Via de regra governos não desejam fazer ajustes fiscais,
talvez seja possível pinçar um ou outro governo em algum país que tenha
escolhido fazer um ajuste fiscal, mas são exceções, o governante típico está
preocupado em permanecer no poder e cortar gastos dificilmente ajuda nesse objetivo.
Temer, assim como Dilma antes dele, certamente não está entre as exceções, o
ajuste fiscal proposto por ambos decorreu dar necessidade e não de escolhas. A
verdade é que desde muito sabemos que o Brasil precisava de um ajuste fiscal, a
primeira tentativa séria, ainda no governo Lula, foi feita pelo ministro
Palocci e derrotada por Dilma, então ministra da Casa Civil. Na sequência vimos
uma série de tentativas tímidas que não tiveram sucesso em ajustar as contas
públicas.
Uma rápida pesquisa na internet revela tais tentativas no
governo Dilma. Em agosto 2011 o Valor anunciava que “Mantega pede sintonia
fiscal entre os poderes para enfrentar a crise” (link aqui). Em 2013 o site O Economista
citava o G1 para dizer que “Mantega pede a presidente da Câmara ajuda no corte
de gastos” (link aqui). Em fevereiro de 2014 o Estadão anunciou que “Mantega
'venderá' ajuste fiscal no G-20” (link aqui). Convido o leitor a procurar mais
exemplos, é fácil. Daí chega a campanha e Dilma resolve negar a necessidade de
ajuste fiscal que o próprio ministro da Fazenda dela vinha pregando nos anos anteriores, em outubro de 2014, no meio da companha para presidente a Exame noticiou
que “Dilma nega fazer ajuste fiscal caso seja eleita” (link aqui). Como entender a mudança?
Política, é claro, Dilma sabia que o ajuste era necessário, mas para quem estava
disposta a fazer o diabo para se reeleger negar que vai fazer o ajuste é
fichinha. Se o leitor duvida de minha interpretação sugiro que dê uma olhada no
que disse o Infomoney em setembro de 2015 em uma matéria com o título “’Você
quer que eu perca eleição?’, rebateu Dilma sobre sugestão de Mantega para
cortes” (link aqui).
Da proposta de Palocci em 2005 à tentativa de ajuste feita
por Levy em 2015 foram dez anos. De 2005 a 2007 perdermos a oportunidade de
ajustar em uma época de bonança, em 2011 perdemos a oportunidade de fazer o
ajuste antes da crise chegar ao PIB, em 2012 e 2013 perdermos a oportunidade de
fazer o ajuste antes da crise chegar no emprego, em 2014, por cálculo eleitoral
de Dilma, perdemos a última oportunidade de fazer a juste antes da crise tomar
conta do país. O cálculo eleitoral funcionou, Dilma foi eleita, mas as consequências
foram desastrosas, inclusive para ela e o partido dela.
Já no final de 2014 o governo foi obrigado a negar o
discurso de campanha e aumentar os juros para tentar controlar a inflação e
cortar direitos de desempregados e viúvas para tentar ajustar o lado fiscal. O
efeito político foi devastador e Dilma começou a caminhada para o impeachment
que se consolidou por conta de fraude fiscal cometida no primeiro mandato dela
e incrivelmente repetida em 2015. O efeito econômico mal foi sentido, tivessem
sido tomadas antes, as mesmas medidas implementadas no final de 2014 poderiam
ter sido vistas como o começo de um ajuste sério e ter surtido os impactos
desejados pela equipe econômica do governo petista. Infelizmente no final de
2014 já era muito tarde, a cárie já tinha chegado na raiz e uma obturação não
era mais suficiente.
Assim chegamos em 2015. Um governo desacreditado com um
ministro acreditado, Joaquim Levy, tentando fazer das tripas coração para
implementar o ajuste fiscal. Como já dizia o professor Mário Simonsen,
infelizmente corações não são feitos de tripas e o esforço de Levy não deu os
resultados desejados. O ano de 2016 começa com a possibilidade concreta de
queda do governo Dilma, na Fazenda toma posse Nelson Barbosa, segundo os
bastidores de Brasília já fazia muito tempo que Dilma o queria como responsável
pela economia. O que Nelson Barbosa fez? Propôs um ajuste fiscal! O leitor
incrédulo pode checar a matéria de dezembro de 2015 da revista Época intitulada
“Nelson Barbosa reforça foco no ajuste fiscal” (link aqui), na própria página do Ministério
da Fazenda em fevereiro de 2016 com a chamada “Governo contingencia R$ 23
bilhões em 2016 e propõe limitar gasto no longo prazo” (link aqui), repare na
proposta de limitar gastos no longo prazo, ou na matéria do UOL de março de
2016 com o título “Conheça as 4 novas medidas fiscais anunciadas pelo governo”
(link aqui). Nesta última são apresentadas as propostas de Barbosa para os
estados, dentre elas destaco: “limitar o crescimento de outras despesas
correntes à variação da inflação.”. Parece familiar?
A longa introdução mostra que a necessidade de ajuste fiscal
no curto prazo e no longo prazo é conhecida dos economistas, inclusive dos
economistas ligados ao PT, notadamente Mantega e Barbosa, muito do que estamos
vendo com economistas dizendo que o ajuste fiscal de longo prazo será o fim das
políticas sociais, o fim do contrato social brasileiro, seja lá o que for isso,
e mesmo o fim do mundo é pouco mais do que teatro mal encenado. A verdade é que
não apenas o ajuste fiscal é necessário como é inevitável. A questão relevante
é como será feito o ajuste fiscal.
