A polêmica entre Marco Antonio Villa e Olavo Carvalho a
respeito da natureza do PT marcou a semana. Desconfio que os dois chegaram a
conclusões tão diferentes por partirem de conceitos diferentes de comunismo, mas
prefiro não entrar no debate, a posição de espectador me parece não apenas mais
confortável como mais recomendada para meu nível de conhecimento do assunto. Porém
vou pegar carona para levantar outra questão. Tenho lido vários textos
afirmando que a política econômica do segundo mandato Dilma representa uma
guinada do governo que teria abandonado as teses da esquerda. No dia 21/04 dois
textos deixaram claro a existência dessa tese, um do Estadão a respeito do
discurso de Stédile em Ouro Preto (link aqui) o outro foi uma entrevista de
Guilherme Boulos ao El País Brasil (link aqui). Escolhi os dois por serem
recentes e retratarem a opinião de importantes líderes dos ditos movimentos
sociais.
A verdade é que Dilma está aplicando políticas tipicamente
de esquerda em seu segundo mandato. Não que Dilma não tenha enganado os
eleitores, ao insistir que a economia estava bem Dilma ludibriou parte dos
eleitores o que nos dá o direito de acusar a presidente de ter mentido e de ter
praticado um estelionato eleitoral. Também não estou dizendo que não ocorreu
uma guinada na política econômica, é fato que ocorreu, mas menos que uma
guinada da esquerda para direita foi uma guinada de uma política sem nenhum
sentido para uma política que, embora eu considere errada, é uma política que tem
algum sentido. A atual política econômica é uma política típica de partidos de
esquerda que são obrigados a fazer um ajuste fiscal.
Ajustar as contas de um governo não é política de esquerda
ou de direita, é uma imposição dos fatos (tratei do tema aqui). Cedo ou tarde
todo governo é obrigado a ajustar as próprias contas, nem que seja o
estritamente necessário para seguir adiante com novos gastos. O que vai
diferenciar as políticas de partidos de esquerda e de direita é a forma como se
faz o ajuste. Partidos de esquerda tipicamente tentam ajustar a economia por
meio de elevações de impostos, particularmente sobre os mais ricos, partidos de
direita tradicionalmente, pelo menos no discurso, tentam ajustar por meio de cortes
de gastos. O que o governo está fazendo? Segundo Mansueto Almeida, um dos
maiores especialistas em conta públicas no Brasil, cerca de 85% do ajuste
fiscal será feito com aumento de impostos (link aqui). Como uma política assim
pode ser classificada como de direita, ou pior, de liberal? Mas uma política
realmente de esquerda seria taxar grandes fortunas, alguém poderia dizer. Sim,
responderia eu, taxar grandes fortunas seria uma política mais à esquerda do
que a implementada por Dilma, mas isso não muda o fato que a política que Dilma
está implementando é de esquerda.
A verdade é que há muito tempo os governos brasileiros fazem
ajustes por meio de elevação de impostos, a carga tributária saiu de aproximadamente
24% para aproximadamente 36% do PIB (a maior da América Latina, ver aqui) entre 1991 e 2013, ou seja, em pouco mais
de 20 anos a carga tributária aumentou 50%. Não foi por acaso, durante praticamente
todo o período o Brasil foi governado por partidos de esquerda que naturalmente
implementaram políticas de esquerda. O aumento da carga tributária veio
acompanhado de outra característica típica de políticas de esquerda, qual seja:
o aumento do gasto público, que, por sinal, já passa de 40% do PIB.
Outra característica tipicamente presente no discurso da esquerda
particularmente na América Latina é a necessidade do governo estimular o
crescimento da economia, especialmente da indústria. É curioso que a esquerda defenda
uma tese que implica em transferência de renda de pobres para ricos, mas não é
sem explicação. Guido Mantega explicou o fenômeno no livro “A Economia Política
Brasileira” (link aqui). Para tornar o projeto político revolucionário viável a
esquerda entendeu que precisaria de uma massa de trabalhadores organizados em
sindicatos fortes, tal tipo de organização é típica dos trabalhadores industriais.
Desta forma para existir uma esquerda forte seria necessária a existência de
uma indústria forte, foi assim que desde pelo menos meados do século XX a esquerda
latino-americana abraçou o desenvolvimentismo e, como o tempo, veio a
dominá-lo. Se consideramos que Lula e o PT vieram de sindicatos de
trabalhadores industriais do ABC vemos que os esquerdistas que aderiram ao
desenvolvimentismo acertaram o alvo melhor do que os que apostaram no
desenvolvimentismo como forma de transformar o Brasil em uma potência
industrial com dinâmica tecnológica própria e todo o pacote de maravilhas
prometido pelos defensores da industrialização a qualquer preço.
É fato conhecido que no final de 2014, antes de Joaquim Levy
se tornar ministro da fazenda, o governo fez uma série de transferências
gigantescas para o BNDES (ver aqui e aqui). Alguns, inclusive o ingênuo que vos
escreve, chegaram a comemorar o fim das transferências com a chegada de Levy,
ao que parece comemoramos muito cedo, uma das notícias que considero mais importante
da semana trata de uma manobra onde o governo pretende usar o FGTS para
transferir R$ 10 bilhões para o BNDES (link aqui). O segundo governo Dilma
aumenta impostos para não cortar gastos e ainda mantém a política de usar o
BNDES para estimular o crescimento. Tem certeza que tais políticas podem ser classificadas
como liberais ou de direita? Só se for de uma direita populista e estatista que
costuma ser associada com fascismo... mas que curiosamente tem políticas muito
semelhantes às defendidas pela esquerda, se duvidar basta tentar descobrir de
onde vem o culto a Vargas.
Um último argumento para justificar a tal guinada liberal do
governo vem da elevação dos juros. Mais uma vez é feita uma confusão entre
escolha e necessidade. Com uma inflação prevista acima de 8% se o BC
continuasse inoperante uma disparada inflacionária seria praticamente inevitável
o que poderia inviabilizar de vez um governo que já enfrenta forte rejeição da
população. Porém as doses homeopáticas com que o Banco Central está elevando os
juros denuncia que o banco tem outras prioridades que não o combate à inflação.
Mais uma vez a política necessária está sendo implementada com viés de
esquerda, o que não é surpresa dado que o governo é de esquerda.
Enfim, o ajuste fiscal via impostos, a insistência em usar o
BNDES para estimular o investimento e o crescimento e a timidez no combate à
inflação me parecem mais do que suficiente para caracterizar o atual governo
como de esquerda. Que em seu primeiro mandato Dilma tenha ignorado o ajuste
fiscal combinando desonerações tributária específicas a alguns setores com
elevação de gastos não torna o atual governo de direita ou (neo)liberal, apenas
deixa claro a loucura econômica que foi o primeiro governo de Dilma. Que junto
a irresponsabilidade fiscal tenha vindo uma aposta injustificável que o uso
abusivo do BNDES, a redução dos juros e a desvalorização do câmbio salvariam
nossa economia só agrava a loucura depondo ainda mais contra o primeiro governo
Dilma que, não por acaso, nos levou a um desastre econômico que agora necessita
ser enfrentado sob pena de se agravar ainda mais. Desta forma eu creio que Levy
não é um infiltrado da direita liberal no governo petista, discutir a presença
de Levy não é discutir se o governo é de esquerda ou de direita, longe disso,
discutir a presença de Levy é discutir se o governo usará uma lógica que
considero errada, porém inteligível, para enfrentar a crise ou não usará lógica
nenhuma e retornará a insanidade do primeiro mandato.