O assunto da semana definitivamente foi a divulgação de uma
pesquisa a respeito da tolerância social à violência contras as mulheres. A
chamada do Estadão é de deixar qualquer um estarrecido e assustado de viver em um
tempo e lugar onde um dos mais tradicionais e respeitados jornais estampa em
letras garrafais: “65% dos brasileiros acham que mulher de roupa curta merece ser atacada”. Fosse um destes
jornais sensacionalistas que circulam nas grandes cidades eu talvez nem tivesse
lido a reportagem, mas não era, de forma que me senti obrigado a ler. Na
leitura outro espanto, a reportagem tinha como fonte uma pesquisa do IPEA. Um
dos institutos de pesquisa mais respeitados do país é quem divulgava esta
informação. É claro que tive de ir à página do IPEA e ler a pesquisa original,
para os interessados o link está aqui.
Era tudo verdade, não vi engano nem sinais de má fé na
reportagem do Estadão. Postei no FB um comentário apontando para os riscos de
governar de acordo com a opinião da maioria. Alguns amigos questionaram a consistência
dos resultados da pesquisa, olhei de novo, agora com mais cuidado, e reparei que
de fato os resultados são estranhos. Como sou um daqueles economistas caretas e
tradicionais que se preocupam com câmbio, crescimento, produtividade, inflação
e outros temas normalmente associados a economistas, eu tive de procurar os
especialistas. Para minha sorte conheço e tenho acesso a dois dentre os
melhores economistas brasileiros que trabalham com temas como violência,
racismos e discriminação: o meu amigo, co-autor e parceiro de tantas batalhas
Adolfo Sachsida e o meu colega de departamento e sala Paulo Loureiro. Como o
segundo está fazendo pós-doutorado no exterior falei apenas com o primeiro. A
conversa foi esclarecedora: existem sérios problemas metodológicos com a amostra
usada para obter o resultado, para os interessados recomendo que vejam o vídeo
onde ele explica estes problemas (link aqui). Tenho algumas dúvidas com a
relação entre roupa e estupro que o Adolfo fala na parte final do vídeo,
voltarei a este ponto mais na frente.
O fato da participação das mulheres ser de 66% na amostra,
como destacou o Adolfo no vídeo, sugere que a amostra não representa as características
gerais da população brasileira. Se a amostra não me permite inferir a
percentagem de mulheres na população brasileira por que permitiria inferir a
opinião da população brasileira sobre a violência contra a mulher? Mas a coisa
é mais grave, independente da qualidade da amostra seria de se esperar que as
respostas fossem consistentes umas com as outras. Como explicar que 81,9% dos
entrevistados concordem que “O que acontece com o casal em casa não interessa
aos outros” e 91,4% concordem que “Homem que bate em mulher tem que ir para
cadeia”? Ou assunto não interessa os outros, entre os quais imagino estar a
polícia, ou o assunto interessa a sociedade, incluindo polícia, juízes e todo o
aparato necessário para colocar alguém na cadeia. Excluindo as hipóteses da
amostra ser composta por loucos e de erro de tabulação dos pesquisadores só me
resta imaginar que os entrevistados não entenderam e/ou não refletiram a
respeito das perguntas. Não é uma crítica aos entrevistados, no final do estudo
do IPEA tem uma série de tabelas com resultados estatísticos e uma delas remete
à questão 41. Confesso que se um entrevistador me pedisse para responder mais
de quarenta questões eu não refletiria sobre cada uma e provavelmente estaria
entre os que concordam com duas opções que deveriam ser excludentes. Se isto é
verdade para algumas perguntas por que não seriam para outras? Inclusive a
questão 15 (Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas)
e a questão 21 (Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos
estupros).
Os autores do estudo percebem estas inconsistências e chegam
a apresentar uma justificativa:
“No entanto, outros resultados da pesquisa, apresentados nesta edição do SIPS, sugerem que a contradição se desfaz ao se considerar que a população ainda adere majoritariamente a uma visão de família nuclear patriarcal, ainda que sob uma versão contemporânea, atualizada. Nessa, embora o homem seja ainda percebido como o chefe da família, seus direitos sobre a mulher não são irrestritos, e excluem as formas mais abertas e extremas de violência. Um homem deve tratar bem sua esposa, e, enquanto o fizer, rusgas “menores” devem ser resolvidas no espaço privado. A esposa, por sua vez, deve “se dar ao respeito”, se comportar segundo o papel prescrito pelo modelo. Mas, se os conflitos se tornarem violentos, o casal deve se separar, a mulher não deve tolerar violência pelos filhos, e, se o marido bater, é caso para intervenção do público na esfera privada.”
