não vai bancar totalmente as universidades, longe disso, mas pode ser fundamental para manter as despesas não obrigatórias financiadas com repasses da União.

As universidades custam caro, em parte por problemas em gestão, mas também porque ensino superior de qualidade custa caro. Laboratórios, professores doutores de tempo integral, passagens e diárias para participação em congressos internacionais e outros insumos necessários para uma universidade que se propõe a ser “de qualidade” custam muito dinheiro. Por outro lado, universidades “de qualidade” possuem meios para arrecadar recursos e não há razão para que tais meios não sejam utilizados para complementar os repasses da União. A figura abaixo mostra as vinte universidades que mais receberam repasses para despesas não obrigatórias, note que essas despesas costumam ser bem menores que as despesas obrigatórias, no caso da UnB as despesas com pagamento de pessoal e benefícios chega a 85% da despesa total (link aqui), a realidade das outras universidades, principalmente as grandes, não é muito diferente.




A grande maioria das universidades que aparecem na figura possuem mais de cinquenta anos (as exceções são a UFMT criada em 1970, a Unifesp criada em 1994 e a UTFPR criada em 2005) e tinham mais de vinte mil alunos de graduação em 2016 (a exceção é a Unifesp que possuía cerca de onze mil alunos naquele ano). A UFF, universidade federal com maior número de alunos de graduação, não é a primeira da lista, mas está no grupo das que receberam mais de R$ 200 milhões para despesas não obrigatórias na média de 2015 a 2017. Das cinco universidades que receberam mais de R$ 200 milhões a mais nova é a UnB, criada em 1962, e a que te menos alunos é a UFRN, com cerca de vinte e oito mil alunos de graduação em 2016 e única da lista com menos de trinta mil alunos de graduação.

Para ajustar o efeito do número de alunos a figura abaixo mostra os repasses para despesas não obrigatórias como proporção do número de alunos, assim como na figura anterior parecem os vinte maiores. O maior repasse por aluno ocorreu na UFABC, porém o valor muito longe das outras, R$ 89.792 por aluno contra uma média de R$ 8.427 por aluno em todas as universidades, e o número muito baixo de alunos, 1.299 contra um média de 17054, me fazem desconfiar que tenha algum erro nos números relativos a UFABC e, por isso, a retirei da figura. Caso os números da UFABC estejam corretos é preciso avaliar com cuidado as razões para tamanha diferença entre a federal do ABC paulista e as demais universidades federais.




Ao contrário da figura anterior com os repasses totais os primeiros lugares dos repasses por alunos não são dominados pelas universidades grandes e antigas. A UFABC, salvo erro dos dados a que está em primeiro lugar, foi criada em 2006 e, novamente salvo erros nos dados, tem apenas 1.299 alunos, é a federal com menor número de alunos em 2016. A Unila foi criada em 2010 no Paraná e tinha 2.764 alunos em 2010. Das vinte universidades com maiores repasses por alunos apenas seis (UFRJ (1920), UFRPE (1955), Furg (1969), UFMG (1949), UFU (1969) e UFRN (1960)) foram criadas antes de 1970 e apenas quatro (UFRJ (39.228), UFMG (32.144), UFU (21.597) e UFRN (28,416)) possuíam mais de vinte mil alunos de graduação em 2016.

A estratégia de pulverizar universidades talvez tenha tornado a expansão das federais mais caras do que seria com a expansão das universidades existentes. É certo que parte do custo maior das universidades mais novas está relacionada a necessidades de investimento que já foram realizados nas universidades antigas, porém universidades maiores conseguem reduzir os custos por aluno por conta de efeitos de escala. A figura abaixo mostra a relação entre número de alunos de graduação e repasses por aluno, para evitar distorções a UFABC foi excluída da amostra.




A relação entre repasses por aluno e alunos de graduação é negativa e significativa, na regressão descrita na figura o coeficiente foi de -0,27 e o p.value foi de 1.31e^-08, em variações da regressão incluindo ano de fundação ou excluindo as universidades fundadas depois de 2006 o coeficiente negativo e significativo se repete. É sempre preciso tomar cuidado com regressões e mais cuidado ainda em tirar relações de causalidade de regressões, mas pelo que conheço de gestão de universidades federais vou tomar a liberdade de concluir que em geral universidades grandes implicam em menores custos por aluno. Eventuais efeitos de rendimentos decrescentes são dominados por efeitos de escala.

