quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Faz sentido as compras do mês estarem tão mais caras e a inflação tão baixa?

Basta ligar a TV no horário de algum jornal para termos notícia do aumento dos preços nos supermercados pelo Brasil, ainda assim a inflação acumulada no ano medida pelo IPCA está em menos de 1%, para ser preciso em 0,7%. Se “tudo” fica mais caro como pode a inflação estar tão baixa? Isso acontece porque a inflação é uma média de preços e, por incrível que pareça, nem tudo está ficando mais caro.

Essa é uma questão que aparece todo ano, mas neste ano ganhou mais força por conta da pandemia. Com as medidas de isolamento o padrão de consumo mudou de forma que estamos consumindo mais alimentos, grupo com grande aumento de preços, e menos transportes, grupo com queda de preços, o resultado é que a inflação do que realmente consumimos fica maior do que a inflação captada pelo IPCA. O fenômeno acontece em outros países, Alberto Cavallo, da Harvard Business School, avaliou as mudanças no consumo em vários países e constatou que, via de regra, a inflação do que consumimos na pandemia é maior do que a inflação medida com cestas de consumo tradicional (link aqui).

Se detalharmos o IPCA fica mais fácil entender o fenômeno. Para calcular a variação dos preços o IPCA considera nove grupos: Alimentação e bebidas (peso 20,05); Habitação (peso 15,64), Artigos de residência (peso 3,74); Vestuário (peso 4,45); Transportes (peso 19,64); Saúde e cuidados pessoais (peso 13,62); Despesas pessoais (peso 10,70); Educação (peso 6,39) e Comunicação (peso 5,8). O peso de cada grupo representa o quanto os bens e serviços do grupo pesam no orçamento de uma família média de acordo com o público alvo do índice que são famílias com renda de um a quarenta salários mínimos que vivem nas regiões metropolitanas selecionadas. A figura abaixo mostra a variação dos preços de cada grupo no acumulado do ano.


 Em 2020 os preços do grupo Alimentação e bebidas aumentou 4,91%, é muito, para comparação a meta de inflação para todo o ano de 2020 é de 4%. Por outro lado, o grupo de transportes teve queda de 3,46% no acumulado do ano, ou seja, está mais caro comer e está mais barato sair de casa. Ocorre que continuamos comendo e estamos saindo bem menos de casa, por isso o aumento de preços percebido, alguém pode dizer relevante, é maior que o medido pelos índices de preços aos consumidores como é o caso de IPCA.

Para ilustrar melhor o fenômeno a figura abaixo mostra o aumento de preços acumulado no ano para cada subgrupo do IPCA. O maior aumento ocorreu em Joias e bijuterias que é um subgrupo com peso baixo, apenas 0.21, no orçamento, a maior queda ocorre em Móveis e utensílios que tem peso 1,70 no orçamento. Se consideramos os subgrupos mais relevantes o que tem mais impacto é Transportes (peso de 19,64) que teve queda de preços de 3,46% em 2020, o que puxa o IPCA bem para baixo. Por outro lado, o subgrupo com segundo maior peso é Alimentação no domicílio (peso 14,07) com aumento de 6,10% no acumulado do ano. É esse aumento preços que sentimos nos supermercados.

 

Desagregar mais do que subgrupos talvez atrapalhe mais do que ajude no ponto desse post, os interessados podem checar os dados do IPCA do IBGE para os 51 itens e 377 subitens do IPCA. Aqui vou abrir os itens do grupo “Alimentação e bebidas” e os subitens do grupo “Transporte”. A escolha dos grupos foi por ocuparem os extremos, maior aumento e maior queda de preços. A razão de um ser avaliado por itens e outro por subitens é que o primeiro tem 17 itens e 168 subitens enquanto o segundo tem 3 itens e 28 subitens.

No grupo Alimentação e bebidas o maior aumento de preços no acumulado do foi de 20,77% ocorreu no item “Tubérculos, raízes e legumes”, seguido por 18,87% no item “Cereais, leguminosas e oleaginosas” e 13,86% no item “Frutas”. O único item do grupo com queda de preços no acumulado do ano foi “Carnes” com queda de 1,89%, desta forma se o leitor for vegetariano o aumento de preços está ainda pior do que para quem como carne. A figura abaixo ilustra esses dados. Só para atiçar a curiosidade do leitor informo que o subitem com maior aumento de preços no ano foi “Manga”, crescimento de 61,63%, a maior queda foi no subitem “Abacate”, 22,49%, seguido por “Filé-mignon” com queda de 18,44%, a turma do churrasco talvez queria saber que a “Alcatra” e “Contrafilé” tiveram queda de 12,31% e 8,31%, respectivamente, no acumulado do ano.

