Hoje o governo lançou o novo plano de concessões, é um plano
ambicioso, sem dúvidas. O plano prevê investimentos de R$ 198,4 bilhões em
transportes, dos quais R$ 37,4 bilhões em portos, R$ 8,5 bilhões em aeroportos,
R$ 66 bilhões em rodovias e R$ 86 bilhões em ferrovias (link aqui). A infraestrutura de transportes
no Brasil de fato está mal das pernas e precisa urgentemente de ser
revitalizada. Como transportes afetam praticamente todos os setores da economia
um plano de investimento que reduza os problemas de transportes tem potencial para
beneficiar a economia como um todo, mais ainda, uma melhora no setor de
transportes pode ajudar a reduzir o problema crônico de baixa produtividade que
afeta o Brasil e ainda pode ajudar a trazer novos investimentos.
Então finalmente temos motivos para festejar? Não creio,
pelo menos ainda não. Mansueto Almeida no excelente blog dele mostrou ceticismo
com o programa (link aqui). Faz sentido, gato escaldado tem medo d’água e no
passado recente tivemos outros programas grandiosos que não deram em nada. Terá
o governo aprendido com os próprios erros? Terá a chegada de Joaquim Levy contribuindo
para que o governo aceite formas mais eficazes de colocar em prática as
concessões? O flerte com o sistema de outorgas sugere que sim. Para os que não
lembram o sistema de outorga era a base dos modelos de privatizações da década de
1990 (na época de FHC concessões eram chamadas de privatizações, se não
acredita no que digo faça uma busca por privatização da Dutra). O PT trocou as
outorgas pelo modelo de tarifa mínima e demonizou o antigo modelo como coisa de
neoliberal que odeia o povo. Se o modelo de outorgas será mesmo adotado só o
tempo vai dizer, para um governo que tem negado várias teses que defendeu nos
últimos anos negar as críticas que fez ao modelo de privatização usado por FHC
não deve ser algo muito traumático.
Se o governo usar modelos mais eficientes de concessão vamos
ter motivos para festa? Eu sugiro que não coloquem a cerveja para gelar, creio
que o principal fator que impediu o sucesso das outras iniciativas continua
presente. Antes de dizer do que falo convido o leitor a refletir a respeito de
algumas questões:
Por que a transposição do rio São Francisco não está pronta? A ideia
de fazer a transposição do rio São Francisco data de 1847, quando o Brasil
ainda era um império comandado por D. Pedro II, na época a ideia não foi
adiante. Quase cem anos depois, em 1943, Getúlio Vargas recolocou o tema em
pauta, mas também não foi muito longe, o projeto voltou a ganhar força no
governo Figueiredo, último presidente do regime militar. Já na democracia a transposição
do rio São Francisco recebeu atenção de Itamar e de FHC. No governo Lula o
projeto finalmente saiu do papel e as obras foram iniciadas, o projeto foi aprovado
em 2004, as obras começaram em 2007 e já deviam estar prontas desde 2012.
Estamos em 2015 e as obras ainda não estão prontas. Por que? Para que o leitor
tenha uma ideia será útil observar o que aconteceu entre 2004, quando o projeto
foi aprovado, e 2007, quando as obras começaram. Ainda em 2004 o Plano Decenal
de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco foi aprovado, mas a transposição
ficou de fora por conta de um pedido de vistas. As idas e vindas do projeto
geraram um conflito entre o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e a
Agência Nacional de Água (ANA). No entender da agência o CNRH é o responsável
pelos planos de obras e definições de prioridade da bacia do São Francisco, mas
o uso da água da bacia é atribuição dos órgãos estaduais e da ANA. A disputa criou
um conflito jurídico que ainda não foi resolvido. Mesmo com o conflito as obras
começaram em 2007, atualmente estão no STF pelo menos 14 ações contra a
transposição. As ações tratam de questões indígenas, normas de recursos
hídricos e normas ambientais. O IBAMA já aprovou o relatório de impactos
ambientais do projeto, mas as ações continuam. É razoável investir em uma obra
que leva água do São Francisco para outras regiões do Nordeste? Não sei, seria
preciso um estudo para isso, já li a respeito, mas existem múltiplas
conclusões. Porém a pergunta não é bem essa, a pergunta mais apropriada seria:
É razoável investir em um projeto que está se arrastando e que é questionado
por 14 ações no STF e que nem mesmo os órgãos do governo se entendem a
respeito? Me parece difícil uma resposta diferente de não. O que impede que
investimentos privados (ou mesmo públicos) sejam feitos para terminar a transposição
do São Francisco? Os R$ 8 bilhões necessários para a obra ou a confusão
jurídica que descrevi? Para ajudar na resposta o leitor pode lembrar das
centenas de bilhões de reais que o BNDES usou para financiar o investimento durante
o primeiro governo Dilma (as informações que usei estão na Wikipédia, link
aqui).
