quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Uma nota sobre neoliberalismo e o Consenso de Washinton

Neoliberalismo é um termo que caiu em desgraça em praticamente todos os meios preocupados com política e/ou economia. Liberais, conservadores, sociais democratas, socialistas, comunistas e turma da direita, da esquerda e do centro todos parecem ter bons motivos para desprezar o que quer que seja apontado como neoliberal. Alguns chegam mesmo a negar a existência do neoliberalismo. Mas o que é o neoliberalismo? Existe um pensamento neoliberal? Da minha parte creio que faz sentido falar de um pensamento neoliberal e que tal pensamento fez mais bem do que mal na maioria dos países onde inspirou políticas públicas, inclusive no Brasil.

Para começar registro que o neoliberalismo não é a coleção de espantalhos criado pelos inimigos de qualquer forma de liberalismo e também não é uma forma de socialismo como afiram alguns liberais e conservadores. A história do neoliberalismo começa na década de 1930, ainda durante a Grande Depressão. Naquela época era comum culpar o liberalismo, especialmente os mercados livres, pela desgraça econômica que se espalhou pelo ocidente. De um lado uma turma inspirada na experiência da União Soviética, que ainda não tinha sido revelada ao mundo como um regime totalitário, propunha o planejamento central da economia como forma de substituir o livre mercado. Do outro lado Keynes liderava os que queriam encontrar uma forma de regular e controlar os mercados para que não acontecesse novas crises como a que estava ocorrendo.

Não existiam apenas duas turmas, é claro, dentre outros grupos de pensadores haviam os que continuavam acreditando no livre mercado como a maneira mais eficiente de organizar a produção e a distribuição em uma sociedade. Os defensores do livre mercado, com alguma imprecisão vou chama-los de liberais, acreditavam que o planejamento central era impossível, no que se mostraram certos, e que as intervenções para regular ou corrigir o mercado levariam (quase que) fatalmente a um governo totalitário. Foi nesse ambiente que apareceu a ideia de um liberalismo, digamos, bonzinho. Uma ordem liberal que teria por base o livre mercado, mas onde o governo construiria uma rede de proteção social que impedisse que famílias mal-afortunadas caíssem na miséria. Nessa discussão apareceu também a ideia do governo regular o mercado.

Se o leitor pensou que essa tentativa de usar o estado para consertar o mercado ia acabar em confusão o leitor acertou. O Colóquio Walter Lippmann (link aqui) que aconteceu em 1937 na França com o objetivo de arrumar o liberalismo não chegou a um acordo, existissem redes sociais na época talvez tivéssemos posts de Mises e Hayek chamando os outros participantes de socialistas. Porém foi criado o Centro Internacional de Estudos para Renovação do Liberalismo (Centre International d’Études pour la Rénovation du Libéralisme, CIERL) que, depois da guerra serviu de inspiração para a Sociedade Mont Pèlerin (link aqui). Esta sociedade foi criada em um encontro de liberais organizado por Hayek em 1947 em Mont Pèlerin na Suíça. Entre os fundadores da Sociedade Mont Pèlerin estão nomes como Milton Friedman, Karl Popper, Ludwing von Mises e Frank Knight. Foi nessa reunião e para essa turma que Mises falou a famosa frase “you all a bunch of socialists” por conta de uma discussão a respeito de impostos progressivos.

Esse liberalismo revisado que nasceu no Colóquio d Walter Lippmann e ganhou força com a Sociedade Mont Pèlerin, que aceita algum tipo de proteção social e que, com bem mais resistência, aceita alguma regulação do estado no funcionamento do mercado é o neoliberalismo original. Não sei se é justo chamar de avô do atual e detestado neoliberalismo, mas dificilmente alguém pode negar que esta seja a origem do termo e das ideias que formam a base do pensamento neoliberal. Sim, meu caro leitor, se algum dia te acusaram de neoliberal saiba que na sociedade que deu origem às ideias que você defende estão tipos como Hayek, Milton Friedman, George Stigler, James Buchanan, Maurice Allais, Ronald Coase, Gary Becker, Vernon Smith e Mario Vargas Llosa, para citar apenas os que foram laureados com o Nobel.Entre os objetivos da Sociedade Mont Pèlerin estavam (link aqui):

1. Analisar e explorar a natureza da crise corrente de forma a tornar claro que a crise se origina de problemas econômicos e morais.

