quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sobre a dupla natureza da crise econômica

Tenho feito algumas palestras a respeito da crise atual onde tento explicar como chegamos a uma situação tão grave. Minha primeira tarefa é convencer a audiência que vivemos de fato uma crise grave, com potencial para ser a mais grave de nossa história. Não sou o único que pensa assim, de fato o próprio ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmou que a crise atual pode ser mais grave que a da década de 30 do século passado (link aqui), um período em que o mundo passava pela Grande Depressão. O leitor ainda cético pode se interessar pela figura abaixo, nela estão as taxas de crescimento do PIB desde 1901 (dados do Ipea de 1901 a 2013, para 2014 e 2015 usei dados do IBGE, para 2016 usei a projeção do Boletim Focus do BC), repare que apenas duas vezes tivemos dois anos seguidos de queda do PIB, a primeira foi em 1930/31 e a segunda será 2015/16. Para piorar repare que em 1929 o PIB cresceu 1,1% enquanto em 2014 o PIB cresceu 0,1%, não fosse uma mudança no método de cálculo do PIB teríamos tido crescimento negativo também em 2014, no que seria a primeira vez de nossa história com três anos seguidos de queda no PIB.




Como um país que em 2010 cresceu 7,5% e parecia ser um dos motores do crescimento mundial entrou em uma crise tão grande em menos de cinco anos? Esta é a pergunta que tento responder em minhas apresentações, não é uma questão apenas acadêmica, o diagnóstico para a crise atual fornece a estratégia para superar a crise, um diagnóstico errado leva a “soluções erradas” que podem prolongar e/ou aprofundar a crise. Para entender o que aconteceu com nossa economia é preciso considerar que não vivemos apenas uma crise, são duas crises, não estou falando de uma crise política e uma crise econômica, estou falando de duas crises econômicas. Repare que não nego a existência de uma crise política, apenas registro que além de quaisquer outras crises (política, moral, de valores, institucional e etc) que possam existir temos duas crises econômicas. A primeira é de médio e longo prazo e está na nossa baixa produtividade, na baixa taxa de crescimento da produtividade e baixa taxa de investimento. A segunda, de curto prazo, está caraterizada no desequilíbrio fiscal e na necessidade de controlar a inflação.

A crise de longo prazo e está associada a estrutura da economia e da sociedade brasileira. Para que a entendamos devemos considerar que para uma economia crescer é necessário que as pessoas trabalhem mais, e/ou que as empresas acumulem mais capital, e/ou que o capital e o trabalho existentes sejam usados de formas mais eficientes. Um dos resultados fundamentais da teoria do crescimento econômico é que no longo prazo o crescimento é explicado em sua maior parte pelo aumento da eficiência no uso do capital e/ou do trabalho, ou seja, pelo aumento da produtividade. Não vivemos melhor que nossos avós porque trabalhamos mais ou porque temos mais capital, vivemos melhor porque somos mais eficientes. A eficiência a que me refiro aqui não é necessariamente decorrente de novas tecnologias, longe disso, falo de qualquer coisa que permita obter mais produto com as mesmas quantidades de capital e trabalho. Como dizem alguns chefs modernos: menos é mais.

Pois bem, a produtividade da economia brasileira está estagnada a quase quarenta anos. Apresentei esse resultado em um artigo publicado na Revista Estudos Econômicos em parceira com Pedro Ferreira e Victor Gomes (link aqui), em um capítulo de livro publicado pelo IPEA (link aqui) e em um outro artigo a ser publicado pela Revista de Economia Aplicada. Nos trabalhos usos metodologias diferentes para calcular produtividade e sempre chego ao resultado de quase estagnação. Outros autores chegaram ao mesmo resultado usando ainda outras metodologias, uma boa coletânea de estudos sobre produtividade está no livro do IPEA que acabei de citar. A figura abaixo resume o que estou dizendo, note que nossa produtividade cresce bem menos que a dos EUA e a da Coreia do Sul, um país que já era rico e, por ser a economia líder, precisa de inovar para ficar mais produtivo e um país que é um exemplo de crescimento no período.