 

No caso do grupo “Transportes” dos itens tiveram queda de preço e um teve aumento no acumulado do ano. As quedas ocorreram em “Transporte público”, 12,57%, e “Combustíveis (veículos)”, 6,61%, enquanto o aumento ocorreu em “Veículo próprio” e foi de 0,96%. Como o grupo não tem muitos subitens deu para listar a variação de preços acumulada no ano para cada um dos subitens, o resultado está na figura abaixo. A grande queda de preços, 57,86%, ocorreu no subitem “Passagem aérea” seguida pela queda de 23,89% em “Transporte por aplicativo”. Também tiveram quedas de preços o etanol, os seguros voluntários de veículos, o óleo diesel, o aluguel de veículos, os ônibus interestaduais, a gasolina, o gás veicular e os automóveis usados. Os preços dos pneus aumentaram 5,5% no acumulado do ano, até aí sem grandes problemas, mas os aumentos de preços no metrô, 4,74%, transporte escolar, 4,13%, e ônibus intermunicipais, 3,14%, podem ter mais impacto nos bolsos de várias famílias.

 


Como o leitor pôde observar os preços dos diversos bens e serviços que compõem o IPCA tiveram comportamentos distintos neste ano, até aqui nada demais, o que parece ter causando confusão é a mudança de cesta de consumo por conta da pandemia que não está sendo devidamente considerada nos pesos do IPCA. Outra preocupação legítima é se o aumento de preços em alguns grupos vai acabar chegando nos outros grupos. É normal que os diferentes preços tenham comportamentos distintos, ainda mais diante de um choque tão forte quando a pandemia de Covid-19. Destes movimentos que aparecem as variações nos preços relativos que guiam o mercado. Se a política monetária for bem conduzida a história acaba aqui sem maiores consequências, do contrário pode ocorrer uma corrida de preços que alimenta um processo inflacionário. A disparada dos preços no atacado (ver aqui), que não entram em índices de preços aos consumidores como o IPCA, pode ser muito mais perigosa para acionar um processo inflacionário do que a forte subida nos preços dos alimentos, mas nada que uma boa política monetária não possa resolver. A bola está com Roberto Campos e a turma do Banco Central, alô rapaziada, prestem atenção que o jogo é sério e a tal capacidade ociosa sozinha não vai dar conta de garantir o resultado.

 

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Contas nacionais do segundo trimestre de 2020: a queda!

O IBGE divulgou as contas nacionais referentes ao segundo trimestre de 2020 (link aqui). Como esperado, os efeitos da Covid-19 na economia aparecem de forma clara nos números do PIB. Não apenas na queda de 9,7% do PIB em relação ao trimestre anterior, a maior queda da série iniciada em 1996, como na revisão dos dados do primeiro trimestre que mostraram que a queda do PIB daquele trimestre em relação ao anterior foi de 2,5% e não de 1,5%. Para o leitor ter uma ideia do tamanho do estrago causado pela Covid-19, a maior queda registrada na série era de 3,8% ocorrida no quarto trimestre de 2008 por conta da crise financeira. No ranking das quedas a pandemia tem o primeiro lugar, 9,7% neste trimestre, e o terceiro lugar, 2,5% no primeiro trimestre deste ano.

O impacto da pandemia torna difícil, talvez impossível, analisar os dados do segundo trimestre na perspectiva da dinâmica de crise e recuperação que costumo usar nos posts sobre contas nacionais. O máximo que pode ser feito é mostrar o tamanho da crise, avaliar como os diferentes setores da economia foram afetados e como o tombo do PIB foi distribuído entre os componentes na despesa, especialmente consumo das famílias, consumo do governo e investimento.

A figura abaixo mostra o crescimento da economia desde 1996, as barras mostram o crescimento em relação ao trimestre anterior (com ajuste sazonal) e a linha mostra o crescimento acumulado em quatro trimestres. No acumulado houve uma queda 0,9%, mas a última barra dá uma noção relativa do tamanho da queda de 9,7% no segundo trimestre. É fácil observar na figura como a queda de 9,7% destoa do resto da série, mesmo que a economia volte a crescer nos próximos trimestres será necessário algum tempo para termos ideia do tamanho do impacto da crise causada pela pandemia na economia como um todo.