2. A redefinição das funções do estado de forma a distinguir de forma mais clara as diferenças entre a ordem liberal e a ordem totalitária.

3. Procurar métodos de restabelecer o império da lei e garantir seu desenvolvimento de que indivíduos nem grupos de indivíduos possam invadir a liberdade dos outros e de forma a garantir que direitos privados não se tornem a base de um poder predador.

4. Avaliar a possibilidade de garantir padrões mínimos por meios que não sejam inimigos da funcionamento e das iniciativas do mercado.

5. Buscar métodos de combater o mal uso da história feito para fortalecer de crenças hostis a liberdade.

6. Estudar o problema da criação de uma ordem internacional que garanta a paz e a liberdade e permita o estabelecimento de relações internacionais harmoniosas.

As décadas de 40 e 50 não eram exatamente o melhor momento para convencer as pessoas a respeito do liberalismo ou de sua versão reformulada. A guerra deixou marcas, era difícil não ver nos estados a força que venceu o nazismo e que organizaria a resistência ao comunismo. Como convencer as pessoas que esse mesmo estado guardava a semente do totalitarismo? No campo econômico veio um período de crescimento e prosperidade, como se contrapor as políticas de inspiração keynesianas que prevaleciam na época? Uma sociedade de mercado com um estado forte com condições de criar uma rede de segurança social, de intervir na economia para regular mercados e reduzir, alguns sonharam em acabar, o ciclo econômico e com força para garantir a proteção do mundo livre contra a ameaça vermelha parecia ser o combo perfeito.

Na década de 1970 a coisa começou a desandar, a gota d´água foi o fim da energia barata imposto pelo cartel dos países exportadores de petróleo. O mundo desenvolvido passou a conviver com recessão e inflação, a temida estagflação tinha chegado. Para que o leitor tenha ideia do grau de desespero da época em 1971 o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, rompeu com o acordo de Bretton Woods, grosso modo acabou com o padrão ouro, e decretou um congelamento de preço por trinta dias. Não se trata de um presidente democrata tentando controlar preços, Nixon era do partido Republicano e, entre outras coisas, ficou famoso por deflagrar a Guerra as Drogas e sofrer um processo de impeachment. Um governo congelando preços? Uma crise que misturava inflação com recessão? Como ficavam as liberdades? Por que as políticas econômicas não resolviam o problema?

Estava aberto o caminho para volta do liberalismo, ou melhor, estava aberto o caminho para as ideias da Sociedade Mont Pèlerin, melhor ainda, estava aberto o caminho para a chegada do neoliberalismo. Na academia Robert Lucas, Thomas Sargent e Edward Prescott preparavam os modelos que iriam substituir os modelos keynesianos de macroeconomia e servir de base para os modernos modelos de equilíbrio geral dinâmico e estocástico, os famosos DSGE. Na política o destaque foi na Inglaterra, o país estava devastado pela crise e com sério problema de inflação para os padrões britânicos quando Margareth Thatcher chegou ao poder com propostas de privatização, desregulamentação e disposição para enfrentar sindicatos e outras corporações. Nos Estados Unidos, já na década, de 1980, o presidente Ronald Reagan, do partido Republicano, levantou a bandeira do mercado livre e da redução de impostos. É bem verdade que Reagan turbinou gastos militares, mas isso assunto para outro post. O que importa aqui é que as ideias liberais estavam mais uma vez com força na praça.

Não demorou para a discussão chegar na América Latina. O continente que parecia que decolaria no pós-guerra caiu em desgraça na década de 1980. Por aqui a recessão tomou ares de década perdida e a inflação virou hiperinflação. Quase todos os estados do Continente estavam falidos, a exceção era o Chile, cujo o ditador, infelizmente ditadores já era moda por estas bandas, no lugar de um desenvolvimentismo como o desposado por nossos ditadores, implementou políticas de inspiração liberal. Como forma de oferecer uma alternativa para países em desenvolvimento, especialmente os da América Latina, o economista John Williamson reuniu vários economistas em Washington para criar uma agenda de consenso que levasse a estabilização e ao crescimento. Como tratava-se de um consenso e aconteceu em Washington as recomendações ganharam o nome de Consenso de Washington, um erro fatal, salvo engano foi Gustavo Franco quem disse que se o encontro tivesse sido em Havana teríamos um Consenso de Havana cujo a implementação seria bandeira das esquerdas do continente, mas não foi o caso.

