O leitor que acompanha o blog sabe que um dos principais
motivos para existência desse espaço é denunciar a agenda de contrarreformas
que começou por volta de 2006 e tomou força a partir de 2011 com a chegada de
Dilma ao poder. O fracasso da Nova Matriz Econômica proposta pela equipe
econômica do primeiro governo Dilma hoje é evidente. Um programa que prometia
aumentar o crescimento e a taxa de investimento, recuperar a participação da indústria
no PIB e ainda manter a inflação sobre controle e aprofundar o processo de
redução da pobreza extrema e desconcentração de renda teve como resultado o
exato oposto do que propunha. O país parou de crescer, a taxa de investimento
reverteu a tendência de crescimento, a participação da indústria no PIB
continuou caindo, a inflação subiu, a miséria aumentou e o processo de desconcentração
de renda perdeu força. Diante de tamanho fracasso continuar batendo na agenda
de contrarreformas poderia ser visto quase como uma forma de sadismo, mas não
é. As ideias que inspiraram tanto as contrarreformas quanto a infame Nova
Matriz Econômica continuam vivas e fortes apenas esperando uma nova
oportunidade de voltarem a pautar a política econômica.
Sou de uma geração de economistas que ousou sonhar que o
desenvolvimentismo à brasileira tinha saído de cena de uma vez por todas. Por
algum tempo pensei que estávamos livres do cotidiano de fortunas construídas do
dia para noite por empresários especializados em tomar financiamento subsidiado
do governo para construir obras ou produzir mercadorias superfaturadas para o
próprio governo. Não que a corrupção fosse acabar ou que aqui ou ali não aparecesse
um caso de sucesso empresarial tão inexplicável quanto próximo ao governo,
infelizmente essas coisas existem em qualquer lugar do mundo, mas confesso que pensei
que casos assim deixariam de ser regra e passariam a ser exceção. Ledo engano,
mal nos recuperamos da crise da década de oitenta e trouxemos de volta o BNDES
bem como os grandes programas de infraestrutura definidos em Brasília e
financiados pelo contribuinte. É bem verdade que governo grande nunca saiu de
cena, mas o governo que transfere renda para os muito ricos à guisa de
financiar o desenvolvimento tinha saído de cena e estava de volta à ribalta.
No meio de crise fiscal, ameaça de volta da inflação,
demissões em massa e ainda por cima de uma crise política que toma contornos de
crise institucional é fácil ver que tudo deu errado, mas pode ser difícil
enxergar os detalhes do processo que fez com que tudo desse errado. Com o
objetivo de ilustrar a origem do mal que nos assola resolvi dar uma olhada no
anuário estatístico da indústria automobilística (link aqui) e tentar ver como seria
possível contar a história das reformas e das contrarreformas a partir dos
dados de um setor da indústria que sempre esteve no centro das atenções de
nossas políticas industriais. Para isso devo dizer que um dos elementos da
lógica das contrarreformas é o que se chama de macroeconomia do emprego e da
renda, a ideia é que a política econômica deve ser focada em garantir o emprego
e a renda dos trabalhadores. Uma vez garantidos o emprego e a renda, na prática
mais o emprego do que a renda, a demanda também estaria garantida e o espírito
animal dos empresários faria o resto, ou seja, garantiria os investimentos
necessários para aumentar a capacidade produtiva da economia. Caso algo desse
errado bastaria o governo aumentar gastos de forma a garantir a demanda e
manter vivo o espírito animal.
Um dos pontos desta lógica que mais me incomoda é que ela pressupõe
poder guiar o espírito animal, qualquer um que tenha contato com animais sabe o
quão difícil é guiar um animal e quão fácil é terminar levando uma dentada. Quando
muito a lógica se aplicaria a animais adestrados, o que exigiria supor que
burocratas têm capacidade de adestrar o espírito animal do empresário e ignorar
que um dos efeitos colaterais do adestramento é exatamente destruir o espírito
animal. Mas deixemos de coisas e cuidemos da vida, a figura abaixo mostra o
número de pessoas empregadas na indústria automobilística, no gráfico estão o
emprego apenas na produção de veículos e o emprego total, a diferença é o
emprego na produção de máquinas agrícolas e rodoviárias. Chama atenção o
aumento do total de pessoas empregadas no setor, o pico de 2013 só é menor que
o pico de 1986, a subida que começa em 2003 é comparável a que começa em 1967,
ao que parece será um pouco mais curta, mas da mesma ordem de inclinação. Tudo
fica ainda mais impressionante se consideramos os possíveis efeitos do processo
de terceirização sobre o número de empregados nas empresas do setor.
Se o emprego é variável de interesse para os elaboradores de
política econômica o lucro é a variável de interesse para as empresas do setor.