Como falei anteriormente sou um economista de dentro da
fronteira do que usualmente se atribui à economia, não domino bem estes temas
que estão na fronteira entre economia e outras áreas. Desta forma não tenho
como avaliar a explicação dos autores, mas me intriga a ausência de um
tratamento estatístico para o problema. Da maneira como foi tratado o problema
parece que a explicação justifica a validade da evidência que, por sua vez,
justifica a validade da explicação. Isso não é bom e espero que o assunto
receba melhor tratamento em futuras versões do estudo.
Volto agora à parte do vídeo do Adolfo que me incomodou: a
relação entre roupa e estupro. Não foi só o Adolfo que tratou desta relação
como um fato e não uma questão de opinião, o assunto gerou inúmeros debates na
internet. Um texto que pega bem esta ideia foi o de Rodrigo Constantino (linkaqui). Basicamente é dito que a mulher com pouca roupa não é responsável pelo
estupro (alguns poucos textos que vi no FB sugeriam que era, confesso que não
os li), mas que a pouca roupa facilitaria e/ou estimularia o estuprador, nas
palavras de Constantino:
“O que quero dizer com isso? Que ninguém tem o direito de estuprar ou roubar, que ninguém “merece” passar por isso, e que a vítima não pode ser transformada em culpado; mas que, feita essa ressalva importante, seria bom manter o realismo e compreender que, nem por isso, devemos dar tantas chances ao azar.
Há estudos e pesquisas, como já comentei aqui, mostrando correlação entre a revolução sexual e o aumento nos casos de estupro. E não é um fenômeno brasileiro, mas mundial. Sexualidade cada vez mais precoce, funk estimulando a vulgaridade, mulheres provocativas rebolando seminuas até o chão, tudo isso atrai estupradores como moscas ao mel.”
Já me peguei em inúmeros debates sobre a validade de
correlações entre variáveis e se da correlação é possível inferir
causalidade, isto com variáveis bem conhecidas como câmbio, inflação, juros,
crescimento e saldo da balança comercial. Para ficar em uma polêmica recente, tenho
várias horas de conversa e várias páginas tecladas em blogs e no FB só sobre a
robustez da relação entre câmbio e crescimento. Daí aparece este argumento de
correlação entre estupro e roupa, algumas vezes apresentados como verdade
científica (?) outras como auto-evidente, sem que me apresentem sequer uma base
de dados onde seja possível estimar a correlação e sem tratar da questão da
causalidade. Quando muito falam que em países mulçumanos tem menos estupros, o
que considero questionável, ou uma relação que também não me impressiona entre
revolução sexual e aumento de estupros. O fato que em vários países muçulmanos
as vítimas de estupro são punidas e o fato que roupas curtas não foram a única
mudança de comportamento do período posterior à revolução sexual já seriam
suficientes para não comprar barato os dois argumentos acima.
Enfim, se é verdade que vi problemas na pesquisa do IPEA que
me levam a duvidar da conclusão que a sociedade brasileira é machista e
aceita a cultura do estupro, também é verdade que me incomodou o argumento que
ousa sugerir a algumas vítimas de estupro que elas podem ter parcela de
responsabilidade do que foram vítimas. Na minha dúvida além dos problemas
metodológicos da pesquisa pesa o fato que no total divulgado a pesquisa mostra
uma sociedade que repudia a violência contra mulher, mesmo a verbal. No meu
incomodo pesa o fato que mesmo que exista a correlação e até mesmo a
causalidade que muitos estão dando como certa isto não é motivo para insinuar
que algumas vítimas de estupro tem qualquer responsabilidade sobre o que lhes
ocorreu. Se tal relação estatística de fato exista a conclusão a se tirar é que
é preciso atacar a origem desta relação, antes de sugerir a uma mulher que use
roupas mais recatadas para evitar estupro eu sugeriria punições draconianas
para estupradores, ou, se fosse o caso, mudaria meus conceitos e consideraria apoiar
até mesmo as feminazes. Ceder ao argumento que intimida uma mulher de usar o
que bem entender é ceder ao mal, isto eu não faço.
Muito obrigado, professor, pelo tratamento sóbrio desse assunto. Já desisti de discutir o tema com outras pessoas pelo simplório fato de que raramente é possível argumentar com alguém que possua uma visão objetiva sobre a situação.
ResponderExcluirMeus parabéns
Excelente artigo!
ResponderExcluirEles erraram na pesquisa kkkkkkk
ResponderExcluirNem pra isso esse governo presta, meu Deus!
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/04/ipea-diz-que-sao-26-e-nao-65-os-que-apoiam-ataques-mulheres.html