O Consenso de Washington passou a ser cara do neoliberalismo na América Latina. Isso explica porque liberais, mesmo os neoliberais inspirados na Sociedade Mont Pèlerin passaram a rejeitar e não reconhecer o rótulo de neoliberal. Os princípios abstratos discutidos por pensadores geniais deram nome a um conjunto de dez medidas para recuperar a economia dos países da América Latina destruídas após anos de desenvolvimentismo, nacionalismo e populismo. Deixemos de coisas e cuidemos da vida, dizia o poeta, no lugar de falar das medidas em abstrato vamos apresentar e comentar cada uma delas (link aqui):

1. Disciplina fiscal, o governo deve evitar déficits grandes em relação ao PIB.
Reparem que não se trata de proibir déficits ou coisa do tipo, a recomendação é quase que mandar tomar canja de tão básica. Nem mesmo é dito que o déficit deve ser evitado com cortes de gastos, apenas que déficits grandes devem ser evitados. Discordar disso é dizer que o governo não deve nem mesmo tentar evitar déficits grandes, creio que nem mesmo o pessoal do “gasto corrente é vida” discordaria dessa recomendação, pelo menos não em público.

2. Redirecionar o gasto de subsídios em benefícios de gastos pró-crescimento e pró-pobres tais como educação, saúde e infraestrutura.
Você não leu errado, os “neoliberais malvados do Consenso de Washington” queriam cortar gastos com subsídios para os muito ricos, n Brasil o exemplo é o BNDES, e direcionar o dinheiro para programas que beneficiam os pobres e para infraestrutura. Em tempo, um dos programas inspirados pelo Consenso de Washington é o Bolsa Família.

3. Reforma fiscal, como aumento da base tributária e redução das alíquotas marginais.
Ampliar a base tributária significa cobrar impostos de mais pessoas. Quem costuma ficar de fora dos impostos? Redução das alíquotas marginais não significa redução das alíquotas, trata-se de menos classes de alíquotas com diferenças menores entre elas.

4. Taxas de juros reais positivas e determinadas pelo mercado, porém moderadas.
A ideia era que o governo parasse de subsidiar juros e deixasse a taxa de juros real convergir para a de equilíbrio, algum comunista infiltrado deve ter colocado o “moderadas”. Depois não sabem o por quê de liberais reclamarem do neoliberalismo do Consenso de Washington.

5. Taxas de câmbio competitivas.
Céus! Até a turma do câmbio foi contemplada no Consenso de Washington! 

6. Liberação comercial. Liberar importações com ênfase na eliminação de restrições quantitativas (limites físicos de quantidade importada de um determinado bem e/ou de um determinado país). Qualquer proteção comercial deve ser feita por alíquotas baixas e relativamente uniformes.
Basicamente trata-se de desmontar o modelo de substituições de importações e expor as empresas locais a competição internacional. Repare que não se fala em eliminar tarifas, a recomendação se limita a pedir alíquotas baixas e com alguma uniformidade. Liberais mais radicais certamente consideram esse tipo de alíquota uma afronta ao livre mercado, não é que eu discorde que sejam, mas uma proteção desse tipo é um avanço significativo em relação ao que tínhamos na época e ao que temos hoje.

7. Liberação de investimento estrangeiro direto.
De tão direta essa recomendação dispensa comentários, mas, para não parecer que isso é coisa de liberal radical, lembro aos leitores que ninguém menos que Maduro, o tirano de Caracas, andou pedindo investimento na Venezuela...

8. Privatização de empresas.
Ódio eterno aos malditos entreguistas! Mais um ponto que gerou revolta, bobagem, mesmo o governo do PT privatizou um bocado embora tenha inventado outro nome para diferenciar privatizações de privatizações. Antes disso privatização compreendia venda e concessão, se não acredita no que digo faz uma busca por “privatização da Dutra” e veja com os jornais chamavam concessões antes da chegada do PT ao Planalto.