Para financiar o gasto crescente o governo pode se
endividar, porém, como já mostrei aqui no blog, para um país emergente nosso
governo está muito endividado (link aqui). A outra opção é aumentar impostos,
não falo desses impostos para animar militância como o imposto sobre grandes fortunas
e sobre heranças, impostos complicados em todo o mundo e ainda mais complicados
em um país onde funcionários públicos que ganham mais de R$ 10.000,00 por mês
acreditam piamente que são classe média baixa. Falo de impostos que realmente
tragam receitas. Apesar de ser um caminho teoricamente possível a elevação de
impostos não me parece provável, nem razoável e nem muito menos desejável. Não
é provável nem desejável porque já pagamos impostos demais no Brasil, não creio
que é razoável pois tenho dúvidas a respeito da capacidade do governo aumentar
arrecadação via aumento de impostos.
A figura abaixo, feita com dados do FMI e considerando
médias entre 2011 e 2015, mostra as receitas do governo como proporção do PIB
em diversos grupos de países e no Brasil. Repare que nossa arrecadação de
33,83% do PIB está acima da média de todos os grupos com exceção dos países avançados
e dos emergentes da Europa.
Sem apelar para dívida ou aumento de receita o governo terá
de escolher entre cortar gastos ou ver a inflação fazer o serviço de ajustar o
lado fiscal. A inflação tem o dom de reduzir o gasto real sem causar tanta
comoção social. Ano passado a maioria das categorias de servidores públicos
federais teve um reajuste de 5,5% contra uma inflação de 10,6%, uma redução de
aproximadamente 5% no salário real sem que escolas e universidades fossem invadias
e a Esplanada dos Ministérios depredada. Em março deste ano o governo adiou o
reajuste dos servidores por cerca de seis meses, reajuste que foi inferior à inflação,
mais uma vez não se viram atos de vandalismo nem ninguém falou de fim de mundo.
Se a inflação faz o trabalho sem tanta sujeira então por que
não deixar que ela resolva o problema? Porque para resolver o problema não
basta uma inflação alta, é preciso uma inflação crescente. Repare que, de
acordo com os dados do FMI, entre os anos de 2011 e 2015 nossa inflação foi, em
média, de 7,06% ao ano. Ficamos muito acima dos países avançados e dos países emergentes
da Europa, aqueles com cargas tributárias próximas às nossa, também ficamos
acima dos países emergentes da Ásia e da América Latina e Caribe (neste último
grupo eu excluí a Venezuela). Definitivamente não temos inflação baixa e mesmo
assim temos um problema fiscal, a razão, nunca esqueçam, é que para fazer
efeito a inflação não precisa apenas ser alta, precisa ser crescente.
Corremos o risco de termos inflação crescente? Sim, foi esse
caminho que ameaçou se impor entre 2015 e 2016. Alguns vão dizer que a inflação
de 2015 foi puxada por preços administrados e câmbio, o que é verdade, mas
sempre existem preços puxando a inflação. O objetivo da política monetária é
impedir que tais preços contaminem os outros em um processo onde todos correm
para não ficar atrás da média e assim puxam a média cada vez mais para cima.
Reparem que nem mesmo as “taxas de juros reais mais altas do mundo”, como alguns
gostam de dizer (há controvérsias!), estavam conseguindo impedir o processo de
contaminação dos outros preços e consequente aumento da inflação. Em parte,
pela ação do Banco Central, em parte, pela mudança nas expectativas após a saída
de Dilma (link aqui) o problema da inflação parece estar momentaneamente
controlado, mas uma virada no câmbio, talvez causada pelo aumento da taxa de
juros nos EUA, pode tirar a inflação de controle novamente.
O processo inflacionário tem sido a principal ferramenta de
ajuste das contas públicas no Brasil. De fato, se consideramos o pós-guerra, só
tivemos inflação razoavelmente controlada a partir de meados da década de 1990,
após o Plano Real. Um dos efeitos colaterais do processo inflacionário é a
redução de renda real de assalariados, pensionistas e beneficiários de
programas sociais. Em geral podemos dizer que todos que não reajustam suas
rendas com frequência alta são penalizados pela inflação, neste grupo estão os
mais pobres. É preciso reconhecer que tal redução de renda dos mais pobres não
parece ter intimidado governos no passado, por ouro lado, nunca tivemos um
conjunto tão amplo de eleitores e tantas formas de expressão e de organização
da sociedade. Será que nossa democracia resiste a um processo inflacionário?
Não sei dizer, mas as manifestações de 2013, a dos vinte centavos, sugerem que
não.
Mas será que um processo inflacionário visto o panorama macro que temos é inevitável? Lembre-se que a União tem queda por ajudar estados quebrados. Não é só o lado fiscal desses estados, mas o sistema previdenciário do funcionalismo estadual. São problemas que se retroalimentam, pois como os fundos de pensão estaduais não dão conta do recado, reta ao tesouro estadual bancar parte da conta das aposentadorias dos servidores. Esse artigo poderia ter uma versão II comentando a decisão do Meirelles em abrir a porteira para os estados captarem dinheiro no exterior.
ResponderExcluirEu sinto que não há saída a não ser vivermos em uma estagflação. Lendo. a entrevista do Paulo Rabello na Folha sobre o risco de estagnação bateu em mim uma sensação de déjavù. Uma economia estagnada somada a inflação alta (ou pelo menos persistente). Não seria hora das academias de economia retirarem dos armários o livro empoeirado de Inácio Rangel, Economia Brasileira dos anos 60, em que comprova repiques inflacionários em ambiente de reduzida atividade econômica?