 


Quem acompanha o blog sabe que faço a discussão pelo lado da produção, a análise da despesa, preferida por vários colegas de profissão, é interessante para entender como foi a distribuição do PIB. É certo que é importante saber essa divisão, na parte final do post trato do assunto, mas, creio eu, faz mais sentido começar analisando de onde veio o que foi produzido. A figura abaixo mostra o crescimento dos grandes setores da economia. No acumulado de quatro trimestres a agropecuária, que no segundo trimestre de 2020 respondeu por 8,5% do valor agregado e 7,6% do PIB, cresceu 1,5%; o setor de  serviços, 72,1% do valor agregado e 64,4% do PIB, teve uma queda de 2,2%; finalmente, a indústria, que responde por 19,5% do valor agregado e 17,4% do PIB, teve uma queda de 2,6%. As características específicas da agropecuária fizeram com o que setor “escapasse” da pancada que a epidemia deu na economia. Na comparação com o trimestre anterior a agropecuária cresceu 0,4%, a indústria teve uma queda de 12,3% e nos serviços a queda foi 9,7%.

 


No acumulado de quatro trimestres a construção teve queda de 1,6%. Na indústria de transformação a queda foi de 5%. Ao contrário de outros períodos onde a queda na indústria de transformação podia ser vista como parte da arrumação de casa após a sequência de investimentos questionáveis, para dizer o mínimo, da primeira metade da década., esta queda reflete o impacto brutal da pandemia no setor A indústria extrativa teve crescimento de 4,7%. Na comparação com o trimestre anterior a construção teve queda de 5,7%, a indústria extrativa teve queda de 1,1% e na indústria de transformação a queda foi de 17,5%.

 


Nos serviços o maior crescimento novamente ficou por conta do setor de atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados que cresceu 2,5% no acumulado de quatro trimestres. Também foi registrado crescimento de 1,8% no setor de informação e comunicação e de 1,6% nas atividades imobiliárias. Administração, defesa, saúde e educação públicas e seguridade social teve queda de 2,3%. A figura abaixo mostra o crescimento no setor de serviços. Na comparação com o trimestre anterior apenas e atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados e atividades imobiliárias tiveram crescimento de 0,8% e 0,5%, respectivamente.

 


Por fim, passemos a análise pelo lado da demanda, ou seja, como foi distribuída a produção do país. O investimento, a parte do produto destinada a criar mais produto no futuro, teve queda de 2,1% no acumulado em quatro trimestres. Em tempos normais isso seria preocupante, pois sugeriria redução da capacidade de produção nos próximos períodos e pouca confiança no futuro da economia, em tempos de pandemia o resultado pode ser visto como um adiamento do investimento para o pós-pandemia.

O consumo das famílias caiu 2,5% e o consumo do governo caiu 2,4%, ou seja, a fatia do bolo que vai para as famílias caiu pouco mais do que a fatia que vai para o governo, cabe lembrar que parte do consumo do governo se dá para ofertar bens públicos às famílias.. As exportações caíram 2,8% e as importações caíram 1,8%. Na comparação com o trimestre anterior o investimento caiu 15,4%, o consumo das famílias caiu 12,5%, o consumo do governo caiu 8,8%, as exportações subiram 1,8% e as importações caíram 13,2%.

 


Os números das contas nacionais mostram que a pandemia do coronavírus interrompeu o processo de lenta recuperação que vínhamos seguindo desde 2017. Se essa interrupção será temporária ou se é o começo de uma nova crise mais duradoura só o tempo vai nos mostrar. Se o governo conseguir manter o compromisso com as reformas e com o esforço de ajuste fiscal, ainda mais difícil por conta dos gastos para enfrentar a pandemia, voltaremos ao cenário de 2019 com a recuperação lenta e segura, e possível um pico de crescimento em 2021 por conta da recuperação do choque de 2020, mas nada de muito impressionante. Se o governo partir para políticas de estímulos turbinadas por planos como o Pró-Brasil, Casa Verde e Amarela e uso de estatais podemos até ter bons números para o PIB em 2021, mas começaremos outra caminha em direção ao abismo. Caminhada que será ainda mais dolorosa se o governo abandonar de vez o compromisso com o lado fiscal seja por conta de demandas corporativas como os aumentos e benesses para militares ou em razão de programas interessantes como o Renda Brasil. A sorte está lançada.