O leitor desconfiado pode questionar a escolha de países ou a medida de produtividade (feita a partir de dados da Penn World Table). Para acalmar o leitor ofereço uma comparação de nossa produtividade com a de vários outros países. No lugar da produtividade total dos fatores que utilizei na figura acima vou usar a produtividade do trabalho, um conceito simples que mede o quanto é produzido por um trabalhador em um determinado período. No lugar de comparar com um milagre de crescimento e com a economia líder comparo com quatro grupos distintos: países da América Latina, OCDE, países com PIB per capita próximo ao nosso e países com relação capital trabalho próximas a nossa. A figura abaixo mostras as comparações (mais sobre as figuras aqui), comparando com os países da América Latina ficamos em antepenúltimo, com os da OCDE ficamos em último, com os de PIB per capita próximos ao nosso ficamos em antepenúltimo e com os de relação capital trabalho próximas a nossa ficamos em penúltimo. Se nem assim o leitor está convencido que temos um problema de produtividade peço que leia um dos textos citados acima, se ainda não ficar convencido ou se não quiser ler os textos talvez seja o caso de parar por aqui e aceitar meus pedidos de desculpas pelo tempo que o fiz perder.




Lá por 2010 falar que tínhamos um problema de produtividade era aceitar um convite para ser chamado de doido, ou, se o crítico era um amigo, de um sujeito estranho. A economia crescia, o investimento crescia, o consumo crescia, a pobreza e a desigualdade diminuíam; só um sujeito muito chato podia falar que tínhamos problemas, ainda mais que tínhamos problemas graves. Hoje não é mais assim, vários economistas, inclusive os que reclamavam dos chatos, reconhecem que temos um problema de produtividade. Infelizmente esse (quase) consenso em torno da existência do problema não resolveu a questão, pelo contrário, criou uma oura questão sobre como resolver o problema da produtividade. Grosso modo podemos falar de duas estratégias para resolver nosso problema de longo prazo: a estratégia reformista e a estratégia desenvolvimentista.

A estratégia reformista foca em melhora no ambiente de negócios, na educação, reformas na legislação que tornem as instituições mais eficientes (e.g. redução da insegurança jurídica e do compadrio), abertura da economia e estabilidade macroeconômica (equilíbrio fiscal e controle da inflação). De uma forma rápida podemos dizer que os reformistas querem facilitar a criação e o crescimento das empresas, porém sem direcionar o processo. Deixe a terra fértil e, cedo ou trade, as pessoas saberão o que plantar. A estratégia desenvolvimentista busca direcionar a economia para o setor que seria o polo dinâmico da tecnologia e do crescimento da produtividade, tal setor a indústria. Para isso o governo direciona o investimento por meio de juros subsidiados, protege a indústria local por meio de tarifas e/ou políticas de desvalorização do câmbio, faz desoneração tributária de setores que considera importante, intervém em preços críticos como juros e energia e etc. Diga o que plantar que mesmo uma terra pouco fértil vai prosperar.

Note que as duas estratégias não são totalmente exclusivas, por exemplo, existem desenvolvimentistas que valorizam a estabilidade macroeconômica e existem reformistas que defendem juros subsidiados para setores estratégicos ou intervenção no câmbio. Porém, mesmo não sendo totalmente incompatíveis, as estratégias definem linhas e atuação diferentes que se refletem em um conjunto de políticas diferentes.

Pelo menos desde o pós-guerra o Brasil apostou na estratégia desenvolvimentista (tenha em mente que isso não exclui toda e qualquer medida reformista), o aparente sucesso da estratégia a tornou quase uma unanimidade. De radicais de esquerda que viam no desenvolvimentismo o caminho para criar a classe operária que faria e revolução a grandes empresários mirando nos ganhos propiciado pelo capitalismo de compadres, passando por tecnocratas encantados com o poder adquirido e políticos corruptos de olho nos ganhos de estado grande, todos tinham motivos para apoiar as políticas desenvolvimentistas. A crise da década de 1980, combinando recessão com inflação descontrolada, acabou com o encanto desenvolvimentista. Na década de 1990 o Brasil (o fenômeno foi observado em outros países da América Latina) apostou em uma agenda reformista. Apesar de acabar com estagnação de mais de uma década, controlar a inflação e testemunhar a queda na pobreza e na desigualdade a estratégia reformista foi abandonada na primeira década do século XXI. Como costuma ser o caso é praticamente impossível dizer exatamente quando a estratégia foi abandonada. Vou considerar que foi em 2006, mas se o leitor acredita que foi um pouco antes ou u pouco depois eu não tenho nada a reclamar.

A volta do desenvolvimentismo ocorreu em duas etapas. A primeira, um período de transição, ocorreu entre 2006 e 2010 e foi caracterizada pelo PAC, com o governo induzido o crescimento, com o reforço do BNDES, com o governo financiando o investimento, e com a política de conteúdo nacional, particularmente na extração de petróleo. A segunda fase, a época da Nova Matriz, mantém e/ou amplia as políticas da fase de transição de acrescenta a tentativa reduzir juros para estimular investimento, desvalorizar o câmbio para estimular a indústria, política fiscal anticíclica, controle de preços para estimular a economia (e.g. energia) ou para combater a inflação (e.g. combustíveis). A confiança nas novas políticas, que podemos chamar de contrarreformas, era tão grande que a presidente Dilma tomou posse em 2011 prometendo ser a presidente do PIBão.

