domingo, 15 de setembro de 2013

A História de duas Cidades

Brasil e Chile são países com muitas diferenças e algumas semelhanças. Entre as semelhanças está o fato que os dois passaram por ditaduras militares durante as décadas de 1970 e 1980, no Brasil a ditadura começou em 1964 enquanto no Chile começou em 1973. Outra semelhança é que ambos estão localizados na América Latina, região do mundo onde mais se questiona o conhecimento econômico convencional e também, por pura coincidência, a única região do planeta onde a cultura ocidental não trouxe riqueza, mesmo com décadas de paz. Entre as diferenças está o fato que ao contrário da ditadura do Brasil e das outras ditaduras que assombraram o continente a ditadura chilena não apostou na economia mágica de inspiração cepalina. Neste ponto o Chile se diferencia de praticamente toda a América Latina.

No post anterior mostrei o que chamo de Desastre da América Latina no pós-Guerra. Desta vez vou falar um pouco sobre o Chile, o único país que não embarcou de cabeça na agenda cepalina e a grande exceção ao desastre econômico que se abalou sobre o Continente. Especificamente vou comparar o desempenho econômico entre Brasil e Chile, no futuro falarei mais sobre o Chile e a América Latina. Se alguém se interessar pelo assunto recomendo que leiam o livro Left Behind: Latin America and the False Promise of Populism, escrito pelo professor Sebastian Edward. A figura abaixo mostra o PIB per-capita do Brasil e do Chile entre 1951 e 2010.




Notem que no começo do período o Chile era mais rico do que o Brasil, esta situação continuou até 1972 (o golpe do Chile foi em 1973) quando o Brasil ultrapassou o Chile, porém em 1992 o Chile ultrapassou novamente o Brasil e abriu uma grande dianteira. O que aconteceu? Aconteceu que enquanto o Brasil apostou na estratégia desenvolvimentista de transferir dinheiro para empresários e esperar que estes empresários nos levem ao mundo prometido da riqueza o Chile apostou na sabedoria econômica convencional: mercado tão livre quanto possível, regras simples e estáveis e investimento em educação. Enquanto nossos militares fizeram os PNDs inspirados na CEPAL (que ironicamente é sediada no Chile) os generais chilenos buscaram conselhos com economistas de Chicago, escola símbolo do livre mercado.

Antes de seguir adiante devo esclarecer duas coisas. A primeira é que o fato de um ditador escolher boas políticas econômicas não justifica em nenhuma hipótese a ditadura, FHC em seus dois mandatos e Lula em seu primeiro mandato provaram que é possível fazer reforma em uma democracia. A segunda é que assim como o Brasil não seguiu ao pé da letra as políticas cepalinas o Chile não seguiu ao pé da letra as políticas de Chicago, de fato podemos pinçar exemplos de políticas liberais no Brasil da época dos PNDs e encontrar exemplos de políticas intervencionistas no Chile dos Chicago-boys. Isto é normal, apenas sociopatas imaginam que podem impor a um país um conjunto de políticas totalmente compatível com alguma doutrina. O exercício de pinçar políticas é interessante e pode ser instrutivo, mas neste post estou mais preocupado com as linhas gerais de políticas seguidas no Brasil e no Chile do que em detalhes de políticas específicas.

O ponto que merece destaque é que a ditadura chilena optou por romper com o desenvolvimentismo e adotar medidas pró-mercado, o que o Brasil só fez nos anos 1990, enquanto a ditadura brasileira aprofundou o modelo desenvolvimentista com os três PNDs. A figura abaixo ilustra os efeitos das políticas chilenas e brasileiras no curto e no longo prazo.




A figura mostra um índice de PIB per-capita nos anos seguintes aos golpes. A série do Brasil começa em 1964 e termina em 2001, a série do Chile começa em 1973 e termina em 2010. No total são descritos os 37 seguintes ao golpe, os dados são da PWT 7.1, os períodos são delimitados pelo fato que 2010 é o último ano disponível na base, o Brasil termina em 2001 porque queria manter o mesmo número de períodos para os dois países. Desta forma o eixo horizontal representa o número de anos após o golpe. Note que logo após o golpe brasileiro a economia cresce de forma quase ininterrupta por 17 anos, após este período a economia entra em crise e depois fica estagnada de maneira que em 2001 o índice ainda era menor do que em 1980. No Chile ocorre o contrário, após o golpe ocorre uma recessão e depois um crescimento medíocre. Porém, pouco mais de 10 anos após o golpe a economia do Chile entra em uma trajetória de crescimento que dura até hoje. A lição é velha e conhecida: para colher no futuro é preciso plantar no presente. Reformas exigem sacrifícios, mas, se bem executadas, trazem ganhos significativos no futuro.