Não encontrei o lucro, mas encontrei o faturamento líquido, ou seja, o
faturamento livre de impostos. Usar faturamento como proxy para lucros é uma
estratégia arriscada, mas um blog é o tipo de lugar adequado para tomar certos
riscos, sendo assim a figura abaixo mostra o faturamento do setor como
proporção do PIB. Repare que desde a década de 70 não ocorria uma sequência de
anos onde o faturamento da indústria automobilística ficasse acima de 4% do
PIB, mais precisamente, em termos de faturamento da indústria automobilística o
período atual só é comparável ao período entre 1971 e 1976. Juntando os números
de emprego e faturamento fica difícil não ficar com a impressão que para a
indústria automobilística os últimos anos foram tão bons quanto a década de 70.
O leitor assíduo do blog sabe que sempre que faço referência
à década de 70 é porque estou preparando terreno para falar da década de 80,
esse post não será exceção. O aumento do emprego no setor automobilístico na
década de 70 despencou de tal forma na década de 80 que apenas por volta de
2012 o número de empregados no setor voltou a ser igual ao de 1980. Com os
números que tenho não posso ajustar para os efeitos da terceirização, mas mesmo
que o intervalo de 32 anos caia pela metade ainda terá sido um longo período de
recuperação. Será que a queda que começa em 2014 será igual à queda que começou
em 1981? Espero que não, mas temo que possa ser mais parecido que gostaríamos.
Para entender meus motivos peço que reparem no gráfico
abaixo mostrando o emprego (eixo da esquerda) e a produtividade do trabalho (eixo da direita) na produção de
veículos. Note que o grande período de crescimento do emprego ocorrido na
década de 70 não foi acompanhado de crescimento semelhante na produtividade. No
lugar de fazer mais com menos, que é o caminho para a riqueza, estávamos
fazendo mais com mais, que é um processo limitado pela oferta de capital e
trabalho e/ou pelos rendimentos decrescentes na produção. Repare agora que no período
das reformas, a partir da abertura em 1990, a indústria automobilística começa
um processo de crescimento da produtividade. Mais emprego, mais produtividade e
mais faturamento! Como pode dar errado?
Olhe com mais atenção. Para ajudar vou colocar alguns
números. Entre 1973, quando começa a estagnação da produtividade, até 1990, começo
da abertura, a produtividade do trabalho cresceu a uma taxa média de 0,3% ao
ano, uma taxa muito baixa. Entre 1991 e 2005, período das reformas, a
produtividade do trabalho cresceu a uma taxa média de 8,8% ao ano, um crescimento
quase trinta vezes maior. Entre 2006 e 2014, período de contrarreformas, a
produtividade teve um crescimento negativo de 0,5% ao ano, se considerarmos
apenas o período da Nova Matriz o crescimento negativo foi de 4,8% ao ano! Fica
difícil não concluir que a crise atual da indústria automobilística é uma crise
que passa pela falta de crescimento da produtividade, ao focar no emprego e
ignorar a produtividade a política econômica mais uma vez gerou um crescimento
não sustentado, pior, destruiu um crescimento que parecia sustentável para
colocar no lugar uma repetição piorada do modelo da década de 70. Se serve de
consolo o processo democrático parece ter atrapalhado a ponto de quase impedir
a estratégia desenvolvimentista do século XXI, o povo foi para as ruas deixar
claro que não estava disposto a financiar devaneios de burocratas que acreditam
não apenas domar animais como descoberto a maneira de domesticar sem eliminar o
instinto selvagem. No lugar de pirotecnias como maxidesvalorização do câmbio por
decreto e fórmulas mágicas de correção salarial temos um governo acuado,
empresários amigos na cadeia e promessas vazias de ajuste fiscal. Melhor assim.
P.S. Sempre que mostro números contrastando o período de reformas
do período de contrarreformas aparece alguém cobrando os números por mandatos presidências.
Acredito que separar por política econômica faz mais sentido do que por quem é
o inquilino do Palácio do Planalto, mas para poupar o trabalho de alguns amigos
informo que o crescimento da produtividade do trabalho foi de 5,6% no período
de FHC, 4,5% ao ano no período de Lula e -4,8% ao ano no período Dilma.
No último gráfico, qual é o emprego e qual é a produtividade? Está série1 e série2
ResponderExcluirFiz a correção, obrigado
Excluir(mesmo anônimo: os eixos também estão sem legenda)
ResponderExcluirComentei no texto do post, o da direita é o da produtividade e o da esquerda é o do emprego. Sei que o ideal é colocar no gráfico, mas o Excel não ajuda.
Excluir:)
ExcluirEm tempo: a produtividade é em R$ por hora trabalhada?
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