Um ponto que não foi considerado na regressão anterior (todo cuidado com regressão é pouco) são os cursos oferecidos pelas universidades. Para considerar essa questão é necessário um estudo mais amplo que foge as pretensões desse blog, mas a questão é relevante. A figura abaixo mostra o custo por aluno nas diversas unidades da UnB conforme o relatório de gestão de 2016 (link aqui), repare que as diferenças são significativas, a unidade com maior custo por aluno tem um custo por aluno 7,8 vezes maior que a unidade com menor custo. Uma das explicações é que cursos com laboratórios custam caro, repare que o Instituo de Física (IF), o Instituto de Biologia (IB) e a Faculdade de Medicina (FM) estão entre os que apresentam maiores custos por alunos na UnB. Outro ponto importante é como custos e alunos são considerados. Os laboratórios de física são contabilizados como custos do IF, porém são utilizados por alunos de engenharia que são contados como alunos da Faculdade de Tecnologia (FT). O exemplo ilustra as dificuldades de mensurar custos por aluno, por isso é preciso tomar cuidado com comparações como as feitas acima e que vez por outra aparecem na imprensa.




O financiamento das universidades federais é um tema de extrema relevância que deve ser discutido com cautela. Sei que existe uma tentação de mandar as federais para o espaço e que várias ações das próprias universidades, inclusive a resistência a inovações na gestão, alimentam essa tentação, mas a questão é bem mais delicada do que pode parecer. Grande parte dos laboratórios e dos melhores pesquisadores do país estão nas universidades federais, nelas também estão alguns de nossos mais promissores jovens. Construir um sistema de universidades privadas nos moldes americanos leva tempo e pode não ser viável no médio prazo, as próprias universidades públicas dificultam tal construção à medida que oferecem condições vantajosas para atrair professores e alunos.

Privatizar as universidades pode ser um caminho, mas vai ser difícil encontrar compradores e, talvez ainda mais difícil, vencer a resistência da classe média em ver privatizado um dos poucos serviços prestados pelo estado que a classe média ainda prefere aos serviços privados. Para não falar nos desafios legais de transferir para o setor privado uma força de trabalho regida pelo Regime Jurídico Único, para o leitor ter uma dimensão do que estou dizendo considere apenas a questão dos aposentados e dos servidores ativos que tem direito a aposentadorias com salário integral.

Dadas tais dificuldades acredito que a médio prazo o caminho é usar uma gestão inspirada em universidades públicas de outros países (o modelo das universidades públicas da Califórnia pode ser um ponto de partida) revendo a questão da carreira docente, principalmente no que tange à estabilidade precoce. A escolha de dirigentes (reitores, diretores, chefes de departamento e coordenadores) deve ser feita por outros processos que não as eleições periódicas dignas de “prefeituras do interior”. Imagino algo como o reitor escolhido por um comitê que pode ter participação de membros da comunidade acadêmica, porém esta representação não pode ser majoritária, usando critérios relacionados a capacidade e experiência em gestão de universidades. Uma vez escolhido o reitor será avaliado a partir de metas impostas pelo comitê que o escolheu. Diretores, chefes de departamento e coordenadores seriam escolhidos pelo reitor e também estariam sujeitos a metas.

Os Conselhos Universitários também teriam que ser reformados. Já participei de todos os conselhos superiores da UnB, é simplesmente impossível tomar decisões bem informadas em um conselho com sessenta ou setenta pessoas. Os grandes conselhos podem até continuar existindo, mas se reuniriam no máximo uma vez por semestre para avaliar o desempenho dos administradores de acordo com os parâmetros estabelecidos. Conselhos menores, entre sete e onze membros, ficariam responsáveis por acompanhar a gestão e avaliar questões estratégicas para a universidade. É possível pensar um arranjo em que os pequenos conselhos justificam suas decisões diante dos grandes conselhos;