Agora olhem novamente a primeira figura. Notem que o Brasil retoma o crescimento no começo da década de 1990 e que este crescimento começa a tomar força em 2003. A década de 1990 no Brasil corresponde ao período entre 1973 e 1983 no Chile. Neste tempo foram feitas reformas importantes que tiraram o Brasil de uma década de estagnação e nos colocaram no caminho do crescimento. Não um crescimento concentrador de renda como o da década de 1970, um crescimento acompanhado de distribuição de renda e de ganhos de produtividade, modestos, mas ainda assim ganhos. Ao abandonar a agenda de reformas e optar pela volta do desenvolvimentismo a presidente Dilma está tirando o Brasil da trajetória chilena e nos condenando a repetir o passado. É um erro grave.

P.S.1. Este post atende a uma demanda de um dos raros leitores que me encaminharam demandas específicas. Espero que tenha atendido, no futuro voltarei ao tema com mais tempo.

P.S.2. O excelente blog Não Pise em Mim também está com um post sobre economia do Chile, recomendo a leitura.

14 comentários:

  1. Quais mudanças na década de 1990 proporcionaram crescimento e distribuição de renda na década de 2000, professor?

    Por quais mecanismos?

    O Sr. poderia ser mais específico, por gentileza?


    Eu tendo a concordar em muitos pontos, mas o meu direcionamento acadêmico ainda me deixa em dúvida em outros tantos pontos.

    Obrigado pela atenção!

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    1. A lógica é mais ou menso a seguinte: o estado nacional-desenvolvimentista ao buscar estimular a indústria acaba por transferir renda da população como um todo para este setor. Esta transferência pode ocorrer de várias formas: protecionismo, desvalorização forçada de câmbio, controle de salários e etc. Note que sem esta transferência o setor industrial não é lucrativo o suficiente para permitir a industrialização, se fosse a política não seria necessária. O lado cruel desta transferência é que os beneficiados são os mais ricos, o que de saída já concentra renda, e que o estado ao comprometer a maior parte de seus recursos com estímulos a indústria fica sem recursos para financiar saúde, educação e as políticas de proteção social. No final do dia o porteiro do prédio está pagando imposto para estimular a empresa do dono da cobertura.

      Este é um tema recorrente aqui no blog, na realidade é isto que o blog pretende "denunciar". Toquei neste tema em algus outros posts, tavez você se interesse por estes:

      http://rgellery.blogspot.com.br/2013/07/finalmente-meu-blog.html

      http://rgellery.blogspot.com.br/2013/07/idhm-e-as-reformas-ou-nunca-antes-na.html

      http://rgellery.blogspot.com.br/2013/07/o-mito-da-industria-de-transformacao.html

      Abraço.

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  2. Esse Roberto é fera mesmo...

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    1. Não, bondade sua dar aulas de macroeconomia de altíssima qualidade totalmente de graça para a gente neste blog. Muitíssimo grato por isso, viu?

      Ah, acabei de ler os capítulos que escreveste nos livros Desenvolvimento Econômico e The Great Depressions of the Twentieth Century. EX-CE-LEN-TES! Recomendo fortemente a sua leitura.

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    2. Obrigado. É um esforço meu e de alguns colegas de contar a história da economia brasileira sob a perspectiva das teorias de crescimento econômico conforme ensinada nas principais escolas do mundo. Sempre me chamou atenção e me incomodou que a história da economia brasileira é contada quase que apenas de perspectivas heterodoxas.

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  3. Roberto a CNI foi contra o Plano Real?

    Acho que vi vc falar sobre isso aqui, mas não estou encontrando. Essa também deve ser uma das estratégias desses industriarios, não?

    Afinal de contas é mais uma das estratégias para a concentração de tenda e redução dos salários.

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    1. O setor industrial não fez o discurso diretamente contra o Plano Real, quem fez este discurso foi o PT e a CUT. Mas ao criticar constantemente a política de juros e de câmbio o setor industrial estava sim criticando o Plano Real. Não lembro de um documento onde a CNI critica diretamente o Plano Real, não é impossível que exista, vou procurar.

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    2. O setor industrial não fez o discurso diretamente contra o Plano Real, quem fez este discurso foi o PT e a CUT. Mas ao criticar constantemente a política de juros e de câmbio o setor industrial estava sim criticando o Plano Real. Não lembro de um documento onde a CNI critica diretamente o Plano Real, não é impossível que exista, vou procurar.

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  4. Professor, esse artigo aqui vai na linha do post e é bem legal:
    http://www.nber.org/papers/w15104

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  5. Uma referência a Charles Dickens? Rs

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