domingo, 11 de outubro de 2015

Sobre dominância fiscal, política monetária e a proposta de âncora cambial

Dominância fiscal passou a ser o tema central no debate sobre macroeconomia no Brasil. A discussão foi colocada por Monica de Bolle em uma série de entrevistas e textos curtos (exemplos aqui e aqui), alguns economistas, dentre os quais este que vos escreve, não se mostraram convencidos com o diagnóstico que a economia brasileira vive um período de dominância fiscal e, mais importante, com a proposta que o Banco Central deveria controlar a inflação por meio do câmbio e não por meio da elevação da taxa de juros. A questão da dominância fiscal é uma questão acadêmica que deverá gerar algumas pesquisas nos próximos anos da mesma forma que gerou no passado, porém a proposta de política econômica derivada do diagnóstico de dominância fiscal é assunto urgente que não pode esperar pelos debates acadêmicos. Neste post vou tentar explicar o que é dominância fiscal e comentar a proposta de retomar um regime de câmbio fixo ou de bandas cambiais para controlar a inflação. Para explicar dominância fiscal vou ter de fazer uma incursão no estranho mundo dos macroeconomistas, se o leitor não quer se arriscar a perder a fé nos debates sobre política econômica talvez seja prudente pular os próximos parágrafos e ir direto para a parte que falo da política econômica (sexto parágrafo).

Comecemos nossa descida ao mundo da macroeconomia imaginando uma economia que consiste em um sujeito isolado que tem acesso a um único bem que serve para consumir e investir, se você não se sentiu bem com esta possibilidade ainda é tempo de considerar o conselho no final a parágrafo anterior e pular para a parte de política econômica. Para ajudar a imaginar o exemplo o leitor pode pensar em Robson Crusoé ou Chuck Noland preso na ilha deserta e vivendo à base de milho, parte do milho ele come (consumo) e parte ele planta para a próxima colheita (investimento), como ele faz para plantar sem possuir sequer uma pá é assunto para outras conversas. Tudo que o pobre naufrago tem a decidir é o quanto da sua riqueza ele vai usar para atender sua satisfação (o milho que vai comer) e o quanto ele vai transferir para o futuro (o milho que vai plantar), quanto mais ele comer menos milho terá no futuro, todas as transações dele com ele mesmo (eu avisei!) são feitas e contabilizadas em grãos de milhos.

Suponha agora que nessa ilha chegou uma entidade chamada governo. Esta entidade cria um pedaço de papel pintado que é chamado de moeda, a tal moeda não serve nem para comer e nem para plantar, porém por alguma razão o naufrago aceita fazer transações (!!)com a tal moeda e expressar o valor do milho na tal moeda. No lugar de destinar tantos quilos de milho para consumo e outros tantos para investimento o naufrago agora diz que vai destinar tantas unidades de moeda para consumo e outras tantas para investimento. Para fazer tudo mais concreto suponha que a todo momento existem quatro vezes mais moedas do que quilos de milho, ou seja, se existirem dez quilos de milho então existem quarenta moedas, sendo assim é natural que um quilo de milhos valha quatro unidades de moeda (falar de natural em um mundo assim beira a loucura, mas eu alertei). Se em determinado ano o naufrago colhe cem quilos de milho, come sessenta quilos e planta quarenta quilos podemos dizer que o produto da economia foi de 400 unidades de moeda, o consumo foi de 240 unidades de moeda e o investimento foi de 160 unidades de moeda.