Já falei em outro lugar a respeito da questão do financiamento (link aqui e aqui). Para além dos projetos e parcerias gosto de citar um post do Economista X (link aqui) com várias sugestões para o financiamento da USP que podem ser adaptadas para as universidades federais. Um último ponto que causa muita polêmica e que não vou deixar passar em branco é a questão da cobrança de mensalidades. A cobrança dos custos integrais me parece inviável, se fosse possível seria o caso de considerar a hipótese de privatização, logo, se for para ter cobrança, deve haver uma forma de transição que será tão mais suave quanto maior for a resistência política dos beneficiados pela ausência de mensalidades. Minha proposta é começar devagar com uma taxa de matrícula semestral que não seria cobrada de alunos de renda baixa conforme critérios estabelecidos pela universidade ou pelo MEC. Em uma universidade com cerca de trinta e cinco mil alunos de graduação, como a UnB ou a UFBA, me parece razoável supor que pelo menos vinte mil estariam em condições de pagar uma taxa semestral de, digamos, mil reais (menos de R$ 200 por mês). Isso daria cerca de vinte milhões de reais por semestre ou quarenta milhões por ano, muito pouco perto do orçamento total de uma universidade como a UnB (cerca de R$ 1,7 bilhões), mas equivale a um quarto dos quase R$ 160 milhões que a UnB recebeu de repasses para cobrir despesas não obrigatórias em 2017. Me parece um bom começo.


sábado, 9 de junho de 2018

Ainda não é hora de respirar aliviado, a dívida não deixa.


A semana foi tensa para a economia, em um certo momento parecia que iriamos de vez para o brejo. A elevação da taxa de juros nos EUA, sinalizando um provável ajuste na economia americana que está com baixo desemprego e começa a ter ameaça de inflação, já tinha dado sinal que faria estrago por aqui. Na quarta-feira, 23/05, parecia que as coisas estavam se acalmando, mas... naquele dia começou uma inacreditável sequência de erros que revelou a fragilidade do governo e, por consequência, da política econômica. Na terça-feira, 22/05, começava a ganhar força a greve dos caminhoneiros, o governo então acenou com a possibilidade de usar a CIDE para reduzir o preço do diesel, na quarta-feira, 23/05, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, em um movimento irresponsável e populista ampliou a oferta do governo abrindo a possibilidade do Congresso reduzir o PIS/Cofins sobre o diesel (link aqui). O movimento de Maia botou o governo na defensiva e abriu a porteira para demandas cada vez mais absurdas dos caminhoneiros. A greve veio a terminar no começo de junho com os caminhoneiros conseguindo redução na CIDE e no PIS/Cofins, subsídios de R$ 0,30 por litro de diesel, tabela de preços mínimos para fretes e cota para autônomos em cargas da Conab (link aqui). O saldo final foi de aproximadamente R$ 4,5 bilhões em reduções de tributos, R$ 9,5 bilhões em subsídios, uma confusão até agora não resolvida nos preços dos fretes, a demissão do presidente da Petrobras que vinha fazendo um excelente trabalho (link aqui) e dezenas de bilhões de reais em prejuízos para vários setores da economia.

Já na quarta-feira o real retomou a trajetória de desvalorização frente ao dólar. A figura abaixo extraída da Bloomberg mostra o comportamento do real (em preto), do peso argentino (laranja) e da lira turca (azul) no período de um mês. Entre nove de maio e cinco de junho o real tinha desvalorizado 8,75% frente ao dólar, o peso argentino 10,1% e a lira turca 4,58%. Na sexta-feira, por conta de uma forte intervenção do Banco Central, o real valorizou cerca de 5% e fechou o período com uma desvalorização de 3,22% contra 4,32% da lira e 11,66% do peso. Não há como dizer o que vai acontecer durante a semana, é possível que o BC tenha conseguido “assustar” o mercado e conter a desvalorização do real, também é possível que o mercado “revide” e tenhamos outra sequência de desvalorizações. Declarações de Ilan Goldfajn sugerem fortemente que o BC não vai (ou não quer) usar juros para estabilizar a situação (link aqui). A situação é de fato complicada, se um analista acredita que estamos passando por um choque e que em breve a economia vai se ajustar, talvez com o real mais desvalorizado frente ao dólar, mas sem grandes mudanças em relação ao passado recente o BC fez a coisa certa. Porém, se o analista acredita que estamos passando por uma mudança de regime, uma mudança permanente na economia causada pelo ajuste americano, o correto seria antecipar aos fatos e elevar juros. Eu estou no segundo grupo, mas entendo os que estão no primeiro grupo.