9. Desregulamentação. Fim de regulamentações que impeçam a entrada no mercado ou restrinjam a competição. Exceção para as regulações que visem segurança, proteção ambiental, proteção dos consumidores e controlar instituições financeiras.
Mais uma medida que parece radical, mas, por conta das exceções, acaba bem mais ampla. Reparem que mesmo os ambientalistas encontraram um lugarzinho no Consenso de Washington.

10. Garantia de propriedade intelectual.
Esse é o tipo de assunto que causa brigas sem fim entre liberais, mas que costuma ser aceito em outros círculos.

Como o leitor pode ver as recomendações do Consenso de Washington estão longe de formar um corpo de medidas liberais radicais e menos ainda de um ultraliberalismo. A encarnação do neoliberalismo no final do século XX parece mais preocupada em agradar sociais democratas do que em seguir as recomendações da turma da Sociedade Mont Pèlerin, porém, me parece injusto negar que dado o estado das economias da América Latina, e mesmo de países desenvolvidos, as medidas vão na direção certa.

Vários países implementaram políticas inspiradas no Consenso de Washington. Privatizações, políticas monetárias buscando a estabilidade, abertura da economia, políticas focadas nos mais pobres, abertura para investimento externo e mesmo alguma abertura comercial aconteceram em maior ou menor grau no Brasil, na Argentina, no México e em boa parte do continente. O caso do Brasil é representativo, mais do que Collor, que iniciou as reformas, FHC ficou marcado como o presidente das reformas neoliberal. A era das reformas continuou no primeiro mandato de Lula, começou a ser deixada de lado no segundo mandato de Lula e foi definitivamente abandonada no governo Dilma com o advento da Nova Matriz Econômica.

Se pegarmos os dez pontos acima temos que: (1) não houve cuidado com o lado fiscal até o final da década de 1990, Lula faz o ajuste fiscal e mantém as contas equilibradas até o final de seu segundo mandato; (2) houve um esforço de redução de subsídios e aumento do gasto social, não houve um investimento significativo em infraestrutura, Lula manteve a troca de subsídios por gasto social no primeiro mandato e depois começou a aumentar subsídios sem redução do gasto social, um modelo que pesou demais nas contas públicas; (3) a reforma fiscal foi discutida e prometida nos governos Collor, FHC e Lula, mas nunca foi feita; (4) as taxas de juros reais passaram a ser ditadas pelo mercado, mas não forcaram moderadas, pelo contrário, quando as reformas já tinham sido abandonadas no governo Dilma houve uma tentativa de reduzir taxa de juros ignorando o mercado que acabou por se mostrar desastrosa; (5) em todo período das reformas não houve preocupação com taxa de câmbios competitivas (seja lá o que for isso), pelo contrário, houve um processo generalizado de valorização cambial que, segundo alguns economistas, tirou competitividade da indústria de transformação; (6) a liberação comercial ocorreu de forma muito tímida, o Brasil continua sendo um dos países mais fechados do mundo, talvez o mais fechado; (7) houve liberação do investimento estrangeiro direto, até mesmo a esquerda parou de reclamar da remessas de lucro; (8) aconteceram várias privatizações, mas o governo manteve muita coisa, Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa e BNDES são exemplos de empresas em setores fundamentais que ficaram com o governo; (9) houve algum esforço de desregulamentação, mas não foram bem sucedidos, continuamos um país complicado e burocrático; e (10) o Brasil passou a reconhecer propriedade intelectual, mas ainda há reclamações de outros países.

Se as políticas do Consenso de Washington funcionaram é assunto para outro post, certamente não veio o crescimento esperado, por outro lado a situação de caos da década de 1980 foi superada na maioria dos países. No Brasil o período da reforma foi marcado por inflação baixa para nossos padrões históricos, redução da pobreza e redução da desigualdade, se o crescimento não foi o que era imaginado pelo menos tivemos crescimento, coisa que não tivemos na década de 1980, nem preciso falar do crescimento negativos legado pela Nova Matriz Econômica que veio substituir a era das reformas. Porém, do ponto de vista político o Consenso de Washington foi um desastre, o estrago foi tão grande que o termo neoliberal quase virou palavrão. John Williamson ainda tentou um segundo consenso de Washington mais focado na parte institucional e admitindo política fiscal anticíclica, mas já era tarde. A esquerda encontrou na demonização do Consenso de Washington e do Neoliberalismo o caminho para o poder em vários países de nuestra América. Contra o neoliberalismo yankee o socialismo moreno, contra Washington desenterraram Bolívar. Foi assim que o neoliberalismo virou inimigo público número um; negado pelos liberais por “trair” as ideias liberais e mesmo o neoliberalismo de Hayek, abandonado pelos sociais democratas que não queriam passar recibo de entreguistas ou de ser contra os trabalhadores, demonizado pelos setores mais radiais da esquerda que viram aí o caminho para o poder e carimbado por setores do pensamento conservador como parte da agenda globalista. Tal como na música de Chico Buarque o neoliberalismo se viu cercado por humilhados, mortos-vivos e flagelados todos com um bom motivo para esfolá-lo.