Agora que temos uma economia monetária passemos ao próximo passo. O governo pega dinheiro emprestado com o náufrago. Para manter o exemplo suponha que o náufrago produziu o equivalente a 400 unidades de moeda, consumiu 240 unidades moeda, investiu 100 unidades de moeda e emprestou 60 unidades de moeda ao governo. De forma alternativa poderíamos dizer que o náufrago colheu 100 quilos de milhos, comeu 60 quilos, plantou 25 quilos e emprestou 15 quilos ao governo. Notem que a diferença é na forma como os valores são expressos, ocorre que para chegar até a dominância fiscal forma importa, e muito. Na segunda forma, a dos quilos, também conhecida como forma real não há espaço para dominância fiscal, se as transações são todas realizadas e contabilizadas em quilos de milho o governo vai ter de arranjar um jeito de devolver os 15 quilos de milho, muito provavelmente taxando o coitado do náufrago. Na primeira forma, a das unidades monetárias, também conhecida como nominal existe uma alternativa a taxar o náufrago. Como o governo está devendo em unidade de moeda e o governo tem o poder de criar moeda então o governo pode criar 60 unidades de moeda e pagar pelo milho que tomou emprestado. Entretanto, ao fazer isso, o governo muda a relação entre unidades de moeda e quilos de milho, se antes tínhamos 100 quilos de milho e 400 unidades de moeda agora vamos ter os mesmos 100 quilos de milho, porém existirão 460 unidades de moeda. Como consequência o quilo de milho que custava 4 unidades de moeda passará a custar 4,60 unidades de moeda. Chegamos assim em uma das mais tradicionais teorias de inflação conhecida como Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), segundo tal teoria o nível de preços é proporcional à quantidade de moeda existente e a inflação será dada pela variação na quantidade de moeda.

Para chegar na dominância fiscal temos de ir além, alguns diriam ficar aquém, da TQM. Suponha que o náufrago perceba que o governo não tem como pagar a dívida, talvez porque o governo fique envergonhado de cobrar impostos do náufrago ou talvez porque o náufrago tenha um arco melhor que o do governo, não importa. Sabendo que o governo não tem como conseguir milho para pagar a dívida o náufrago passa a considerar duas hipóteses: o governo vai dar um calote ou o governo vai fazer moeda para pagar a dívida. No nosso exemplo as duas hipóteses têm o mesmo final e o náufrago perde os 15 quilos de milho que emprestou para o governo. No mundo real não pagar a dívida costuma ter efeitos bem mais danosos do que imprimir moeda, sendo assim vamos supor que o náufrago acredita que o governo vai pagar a dívida imprimindo moeda. Como nosso herói é náufrago mais não é bobo ele faz a conta que fizemos acima e define o preço do quilo de milho como 4,60 unidades de moeda. Sendo assim mesmo que o governo não tivesse pretensão de emitir moeda, talvez por considerar o calote ou talvez por ter conseguido um arco melhor ou um rifle, ocorrerá o aumento de preços. Ao contrário do previsto na TQM onde o aumento de preços ocorre por conta da política monetária temos agora um caso onde o aumento de preços foi causado pela dívida pública, ou seja, pelo lado fiscal. Quando isso ocorre dizemos que a economia está em dominância fiscal. Como de costume quando o assunto é macroeconomia existem debates intenso a respeito da possibilidade prática e teórica de ocorrer casos onde o lado fiscal determine os preços, não vou entrar o debate, para o leitor interessado deixo dois textos avaliando a possibilidade de dominância fiscal no Brasil (link aqui e aqui) e dois textos criticando teoricamente a possibilidade da dívida pública determinar preços (link aqui e aqui).

Passemos agora à questão da política econômica. Em condições normais o combate à inflação é feito por meio da política monetária. Quando o governo entende que é o momento de reduzir a inflação o BC reduz o ritmo de crescimento da moeda, na prática isso equivale a vender títulos no mercado de forma que o BC entrega títulos e recolhe as moedas que recebeu em troca dos títulos. Para que as pessoas queiram títulos o BC deve tornar os títulos mais atrativos o que, via de regra, significa aumentar juros. Sendo assim a política monetária é feita por meio de juros, no lugar de aumentar e diminuir a taxa de crescimento da moeda os governos pelo mundo, Brasil inclusive, reduzem e aumentam alguma taxa de juros de referência. Isso tudo funciona muito bem na TQM e outras condições onde não exista dominância fiscal, na presença de dominância fiscal a coisa fica mais complicada. Quando o BC aumenta os juros a dívida também aumenta, se é a dívida que determina os preços então o aumento da dívida levará a um aumento dos preços. Em um certo sentido a dominância fiscal é uma sinuca de bico cujo a única saída é cortar gastos deforma a reduzir a dívida. O que acontece quando o governo não dá sinais que vai cortar gastos?