De toda forma há uma aparente perplexidade em termos nos juntado a Argentina e Turquia no grupo dos países fortemente atingidos pela valorização do dólar. Mansueto Almeida, secretário do Tesouro Nacional e um dos melhores economistas do país, foi rápido em tentar acalmar o mercado mostrando diferenças entre o quadro atual e o quadro de 2002, um ano eleitoral em que houve uma grande desvalorização do real e a inflação chegou a 12,5%. Naquele ano também houve uma divisão entre os que acreditavam que o BC deveria elevar os juros e os que achavam que não, naquele ano também teve uma eleição presidencial... mas voltemos ao Mansueto, o secretário, de forma apropriada nos lembrou que em 2002 os fundamentos de nossa economia eram diferentes dos atuais (link aqui). De fato, eram diferentes, tão diferentes que alguns analistas passaram a ver os eventos da semana como um comportamento irracional do mercado. Não faltaram referências a comportamentos de manada, pânico e a uma pesquisa eleitoral que não trazia nada de realmente novo como culpados pela confusão. Com tudo isso fica a pergunta: somos iguais a Turquia e Argentina para estarmos no mesmo grupo que eles? Creio que não, mas essa é uma pergunta capciosa, façamos de outro jeito: estamos tão melhores que Turquia e Argentina e forma que não merecemos estar no mesmo grupo que eles? Minha reposta para essa pergunta também é não. Confuso? Então é hora de irmos aos números. Abaixo farei algumas comparações para mostrar que nossos problemas são diferentes dos problemas da Argentina e da Turquia, mas são muito graves e justificam o temor do mercado com o Brasil. Os dados são do FMI referentes a 2017 e previsões do próprio fundo para 2018, as previsões constam no relatório de abril e não incluem os eventos do último mês.

Comecemos pelo mais óbvio dos indicadores: o resultado em conta corrente. Grosso modo significa o quanto o país está pegando com o resto do mundo para se financiar, quanto maior o déficit mais o país precisa do resto do mundo. Na Turquia e na Argentina a previsão do FMI é que esse déficit em 2018 será superior a 5% do PIB, mais exatamente 5,1% na Argentina e 5,4% na Turquia. No Brasil a previsão é de um déficit de 1,6%, menos da metade dos outros países, em 2017 o Brasil teve um déficit em conta corrente ainda mais baixo que o dos outros dois países, foi 0,5% do PIB por aqui contra 4,8% na Argentina e 5,4% na Turquia. Some a isso o alto volume de reservas que temos (a base do FMI não disponibiliza essa variável para comparações) e fica difícil mesmo entender tamanha desvalorização do real.




Passemos agora para inflação, a variável citada pelo Mansueto oferece um balanço geral da estabilidade macroeconômica do país. Nesse quesito também estamos melhores que os outros dois países. Em 2017 tivemos inflação de 2,9% contra 11,9% na Turquia e 24,8% na Argentina, em 2018 as previsões do FMI sugerem 3,9% de inflação no Brasil, 19,2% na Argentina e 10,9% na Turquia. Pelos números vistos até agora dependemos menos que Argentina e Turquia do resto do mundo e nossa macroeconomia está bem mais arrumada que a deles.




Será que o problema está no lado fiscal? Aqui as coisas começam a complicar, de saída olhemos o resultado primário, o indicador favorito de nossos governos. Nesse quesito estamos melhores que a Argentina e piores que a Turquia. Nossos vizinhos tiveram um déficit primário de 4,5% em 2017 e a previsão para 2018 é de 3,5%, na Turquia os números são, respectivamente, 0,9% e 1,3% e por aqui 1,7% e 2,3%. Seria o resultado primário o culpado por estarmos juntos de Turquia e Argentina? Creio que não, mas a partir dele talvez cheguemos próximo a uma explicação.




O resultado primário é dado pelo resultado do governo excluídas as receitas e despesas financeiras. Mal comparando é como olhar o orçamento de uma empresa ou família ignorando os pagamentos e recebimentos de juros. Como o pagamento de juros está associado a decisões tomadas no passado a exclusão dessas variáveis passa uma ideia melhor do esforço fiscal do país, principalmente na perspectiva do FMI e dos credores. É como dizer para os credores algo como “olha, eu estou pedindo dinheiro emprestado, mas estou me esforçando; se não fossem os juros que pago a você minha necessidade de crédito seria bem menor”.  Quando um país como o Brasil, endividado e cheio de demandas por gasto, apresenta resultado primário positivo é justo dizer que o país está fazendo um esforço e seria cruel negar financiamento ao país com base em um déficit causado pelos juros. Infelizmente, como já disse Mário Henrique Simonsen, coração não é feito de tripas, por maior que seja o esforço associado a um resultado primário se no final do dia o país não conseguir manter a dívida sobre controle os credores, e mesmo o FMI, não vão financiar o país. Nessa perspectiva o resultado realmente relevante para avaliar as finanças de um país é déficit (também chamado de necessidade de financiamento do setor público, NFSP). Nesse quesito estamos mal.