Tanto ódio é justo? Creio que não, mas, como espero ter deixado claro, todos tem suas razões para odiar o neoliberalismo de nossos tempos. Da minha parte sigo falando de neoliberais malvados enquanto torço para que os dez pontos do Consenso de Washington se tornem realidade. Mas se alguém me questionar eu nego, eu que não vou passar recibo de neoliberal.



segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

É uma pena, mas a Argentina não é um bom exemplo a ser seguido.

Semana passada o processo de reformas na Argentina foi interrompido por protestos ditos populares (link aqui), especificamente os protestos impediram a aprovação da reforma da previdência proposta pelo presidente Macri. Não vou analisar os méritos da proposta, pelo que vi tem um aumento da idade mínima de aposentadoria, por lá isso existe, e uma redução dos prazos de reajustes das pensões que atualmente são semestrais e passariam a ser trimestrais. O aumento da idade me parece uma medida necessária, queiramos ou não os sistemas previdenciários vão ter de se adaptar às mudanças demográficas. O reajuste trimestral me parece um equívoco, reduzir prazos de reajustes alimenta a inércia inflacionária e deixa ainda mais difícil controlar a inflação que por lá já anda em absurdos 25% ao ano. Pelo que entendi a confusão foi por uma malandragem na mudança da regra de reajuste que adiaria a correção e implicaria em perdas reais para os aposentados, coisas de países que vivem com inflação gigantesca. Mas uma análise da proposta exigiria um estudo do que exatamente está sendo proposto e quais os efeitos nas contas públicas argentinas, coisa que não estou em condições de fazer.

O que me chamou atenção foi a reação de certos setores aqui no Brasil. Talvez empolgados pelo fato que alguns argentinos gritavam que “aqui não é Brasil”, alguns brasileiros resolveram dizer que deveríamos ser como a Argentina. Em um universo paralelo talvez fizesse sentido querer ser como nossos vizinhos, um universo alternativo onde os argentinos não teriam cometido um suicídio econômico de longo prazo acabando com uma economia que já foi próspera. Mas no universo em que vivemos é melhor sermos Brasil. A figura abaixo mostra o desastre econômico de longo prazo vivido na Argentina, nela o PIB per capita argentino aparece como proporção do brasileiro e do PIB per capita da América Latina e Caribe. Usei dados em dólares de 2010 porque nem o Banco Mundial nem o FMI possuem séries longas de PIB per capita corrigido por paridade de poder de compra (PPP) e as séries de PIB com correção de PPP que a PWT tem para o Brasil não são confiáveis, minto, as séries estão erradas.





Em 1960 o argentino médio tinha uma renda 65% maior que o brasileiro médio e 55% maior que o latino americano médio, em 2015 o argentino médio tinha uma renda um pouco menor que a do brasileiro médio e 13% maior que o latino americano médio. Será mesmo que devemos ser como os argentinos? Será que devemos ir para as ruas barrar reformas importantes? Se aqui existe a desculpa da falta de legitimidade do Presidente da República, uma tese que ignora que a aprovação das reformas é feita pelo Congresso, lá nem isso pode ser dito. Macri derrotou a líder das esquerdas argentinas nas eleições presidenciais e repetiu a dose nas recentes eleições legislativas. Por certo isso não é motivo para que a população aceite todas as propostas de Macri, mas não há como falar em falta de legitimidade para propor reformas.

