Vou tentar fazer um breve guia para que os leitores acompanhem o que está acontecendo na Grécia e entendam minhas razões para dizer que se eu fosse grego
eu votaria no não. Aviso logo que não seria um voto tranquilo, entendo que as duas opções são ruins e terão consequência graves, é uma escolha do menos pior. Aproveito também para sugerir a leitura do excelente post do Mercado Popular a respeito das críticas de Friedman à união monetária na Europa (link aqui).
Comecemos pelo PIB per capita, variável que melhor oferece um painel geral do
que está acontecendo em uma economia. O PIB per capita da Grécia inicia uma
trajetória de crescimento em 1994, antes da criação da Zona do Euro. Os
primeiros anos da década de 1990 foram de baixo crescimento e inflação alta na Grécia, o PIB
per capita encolheu em 1992 e 1993, a partir de 1994 tudo começou a melhorar e
com a entrada na Zona do Euro ficou melhor ainda, entre 1994 e 2000, a taxa de
crescimento da Grécia foi de 2,73% ao ano, entre 2001, ano que a Grécia entrou
na Zona do Euro, e 2008, ano da Crise Financeira, a taxa de crescimento foi de
3,78% ao ano. Tudo mudou em 2008, de lá para cá a economia encolheu em todos os
anos com exceção de 2014, é verdade que se as previsões do FMI se confirmarem também haverá
crescimento em 2015, mas não creio que seja seguro apostar que as previsões do FMI vão se confirmar.
Por que a crise afetou a Grécia de forma tão brutal? Para
isso será necessário ir além do PIB per capita. A figura ao lado mostra a taxa
de investimento e a taxa de poupança na Grécia. Note que em 1994 as duas taxas
estão praticamente iguais, isso significa que os gregos estavam financiando o
próprio crescimento, ou seja, o investimento dos gregos era financiado pela
poupança dos gregos. A partir de 1994 os gregos começam a demandar poupança de
outros países para financiar o investimento, isso não é necessariamente um
problema, pelo contrário, costuma ser bom que um país que retoma o crescimento possa
usar poupança de outros países. Entretanto, como sabiam nossos avós, até água
deve ser tomada com alguma moderação, que dirá empréstimos. Em 2008 a diferença
entre taxa de investimento e taxa de poupança, que era de 0,1% do PIB quando
começou o processo de crescimento estava em 14,5% do PIB.
Para que o leitor que não é economista visualize o argumento
vale a pena considerar um exemplo corriqueiro em várias famílias. O casal de noivos arranja empregos melhores e começa a fazer planos para o casamento, o aumento
de renda veio acompanhado de novos gastos para a preparação do enxoval, mas o
casal continua dentro do orçamento. Vem o casório e o casal decide comprar um
imóvel, para isso se endivida em um banco, ou seja, recorre a poupança de
outras famílias. Até aqui não temos necessariamente um problema, desde que o
casal tenha feito boas escolhas é possível que a compra da casa (investimento) se
pague no decorrer dos anos, a dívida contraída será paga e o casal terá uma
bela residência para criar os filhos. Suponha agora que o casal percebendo que
a renda aumentou e que tem crédito resolva trocar de carro, no lugar do antigo
carro econômico um utilitário de luxo e para isso mais uma vez recorre a poupança de
outras famílias. Temos um problema? Ainda não necessariamente. O casal continua
empolgado e resolve ter lua de mel em Paris e colocar os filhos na melhor escola
da cidade. Agora podemos afirmar que existe um problema? Ainda não. Quando
poderemos afirmar? Aí está a dificuldade, em geral não sabemos. Teoricamente o
problema vai aparecer quando a renda futura do casal não for mais suficiente
para pagar a dívida. Na ausência de bolas de cristal ou outras formas de prever
a renda futura, não temos como afirmar se as decisões do casal foram boas ou
ruins no momento em que as decisões estão sendo tomadas. Se a renda do casal aumentar com o tempo de forma a ser suficiente para
pagar a casa, os carros, as viagens e a escola do filho teremos um casal feliz
que tomou decisões corretas, se acontecer a alguma coisa que faça com que a
renda do casal não aumente o suficiente vamos ter um casal com dividas e talvez
brigando a respeito de trocar os filhos de escola.