Em 2017 nosso déficit foi de 7,8% do PIB, em 2018 está previsto para 8,3% do PIB. Na Argentina foi 6,5% em 2017 e está previsto para 5,5% em 2018, além de menor mostra uma expectativa de redução não aparece por aqui, e na Turquia foi 2,3% em 2017 e está previsto para 2,9% em 2018. No presente nossa casa está mais arrumada, mas no futuro estamos frágeis. De onde vem nosso déficit? Em parte das despesas primárias (não incluem pagamentos de juros), mas uma boa parte vem do que o governo paga de juros aos credores. Antes de amaldiçoar os credores e pedir para o governo não pagar mais juros vale lembrar que se o leitor tiver um dinheiro aplicado provavelmente é um credor do governo. Se isso não for suficiente lembre que o governo tem déficit primário, ou seja, se romper completamente com o sistema financeiro vai ter que cortar mais gastos ou cobrar mais impostos para pagar a conta dos gastos excluídos os juros. A vida é dura... a melhor maneira de não pagar juros é não se endividar, mas agora é tarde, a dívida existe e é grande.



A figura abaixo mostra a dívida como proporção do PIB no Brasil na Argentina e na Turquia. Fica fácil ver nosso problema, devemos cerca de 85% do PIB, a Argentina deve cerca de 55% do PIB e a Turquia cerca de 27%. Os leitores do blog já sabem do "problemão" que é nossa dívida, somos um dos países emergentes mais endividados do mundo (link aqui) e, mesmo sendo otimistas, nossa perspectiva não é muito boa (link aqui). A verdade é muito difícil para um país emergente carregar uma dívida de mais de 80% do PIB, uma elevação da taxa de juros, que se eu estiver certo e o que estamos vendo é um ajuste a um mundo de juros mais altos nos EUA vai acontecer queira ou não o BC, implica em uma dificuldade ainda maior.




A figura abaixo mostra a trajetória da dívida como proporção do PIB entre 2005 e 2023, as previsões são do FMI. Repare como temos um futuro sombrio pela frente e se pergunte se é interessante deixar o dinheiro no Brasil. Não creio que seja, apesar das promessas que fizemos e mesmo da emenda constitucional limitando o crescimento dos gastos não tomamos medidas efetivas para um ajuste de longo prazo nos gastos, na verdade sem uma reforma na previdência tal ajuste é praticamente impossível. A sociedade brasileira já mostra sinais que não está disposta a continuar aceitando aumento de impostos, do pato de 2015/16 aos caminhões de 2018 vimos reações fortes a elevação de impostos. Uma nova onda de crescimento parece improvável e, mesmo se acontecesse, já devíamos ter aprendido que tais ondas trazem mais ilusões que soluções de problemas.



Minha conclusão é que merecemos estar no grupo de países muito afetados pela valorização do dólar. Não se trata de um surto de irracionalidade nem de uma reação exagerada a uma pesquisa eleitoral, desde muito sabemos que não estávamos preparados para um cenário de juros um pouco mais elevados nos EUA. Não estou dizendo nada novo, em abril de 2017, por exemplo, o jornal O Globo publicou a seguinte declaração de Henrique Meirelles (link aqui):

“É imprescindível fazer a reforma da Previdência. Não é uma questão de opinião. É necessidade. Se a reforma não for feita, será insustentável. Um dos problemas do Rio de Janeiro é a previdência. E isso ocorre em vários estados. Tem que fazer a reforma agora enquanto há tempo para fazer. Não se pode postergar, se não a situação lá na frente será pior.”

A reforma não foi aprovada e a situação e “lá na frente” parece que chegou. Que ninguém diga que não sabia ou que não tivemos tempo.



sábado, 2 de junho de 2018

Contas Nacionais do primeiro trimestre de 2018: A recuperação continua lenta e consistente.


Na semana passada o IBGE divulgou as contas nacionais referentes ao primeiro semestre de 2018 (link aqui). O crescimento de 0,4% do PIB no primeiro trimestre de 2018 não impressionou muita gente, não é de impressionar mesmo, mas, uma olhada mais cuidadosa reforça a tese de uma recuperação lenta, porém bem fundamentada. Como já disse outras vezes aqui no blog a pior coisa que pode acontecer é uma recuperação rápida e estabanada, não precisamos de um espirro de crescimento que termina em uma pneumonia.