Um outro problema crônico que afeta a Argentina é a inflação, é tudo tão confuso que mesmo os dados são difíceis de obter. O Banco Mundial não mostra a inflação ao consumidor medida nos últimos anos na Argentina, para não ficar sem referência usei o deflator do PIB como forma de aproximar uma comparação de inflação. O deflator do PIB não é uma medida adequada de inflação ao consumidor pois considera a “cesta produzida” no lugar da “cesta consumida” de forma que não capta de modo adequado o aumento do custo de vida dos moradores do país, por outro lado o deflator é o índice usado para deflacionar o PIB. A figura abaixo mostra a inflação medida pelo deflator do PIB para o Brasil, a Argentina e a América Latina e Caribe.




É fácil ver que os argentinos estão diante do desafio considerável de reduzir a inflação no meio de um período de crises na economia. Os protestos que impediram a aprovação da reforma da previdência proposta por Macri encheram os olhos de setores de nossa esquerda, infelizmente a reação a reformas mostra um apego a um conjunto de leis e instituições que acompanharam a Argentina durante as várias crises que formaram o desastre econômico que eles viveram no século XX (para conhecer melhor as crises econômicas da Argentina recomendo o livro “Las crisis económicas argentinas: Una historia de ajustes y desajustes” de Miguel Kiguel com colaboração de Sebástian Kiguel). Assim como o Brasil a Argentina precisa de reformas para enfrentar o futuro, se lá a resistência às reformas é ainda maior que por aqui é algo que lamento. Aliás a esquerda brasileira tivesse ido as ruas com força em 2015 talvez tivéssemos, além da crise, um problema inflacionário como o deles, com uma crise e uma inflação por aqui talvez nós estivéssemos lamentando que “a Argentina é aqui”.


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Minhas impressões sobre o discurso de Ciro Gomes na Universidade Católica de Brasília

Ontem participei de uma conversa com Ciro Gomes na Universidade Católica de Brasília (UCB), o evento é parte de uma iniciativa do departamento de economia da UCB que pretende levar vários candidatos à presidência para debater as perspectivas da economia brasileira. Antes de relatar minhas impressões a respeito da conversa é útil dizer para o leitor que acompanho a trajetória de Ciro desde muito tempo, de fato participei da campanha de Ciro para prefeito de Fortaleza em 1988. Naquela época Ciro era o destaque de um grupo de empresários liderado por Tasso Jereissati, então governador do Ceará, que buscava modernizar a gestão e a economia do estado depois de anos de domínio dos “coronéis” Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals. Naquela eleição Ciro Gomes enfrentou e venceu o radialista Edson Silva que, salvo engano, era do PDT, atual partido de Ciro, e representava uma frente de esquerdas.

Muita coisa mudou de lá para cá. A trajetória de Ciro não foi exatamente linear, pelo contrário, nas muitas voltas de sua vida política Ciro Gomes ajudou a fundar o PSDB do Ceará, foi ministro de Itamar, se aliou ao PT, foi ministro de Lula e hoje está no PDT. Nesse trajeto Ciro se tornou líder de um grupo que sucedeu o grupo original de Tasso e que governa o Ceará há mais de década, até onde sei a ruptura com Tasso foi política, em termos de proposta de governo o grupo deu sequência ao trabalho iniciado por Tasso. O relato é importante para entender minha leitura das falas de Ciro ontem na Católica,

Na primeira parte do evento Ciro fez uma apresentação a respeito das perspectivas da economia brasileira. A leitura que ele faz é claramente influenciada pelo novo-desenvolvimentismo proposto por Bresser. O foco na necessidade de estimular a indústria e a firme crença que o desenvolvimento da indústria só é possível com uma ação estratégica do estado são presenças fortes no discurso de Ciro. O papel do câmbio na história ficou mais confuso, Ciro defendeu a tese que o câmbio valorizado foi um fator fundamental para o processo de redução da participação da manufatura do PIB no Brasil, a dita desindustrialização, mas vez por outra Ciro afirmava que desvalorização do câmbio implica em perda de poder aquisitivo. Mais de uma vez Ciro falou que não comemos dólares, mas comemos pão cujo o preço depende do dólar. Não ficou claro até que ponto Ciro estaria disposto a sacrificar poder aquisitivo da população para estimular a indústria. Uma pena, pois essa é uma questão que considero crucial.