Voltemos para o caso da Grécia. A figura ao lado mostra o saldo em transações correntes como
proporção do PIB, o saldo em conta corrente é a diferença entre a taxa de
poupança e a taxa de investimento. Quando o saldo em conta corrente é negativo
o país está pegando dinheiro com o resto do mundo, quando é positivo o país
está mandando dinheiro para o resto do mundo. Dito de outra forma, quando é
positivo o país está se endividando, quando é positivo o país está pagando a
dívida ou se tornando credor. Nele fica claro o tamanho do buraco que a Grécia
se meteu e como a subida para sair do buraco foi mais íngreme que a descida.
Em 2008 o crescimento da Grécia acabou, entre 2008 e 2014 o
PIB per capita grego decresceu a uma taxa média de 3,93% a ano, só em 2011 a
queda foi de 8,37%. Praticamente todos os planos feitos na perspectiva de
crescimento de 3,78% ao ano viraram pó com o decrescimento de 3,93% ao ano. De
quem é a culpa? Não considero que culpa seja um termo adequado aqui, os gregos
apostaram e perderam. Quem financiou os gregos também apostou e também perdeu,
é da vida. Menos do que procurar culpados a questão relevante é o que fazer. De
cara será preciso pagar a dívida ou pelo menos reduzir o ritmo de
endividamento, o gráfico da conta corrente mostra o tamanho do esforço grego
para tentar parar de se endividar e até começar a pagar as dívidas, o que começou
a acontecer por 2013. É difícil negar que os gregos fizeram das tripas coração
para reverter o saldo em transações correntes, mas, para o bem ou para o mal,
coração não é feito de tripas e o esforço grego começou a ficar muito caro e a
população perdeu a esperança. É o caso do pai de família que mesmo cortando
gastos, vendendo a casa e tirando os filhos da escola não enxerga a luz no fim
do túnel e começa a se desesperar.
Uma boa forma de captar o tamanho do esforço grego é olhar a
trajetória do gasto público, a figura acima mostra o gasto do governo da
Grécia como proporção do PIB. Em 2009 o governo grego gastou o equivalente a
54% do PIB, em 2011 o gasto público ainda era 53,7% do PIB. A partir daí o
governo grego começou a levar o ajuste a sério e o gasto começou uma trajetória
de queda. Em 2013 era 47,8% e, segundo as projeções do FMI, foi de 46,3% em
2014 e seria de 44,2% em 2015, o seria é porque acabo de ver no Estadão que o
não ganhou (link aqui). O esforço fiscal parece ser gigantesco quando olhamos a
queda no gasto público em proporção ao PIB, entretanto, mesmo que nenhuma surpresa
tivesse ocorrido e a projeção do FMI para 2015 se realizasse os 44,2% do PIB
gastos pelo governo seriam bem maiores que os 39% do PIB gastos em 1994, quando
o crescimento começou, e um pouco maior que os 43,7% do PIB de 2001, ano que a
Grécia aderiu ao Euro. A queda, por maior que tenha sido, quando muito colocou
o gasto público no nível que estava antes do Euro. Quem se acostuma com filé sofre se tem de voltar a comer coxão duro e se desespera ante possibilidade de
voltar a comer músculo. Outro indicador que o ajuste não foi tão grande quanto o
necessário é que a dívida do governo Grego continuou a crescer como proporção do
PIB como mostra a figura a lado.
Para além do gasto público é possível ver o drama grego por
meio da taxa de desemprego, a figura ao lado faz isso. Em 1994 o desemprego
estava na casa de 9,3%, em 2008, ano da crise, o desemprego estava na casa de
7,8%, números bons para o padrão europeu. A partir de 2008 o desemprego começou
a crescer e chegou a 27,5% em 2013, quase 20% da força de trabalho grega ficou
desempregada em um período de cinco anos. É bem verdade que o desemprego caiu
em 2014 e o FMI previa outra queda em 2015, mas os valores continuavam muito
alto.