A figura abaixo mostra a taxa de crescimento do PIB desde 1996. A linha mostra a taxa acumulada em quatro períodos, as colunas mostram o crescimento do trimestre em relação ao trimestre anterior com o ajuste sazonal. Na figura fica claro o mergulho que começamos a da a partir do segundo semestre de 2014 e que chegou ao fundo no segundo trimestre de 2016. A partir daí começou a lenta recuperação. No primeiro trimestre de 2017 tivemos o primeiro crescimento em relação ao trimestre anterior depois de oito trimestres seguidos de queda. No acumulado de quatro trimestres apenas no último trimestre de 2017 voltamos a ter taxas positivas.




Em relação ao trimestre anterior o crescimento mais forte veio da agropecuária que cresceu 1,4%, a indústria e os serviços cresceram 0,1%. Na taxa acumulada em quatro trimestres a agropecuária também foi o destaque crescendo 6,1%, a indústria cresceu 0,6% e os serviços cresceram 1%. Assim visto os números sugerem um crescimento puxado pela agropecuária, mas a impressão muda quando abrimos os números da indústria. A figura abaixo mostra a taxa de crescimento do PIB e de setores da indústria, perceba que o crescimento da indústria foi “puxado para baixo” pela construção civil e “puxado para cima” pela indústria de transformação que cresceu mais que o dobro do PIB. Na comparação do primeiro trimestre de 2018 com o primeiro trimestre de 2017 a indústria de transformação cresceu 4,0% contra 1,6% do PIB.




De fato, como mostra a figura abaixo, a indústria de transformação caiu mais rápido que o PIB quando da crise, mas vem se recuperando mais rapidamente. Da minha parte destaco a indústria de transformação por acreditar que seja o ramo da indústria mais sensível à política econômica. Economistas desenvolvimentistas que costumam ver a indústria de transformação como o setor dinâmico da economia e o único capaz de gerar inovação, ganhos de produtividade e crescimento de longo prazo talvez estejam vendo uma recuperação ainda mais consistente do que a que eu estou vendo. O outro setor da indústria que pode responder apolítica econômica é a construção civil, esse setor cresceu muito no período anterior à crise, muita gente chegou a falar de bolha imobiliária, e faz um ajuste necessário. O governo poderia até induzir maiores taxas de crescimento do PIB com estímulos mais fortes a esse setor, mas seria um erro grave que levaria a uma nova crise em um futuro não tão distante.




Se a indústria de transformação vem mostrando um desempenho superior ao do PIB o mesmo não pode ser dito a respeito do setor de serviços. No acumulado de quatro trimestres os serviços cresceram 1% contra 1,3% do PIB, a lenta recuperação dos serviços ajuda a entender a lenta recuperação do emprego e da economia como um todo, os serviços correspondem a cerca de 60% do PIB. Os dois destaques do setor de serviços foram o comércio, cresceu 3,4%, e os transportes, cresceu 2,1%. A maior queda, 1,8%, foi em comunicações e informações.




Pelo lado da despesa o consumo das famílias cresceu 0,5% em relação ao trimestre anterior e o investimento, medido pela formação bruta de capital fixos (FBCF), cresceu 0,6%, o consumo do governo caiu 0,4%. Considerando o acumulado em quatro trimestres o consumo das famílias cresceu 2,1%, o consumo do governo caiu 0,6% e a FBCF caiu 0,1%. A figura abaixo ilustra o comportamento dessas variáveis.




A queda da formação da formação bruta de capital fixo no acumulado de quatro trimestres é um indicador ruim, mas se levarmos em conta que no primeiro semestre de 2016 a queda no acumulado de quatro trimestres foi de 15,8% percebemos que a trajetória é de recuperação. Um fato relevante é que a taxa de poupança bruta, 16,3%, ficou maior que a taxa de investimento, 16%. A turma que não gosta de poupança externa deve estar satisfeita.

Em resumo temos uma recuperação lenta, mas consistente. O crescimento da indústria de transformação acima do PIB sugere que não estamos sendo apenas puxados pelo resto do mundo e que a economia está respondendo às políticas locais. A recuperação do investimento, ainda que lenta, reforça a tese de recuperação lenta e consistente. O leitor atento notou algumas provocações no decorrer do texto, é mais forte do que eu, por mais que os números sejam relativos a um pequeno período de tempo e possam mudar rapidamente não deixa de ser irônico que a recuperação em um contexto de políticas “neoliberais” apresente um crescimento da indústria de transformação acima do crescimento do PIB e uma taxa de poupança bruta maior que a taxa de investimento, dois elementos característicos das receitas desenvolvimentistas.