Outro ponto importante da tese novo-desenvolvimentista que Ciro tratou explicitamente foi a necessidade de poupança interna. É um assunto importante, da minha parte não vejo como conciliar taxas de poupanças asiáticas com os seguros e a tributação características de um estado de bem-estar. Como aumentar a poupança do governo diante das crescentes demandas da sociedade por gasto social? Como aumentar a poupança das famílias e empresas que pagam impostos altos para financiar os seguros providos pelo estado? Até que ponto seguros e poupanças são substitutos? Questões importantes que, creio eu, os novos desenvolvimentistas ainda têm que explicar melhor. Mas essa é uma questão técnica que deve ser feita para os economistas que apoiam Ciro, principalmente porque eu só tinha direito a uma questão.

Escolhi uma pergunta que tentava puxar o lado reformista de Ciro. Existem duas características importantes na economia do Ceará que estão claramente associadas ao projeto político iniciado por Tasso e continuado pelo grupo de Ciro: o relativo equilíbrio das contas públicas e o sucesso das escolas públicas cearenses nas avaliações feitas pelo MEC. Sobre a questão fiscal falo mais na frente, dirigi minha pergunta para a questão da educação. No Ceará as transferências para os municípios dependem do desempenho das escolas do município nas avaliações nacionais. Outro ponto importante é que no Ceará as escolas usam um material didático que vem da secretaria de educação, ou seja, o professor não ensina o que e como quer, mas o que a secretaria determina. Os dois pontos costumam ser objetos de crítica da esquerda por atender a dita agenda reformista neoliberal, o primeiro por fazer referência a meritocracia e o segundo por supostamente minar a autonomia dos professores. Perguntei se uma vez presidente Ciro proporia medidas semelhantes para o Brasil, especificamente queria saber se Ciro apresentaria uma emenda constitucional para atrelar as transferências aos resultados das escolas dos estados e municípios.

Não tive minha resposta. Ciro preferiu falar de reformas em geral e focou na reforma da previdência. Confesso que a questão previdenciária era uma das perguntas que considerei fazer, só não fiz porque conheço o Flávio Ataliba e conseguia imaginar qual seria a resposta. Ciro propõe uma mudança para regime de capitalização com um colchão de proteção que garante um salário mínimo para cada brasileiro em condições de se aposentar que não tenha essa renda e uma transição suave e longa para brasileiros de baixa renda. Para o restante da população a transição seria feita por meio de títulos que poderiam ser descontados quando da qualificação para se aposentar ou negociados em mercado secundário. A proposta dos títulos é semelhante ao que Pinochet fez no Chile, minha dúvida, por isso chamei a proposta de ousada, é quanto a viabilidade política dessa transição. Não lembro de alguma democracia que tenha conseguido fazer algo semelhante, será preciso uma complexa engenharia política para viabilizar tal transição, não sei se mesmo um político experiente como Ciro teria condições para tanto. A parte que mais me incomodou da proposta é que regime de capitalização não seria feito em bancos ou fundos privados escolhidos pelos donos das contas. A gestão seria feita pelo setor público com participação de representantes de trabalhadores e, não lembro bem, outros representantes da sociedade. A experiência recente de fundos de pensão de estatais geridos de forma semelhante deveria deixar qualquer um preocupado com a proposta. Imagino que Ciro teria respondido a esse questionamento dizendo que não se pode matar a vaca por conta do carrapato, mas mesmo assim o sistema proposto me parece demasiado arriscado, especialmente em um país com a fragilidade institucional que temos.

Na parte fiscal Ciro foi incisivo e afirmou várias vezes que nunca governou com um dia de déficit primário. No lugar do “dá bilhão” ele falou que todo o gasto tem que ser questionado e avaliado, chegou a afirmar, talvez com força de retórica, que quando governador sabia até o preço que o governo pagava pelo Melhoral. De fato, o Ceará tem uma posição de destaque quando olhamos a situação fiscal dos estados, não que seja uma maravilha, mas, dado o cenário geral, o Ceará está muito bem. Recentemente foi colocado como o estado em melhor situação fiscal por um relatório elaborado pela Federação das Indústria do Rio de Janeiro. A parte negativa na questão do gasto foi a referência ao infame gráfico de pizza que junta juros e amortizações da dívida pública, é verdade que ele fez ressalvas, mas se eu fosse assessor de Ciro faria tudo que estivesse a meu alcance para convencê-lo a esquecer do tal gráfico, falar disso queima o filme.