A retração da renda e o aumento do desemprego foram fatais
para o ajuste grego. Cansada e sem esperanças a população elegeu um governo de
extrema esquerda que prometeu romper com a política de ajuste e interromper o pagamento
das dívidas. Como a realidade é mais complexa do que imaginam os estrategistas
políticos o rompimento demorou um pouco, mas ao que tudo indica, acontece hoje,
com apoio do povo da Grécia. Aqui do lado, na Bolívia, tivemos um caso
semelhante onde uma política de ajustes que poderia ter funcionado levou a eleição de um governo de extrema
esquerda. Mais uma vez aparece a questão sobre a culpa dos credores. Teriam
sido duros demais? Novamente rejeito a ideia de culpa. A depender do ângulo
alguns vão dizer que os gregos se endividaram demais e outros vão dizer que os
credores foram cruéis ao exigir o pagamento nos termos que exigiram. Do meu
ângulo novamente vejo apostas. Os gregos apostaram que o jogo duro mudaria a
disposição dos credores, os credores apostaram que o jogo duro mudaria a disposição
dos gregos. Pelo que parece ambos perderam suas apostas. Vida que segue.
Poderia ter sido de outra forma? Creio que sim, mas não com
a Grécia no Euro. A outra forma seria melhor? Creio que não, mas talvez fosse
mais palatável para os gregos. Qual a outra forma e por que seria mais
palatável? Para mostrar a outra forma é válido lembrar do Brasil na década de
1980. Nossa situação não era essencialmente tão diferente da dos gregos hoje.
Nos endividamos apostando em um crescimento da renda que não aconteceu, a conta
chegou e não tínhamos como pagar. No lugar de uma crise profunda com taxas de
crescimento negativo da ordem de 8,3%, como a Grécia teve em 2011, tivemos uma
crise longa que se arrastou por toda a década de 80 e foi bem longe na década
de 1990, há quem diga que durou até o começo do século XXI. O que fizemos
diferente da Grécia? Fizemos uma gigantesca desvalorização cambial no começo da
década de 1980 e permitimos o aumento da inflação que se tornou uma hiperinflação
no final da década de 1980. Nossa opção não está disponível para os gregos
enquanto a Grécia for parte do Euro.
Deixarei a parte do câmbio para os que acham que
desvalorização do câmbio sozinha resolve algo, não é meu caso, e ficarei com a
história da inflação. Para isso recorro a mais um exemplo, dessa vez algo que
presenciei não tem muito tempo. Em uma reunião do Conselho Administrativo da
UnB o reitor e o decano de planejamento e orçamento estavam explicando o corte
nos gastos e como os cortes afetarão a UnB. Em um certo momento o reitor
relatou uma conversa que teve com um professor que tinha um alto cargo em uma
universidade de Portugal, lá ocorreu um corte nos salários dos professores,
pelo que entendi a lei de lá, assim como a de cá, não permite redução de
salário nominal, mas mesmo assim a redução foi feita. O amigo imagina um corte
de salário nominal dos professores da UnB ou de qualquer outra universidade
federal? Eu não imagino, o custo político seria muito alto. Por que o governo português
enfrentou o custo político e cortou salários? Porque não tinha outra opção.
Volto à UnB, lá, creio que nas outras federais não é tão diferente, a
folha de salário equivale a aproximadamente 80% do orçamento, sem cortar
salários o corte deve ser todo feito nos 20% restantes. Isso quer dizer que,
sem redução de salários, o máximo que o governo pode cortar nas federais é de
20%, e mesmo assim se estivesse disposto a cortar tudo que não é salário, ou
seja, fechar as federais.
É possível ajustar os gastos com tamanha restrição? Não.
Então o que o governo deverá fazer? Esperar a inflação reduzir o salário
nominal dos professores e demais servidores públicos. Haverá resistência? Sim, mas
muito menor que a resistência a um corte de salário nominal. A proposta do
governo de reajustar o salário dos servidores em aproximadamente 5% por ano nos
próximos quatro anos ilustra que o governo pretende deixar a inflação reduzir
salários reais, as greves que estão aparecendo, mostra a resistência, nada novo
ou anormal, nada parecido com o que aconteceria em caso de redução de salário
nominal. Por que Portugal não deixou a inflação ajustar os salários reais?