Por que a ferrovia Norte-Sul não está pronta? Uma outra consulta a
Wikipédia (link aqui) ensina que a ferrovia Norte-Sul deve conectar os estados
de Pará, Maranhão, Tocantins, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do
Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em um país com déficit crônico
de transportes e reconhecida carência no setor ferroviário é difícil não se
empolgar com o projeto. Porém seguindo a leitura aprendemos que as obras da
ferrovia começaram em 1987 e atualmente estão no trecho entre Açailândia (MA) e
Palmas (TO). O custo da ferrovia é estimado em R$ 25 bilhões. Terá sido a falta
de recursos que impediu a construção da ferrovia? Em quase trinta anos o Brasil
não conseguiu R$ 25 bilhões para uma obra tão importante? O leitor pode mais
uma vez lembrar das centenas de bilhões do BNDES ou, se preferir, o leitor pode
lembrar dos custos dos estádios da Copa. Se não foi falta de recursos então o
que foi? Segundo relatório do TCU o trecho entre Palmas (TO) e Anápolis (GO)
tem 700km que sequer podem ser chamados de ferrovia. Suspeitas de superfaturamento,
erros de projetos como curvas muito fechadas e problemas de execução como
trilhos que não forma soldados também foram apontados no TCU (link aqui). Ações na justiça
ajudam a parar a obra, considerando o número de estados envolvidos e que a justiça
de cada estado pode ser acionada é possível imaginar o custo jurídico e a
confusão de decisões judicias que são enfrentadas para tocar a obra. Assim como
no caso da transposição do São Francisco, creio que não foi por falta de
dinheiro que a ferrovia Norte-Sul não foi terminada.
Como foi possível fazer a Copa? Provavelmente o leitor lembra dos
receios a respeito das obras essenciais para a Copa, inclusive alguns estádios,
não ficarem prontas em tempo hábil. É bem verdade que muitas das obras
prometidas, algumas que importantes para o evento, não ficaram prontas, mas as
obras essenciais foram entregues no tempo. Teve Copa e não fosse o desempenho
vexatório da seleção brasileira teria sido uma festa para recordar por muito
tempo, cara demais para nossas possibilidades, é verdade, mas bonita. Teriam
sido os receios infundados? A matéria da Veja projetando que nem mesmo os
estádios ficariam prontos estava desprovida de fundamentos? Há diga que sim,
mas não é o meu caso. O fato é que foi necessário mudar a lei de licitação e
criar o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (Lei 12.462, link aqui),
também conhecido como RDC. É bem verdade que o Sindicato da Arquitetura e
Engenharia e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil argumentam que o RDC
não agilizou as obras da Copa (link aqui), mas vários gestores ligados aos
projetos da Copa disseram o contrário, inclusive alguns com quem conversei. Creio
que ainda veremos debates a respeito do RCD ter o u não ter sido uma boa opção,
mas o fato de o governo ter sentido a necessidade de mudar a lei de licitação
para conseguir viabilizar obras importantes para Copa sugere que quando pressionado
por um prazo fatal o governo percebeu que menos do que a falta de recursos eram
as complicações legais que podiam comprometer a realização da Copa.
A lista de exemplos de obras que não terminam poderia ser
bem maior: Belo Monte, Estação Morumbi da Linha 4-Amarela do metrô de São
Paulo, duplicação da BR-101 em Pernambuco, Arco Metropolitano do Rio, Transnordestina
e etc. Dificuldades comuns a todas as grandes obras iniciadas e não terminadas
nas últimas décadas incluem projetos mal feitos, corrupção, ações na justiça em
relação a competência de quem autorizou a obra ou relativas a questões
ambientais e indígenas, erros graves de execução, profusão de decisões
envolvendo agências reguladoras, estados e municípios bem como as diversas
procuradorias, licitações mal feitas e orçamentos iniciais inconsistente com o
custo da obra. Problemas relacionados a falta de recursos são raros, talvez
inexistentes.
Se o leitor ficou sensibilizado com meu argumento que não é
por falta de recursos que não conseguimos realizar grandes projetos espero que
o leitor, assim como eu, questione onde o novo plano de concessões trata do
assunto. Modelos de concessão, planos de financiamento e fontes de recursos são
questões importantes, não nego, mas sem resolver os problemas que nos levaram
aos fracassos anteriores não creio que uma nova rodada de concessões terá
sucesso em resolver nossos problemas. Os chineses possuem recursos suficientes
para construir ferrovias que cortem o Brasil e cheguem no pacífico, é difícil
não concordar que tal ferrovia tem valor econômico, mas também é difícil imaginar
tal ferrovia pronta nos próximos anos, talvez na próxima década. É muito provável
que o emaranhado de leis estaduais, normas de diversas agências federais e
estaduais, alvarás que demoram anos para ser emitidos e ações promovidas por grupos
de interesse locais acabem por espantar os investidores chineses e o caminho
para o pacífico seja feito por outro lugar.
Naturalmente não estou sugerindo que abramos mão do combate
a corrupção, da autonomia dos estados, da proteção ambiental ou que
desrespeitemos os direitos de populações indígenas. Longe disso, mas é preciso
pensar um sistema de leis que garanta as importantes questões listadas, mas que
não transformem grandes investimento em um empreendimento quase impossível. É
preciso encontrar formas ágeis de arbitrar interesses dos estados ou de
averiguar impactos ambientais. Um regime jurídico que permite que uma obra seja
construída e após a construção proíbe que a obra seja utilizada tem problemas
sérios. Na minha avaliação sem resolver tais questões nossos problemas de
infraestrutura e investimento em geral não serão resolvidos, pelo menos não com
a eficiência necessária.
São Francisco: nosso Mar de Aral??
ResponderExcluirNão vai!
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