Na parte da receita Ciro falou que aumentaria e criaria impostos. Especificamente ele propôs a criação de um imposto sobre dividendos, aumento do imposto sobre heranças e a volta da CPMF com isenção para os mais pobres. Tenho críticas as três propostas. É verdade que o Brasil é um dos poucos países do mundo que não taxa dividendos, mas isso não quer dizer que não taxamos as empresas, pelo contrário, além do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) temos a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), ambos, apesar dos nomes, em vários casos incidem sobre faturamento. Taxar dividendos sem reduzir esses tributos é abusivo, taxar dividendos reduzindo tais tributos, de preferência eliminando a CSLL, pode ser um caminho, mas não vai resolver o problema fiscal posto que o ganho em um deve ser compensado com as perdas nos outros. Taxar herança é coisa para inglês ver, colocar uma alíquota alta, chegou-se a falar em 40%, sobre heranças da classe média é inadmissível, imagine pagar 40% do valor de um apartamento em bairro nobre do Rio ou São Paulo além dos custos com inventário. Em países com alíquotas altas o valor de isenção também é muito alto, o suficiente para só pegar quem tem como se proteger por meio de trustes e coisas do tipo. Espero que Ciro, e nenhum outro candidato, pretenda induzir que nossa classe média use trustes para proteger um apartamento de 100 metros quadrados na Asa Norte, se isso acontecer depois dos bens de luxo parcelados em 10 vezes sem juros vamos ter os trustes populares. A volta da CPMF também é um erro, aliás o próprio Ciro criticou as contribuições afirmando de forma correta que não é razoável taxar faturamento pois o sujeito acaba pagando imposto mesmo tendo prejuízo, o argumento é facilmente adaptável para a CPMF.

No final Ciro falou de metas de inflação e do tripé econômico. Ciro fez duras críticas ao tripé sugerindo que a combinação de superávits primários, câmbio flutuante e metas de inflação era uma anomalia da economia brasileira. A sugestão de fazer meta para o núcleo da inflação tem seu apelo, mas depois da criatividade contábil imagino o quão criativo seríamos para o cálculo do núcleo de inflação. A parte boa foi quando ele falou que a inflação ideal é zero, não sei se foi uma ironia, mas gostei de ouvir. Ciro também sugeriu que o combate a inflação pode ser feito por meio de aberturas as importações, uma tese questionável, mas que leva a um resultado bom. Mesmo que não reduza a inflação a abertura da economia se justifica por vários outros motivos, só não sei como ele vai conciliar isso com a turma dos desenvolvimentistas.

Para não dizer que não falei da parte política registro que Ciro fez uma boa defesa do Congresso ao questionar quais propostas que poderiam ter dado outro rumo ao Brasil não foram implementadas por conta dos deputados e senadores. Também merecer destaque a recusa de Ciro em referendar a tese que a Globo derrubou Dilma.

Enfim, Ciro fez um discurso articulado com fortes componentes de nacionalismo e desenvolvimentismo. Não é minha praia, mas se é para seguir por esse caminho recomendo olhar menos para a indústria automobilística e mais para Embraer. Políticas públicas para estimular empresas locais que desenvolvam tecnologia em parceira com centros de pesquisas nacionais não é exatamente algo que eu defenda, mas me parece fazer mais sentido que desvalorizar o câmbio e criar barreiras ao comércio para proteger filiais de multinacionais que, segundo o próprio Ciro, são useiras e vezeiras em importar tecnologias defasadas. Falar da Coreia é fácil, ter a poupança da Coreia, a educação da Coreia e lembrar que a Hyundai não é uma filial da General Motors é outra conversa. Não sei qual combinação de Ciro vai aparecer na campanha ou, se for o caso, na presidência. Da minha parte prefiro o governador do equilíbrio fiscal e que premia os municípios com melhor desempenho na educação, o ministro da Fazenda que deixou a economia mais aberta e não tentou mexer no câmbio e nos juros para agradar os compadres do que o candidato que defende as teses desenvolvimentistas da turma de Bresser.