Porque Portugal não tem moeda própria e, portanto, não tem política monetária.
A diferença entre os professores da UnB e os professores de
Portugal é essencialmente a diferença entre o Brasil da década de 1980 e a
Grécia de hoje. A política monetária permite um ajuste que ao que tudo indica é
mais palatável para população, mas está vedada pelo Euro. A figura ao lado mostra
a taxa de inflação na Grécia, repare como os gregos não contaram com a inflação
para reduzir salários reais. Ajustar por meio de inflação é melhor? Depende de
para quem, creio que para os mais pobres é pior. A mesma inflação que facilita
o ajuste causa uma redistribuição de renda dos pobres para os ricos, vivemos
isso na década de 1980 e vimos como a drástica redução da inflação beneficiou os
pobres. A inflação também desorganiza os preços relativos o que aumento o
retorno exigido para o investimento e pode induzir investimentos ruins. Porém o
fato de eu não gostar de uma terapia não me impede de entender os efeitos da
terapia, a solução via inflação me parece pior, mas também é menos dolorida.
Quem escolhe? A população, os gregos já escolheram, não é minha solução ideal.
Creio que o correto seria sair do Euro sem dar calote nos credores e adotar uma política macroeconômica no estilo do tripe que vigorou no Brasil entre 1999 e 2010, uma opção
tão mal vista que nem mesmo consta na lista.
A Grécia deveria sair do Euro porque o realismo político mostra que
nem os gregos topam pagar todo o custo do ajuste necessário para superar um
choque negativo e nem o resto da Europa topa bancar os gregos. Em uma federação
tal tipo de troca ocorre normalmente, estados mais pobres costumam receber
transferências de estados mais ricos e, em troca, aceitam os limites de gastos
e endividamento impostos direta ou indiretamente pela União. Em uma federação,
sem a existência de soberania, seria possível que alemães e gregos vivessem com
a mesma moeda, fora disso a convivência de ambos com uma mesma moeda me parece
fadada a repetir crises como a atual. Talvez minha antipatia por governos fortes
esteja inflando meu pessimismo quanto ao futuro da Zona do Euro, confesso que
pequenos Estados soberanos me agradam mais do que uma grande federação, mas,
nesse momento, para além de minhas implicâncias, a realidade mostra que a união
da Europa, pelo menos no que concerne à Grécia, não é viável. O grande projeto
geopolítico que poderia garantir uma era de paz na Europa talvez seja inviabilizado
pela dura realidade da economia. Talvez a perseverança e o compromisso com a
Europa superem as dificuldades reais, mas hoje não parece que vai acontecer. Talvez o resultado do referendo não implique na saída da Grécia da Zona do Euro criando um novo cenário que mude as relações entre os países que adotam o Euro, não creio, mas ao contrário da economia, em política tudo é possível.
Boa sorte aos gregos e boa sorte à Europa! Precisamos de
vocês bem.
Oi Professor.
ResponderExcluirExcelente texto. Gostaria que um dia fizesse um texto sobre a Bolívia. Como o país conseguiu nacionalizar a economia, manter estabilidade e crescer ao mesmo tempo? Essa vai ser a solução de países endividados? Na época achava que a fuga de capitais estrangeiros seria um desastre para o país. Não sei no longo prazo, mas no curto, as medidas de Morales se mostraram acertadas.
Ab
Otimo texto Beto.....mas quanto ao texto do Friedman hein ?...mmmm.....tenho alguns senões : em vez de considerar o enxugamento da maquina estataL tornando -a menos gastadora e deficitaria, menos sugadora e mais eficiente....em vez de considerar a flexibilização das arcaicas leis trabalhistas e junto a absoleta estrutura sindical ocidental ( concorrencia do sudeste asiatico, china , dando pau no ocidente decada á decada ).....e outras reformas estruturais para aumentar a produtividade...ele simplesmente prefere tapar o sol com com a peneira propondo a desvalorização cambial....affffff......me remeteu ao Delfim Neto anos 80....toc...toc..toc na madeira 3 vezes....rssssss
ResponderExcluir