É nesse ponto que entra a proposta da Mônica de Bolle de usar o câmbio para controlar a inflação. Ao atrelar o real ao dólar o governo impediria o aumento excessivo dos preços em reais, como fixar o câmbio costuma ser perigoso a proposta é fixar bandas móveis para o câmbio, se funcionar a desvalorização aceita para o valor máximo do câmbio funcionaria como teto para inflação. Se o BC avisa que permitirá uma desvalorização de no máximo 5% em um ano então as pessoas podem aceitar reajustar seus preços em 5% ou até menos a depender das condições de mercado. Para controlar o valor do câmbio o BC faria uso das reservas que possui. Dois pontos devem ficar claros: a proposta coloca um teto e um piso no câmbio e, mais importante, a proposta não é igual a infame banda diagonal endógena, de fato existem bandas diagonais, mas, se bem entendi a proposta, as bandas são exógenas e isso faz toda a diferença.

Qual o problema com a proposta? No lado mais acadêmico não sou exatamente um fã da teoria fiscal dos preços, a ideia que a dívida pública determina preços, e sem tal teoria o argumento não se sustenta. Não é que eu afirme que não existe dominância fiscal ou que eu seja um monetarista radical, menos do que defender uma teoria nessa nova versão do debate entre monetaristas e fiscalistas (sei que estou provocando!) fico na posição de quem não confia em nenhuma das duas teorias. A verdade é que os modelos macroeconômicos não estão desenvolvidos o suficiente para explicar fenômenos monetários de forma confiável. O “modelo” que usei para explicar dominância fiscal não é tão diferente dos modelos usados por macroeconomistas na academia e em bancos centrais. Como confiar nas previsões sobre inflação feitas por um modelo onde moeda não faz sentido? Para os que se interessaram pelo o assunto recomendo um blog (link aqui) e um artigo introdutório (link aqui). Não vou negar que em termos práticos eu acabe ficando do lado dos que querem usar política monetária, porém meus motivos estão mais associados a uma certa prudência conservadora do que a adesão a determinada teoria.

Para além do lado acadêmico tenho preocupações práticas com a proposta. No post anterior argumentei que o uso de reservas na Rússia não conseguiu segurar desvalorização do rublo (link aqui). Por que acreditar que no Brasil seria diferente? Caso as reservas não segurem o câmbio podemos entrar no pior dos mundos, forçado a defender o câmbio o Banco Central terá de aumentar juros para atrair capitais e impedir que o câmbio passe do teto estipulado para a banda. A experiência dos anos 90 mostra que quando o BC está obrigado a defender o câmbio as elevações de juros podem ser mais abruptas e maiores do que as elevações de juros necessárias para controlar a inflação. A verdade é que qualquer política que não venha acompanhada de um ajuste fiscal de médio e longo prazo estará fadada ao fracasso, não que tal ajuste vá resolver todos os nossos problemas, quem acompanha o blog sabe que na minha avaliação os grandes problemas do Brasil não foram causados por questões fiscais, mas sem tal ajuste será impossível mesmo pensar na solução dos grandes problemas. Talvez a economia brasileira atual mude o sentido da frase de Keynes que no longo prazo estaremos todos mortos....





5 comentários:

  1. Um regime de câmbio fixo, a meu ver, vai permitir ao governo expandir seus gastos e deixar uma crise fiscal e de BP para 2019.

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  2. Creio que câmbio atrelado seja um problema por fazer política monetária e cambial simultaneamente. Pode-se gerar um descompasso entre reservas e base monetária, levando a uma desvalorização da moeda, exatamente o objetivo contrário de atrelar o câmbio.

    Mas e um regime realmente fixo? O Banco Central abdica de fazer política monetária e passa a exclusivamente trocar dólares por reais a uma taxa fixa. Em suma, ele vira um Currency Board.

    Para o Brasil, um país que só escapou de uma inflação sistêmica há duas décadas e que tem um histórico recente de políticas heterodoxas, mas que goza de reservas abundantes, um câmbio realmente fixo pode ser uma boa ideia.

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    1. Currency board resolveria uma penca de problemas. Mas sem preços realmente livres (e ai entra a possibilidade legal de salarios serem reduzidos) e sem resolver o problema di continuo aumento de gastos públicos dos últimos 30 anos, ns primeira crise afundariamos para não mais voltar.

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  3. Bacana, obrigado por compartilhar seu conhecimento e ponto de vista sobre o assunto.

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  4. DISCORDO TOTALMENTE!!!!!!!!
    O naufrago provavelmente comeria e plantaria côcos! Não milho! De onde viriam as sementes de milho? A mercadoria única que serviria para plantar e investir teria que ser côco, não milho!!!!

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