Deu tudo errado. A despeito do BNDES ter se tornado o segundo maior banco de investimento do mundo, superando o Banco Mundial e só perdendo para o Banco de Desenvolvimento da China, a taxa de investimento do Brasil não disparou, pelo contrário, andou bem perto da de outros países do continente que não possuem um BNDES e depois despencou. A figura abaixo mostra como os mais de R$ 200 bilhões por ano desembolsados pelo BNDES parece ter sumido. Antes que alguém fale de corrupção eu aviso que não é isso, ou não é só isso, muito provavelmente os empresários que pegaram dinheiro no BNDES estavam dispostos a investir mesmo sem ajuda do banco, porém se podem pegar dinheiro a juros mais baixos não tinham porque não pegar, ou seja, houve uma substituição da fonte de financiamento do investimento, por isso nosso investimento não destoa do de outros países (mais detalhes aqui). Se não tiveram efeito aparente sobre o investimento os empréstimos do BNDES tiveram efeito sobre a consta do governo, parte da nossa crise fiscal está nos gastos do Tesouro para custear a diferença entre os juros que o governo paga e os juros que o governo empresta, a diferença, por vezes chamada de bolsa empresário é bem maior que a bolsa família.




A estratégia de câmbio também não deu resultado, pior, ao abandonar o regime de câmbio flexível o governo passou a pagar os custos de administrar o câmbio. Primeiro a intenção era desvalorizar, depois, assustados com a inflação, o esforço era para não ocorrer uma desvalorização brusca, que além de aumentar a inflação poderia complicar a vida de bancos e de algumas empresas como uma certa campeã nacional. A tentativa de baixar juros na marra também não funcionou, assim como no câmbio o governo foi obrigado e recuar deixando estragos sem benefícios. O mesmo pode ser dito da desastrada intervenção no setor de energia, no lugar da prometida queda nos preços uma série de aumentos de preços para evitar o colapso do sistema. A figura abaixo mostra um retrato do fracasso da tentativa de estimular a indústria, a participação da produção da indústria continuou caindo (os dados do ipeadata vão até 2013, mas, para os mais esperançosos, aviso que a queda continuou em 2014 e 2015) apesar de todo o esforço do governo. Mais uma vez a política desenvolvimentista não cumpriu o que prometeu, mas deixou custos que colaboraram para a crise fiscal que vivemos.




Eu não vejo a queda da participação da indústria de transformação no PIB como um problema, de fato, em tempos modernos é muito difícil separar a indústria do setor de serviços e mais difícil ainda localizar um ou outro como polo dinâmico tecnológico, seja lá o que for isso. Não são poucas as indústrias com modelos de negócios onde o lucro vem mais de serviços de manutenção do que da venda de equipamentos, não sei porque isso é um problema. De toda forma vários economistas desenvolvimentistas tem uma devoção a esta variável ainda maior pela que têm ao câmbio. Foi em nome desta variável que muitas das políticas que não deram resultados, mas deixaram uma conta salgada, foram implementadas. Aqui existe uma grande ironia que não resisto à tentação de registrar. O México apostou em uma estratégia de integração econômica com os EUA, não faltaram economistas desenvolvimentistas decretando o fim da indústria de transformação mexicana. A figura abaixo mostra o tamanho do erro, olhando a figura acima e a figura abaixo creio que nossos industriais têm todos os motivos para pedir a Deus que os protejam dos que os querem defender. Em tempo, antes de vir com conversa de maquiladoras lembre de como nosso governo comemorou a vinda da Foxconn para o Brasil e dê uma outra olhada no México para ver o que mudou por lá nos últimos dez anos.




Como todo brasileiro sabe a agenda desenvolvimentista que inspirou a Nova Matriz fracassou em entregar o crescimento prometido (claro que nem todo desenvolvimentista apoiou tudo da agenda, etc, etc, e etc, mas é impossível negar de onde veio a inspiração das contrarreformas), porém o fracasso não nos dispensou de pagar a conta que chegou na forma de uma crise fiscal e de uma inflação alta. Antes de gritar que nossa dívida é baixa comparada à do Japão ou a de outros países ricos tente encontrar um país em desenvolvimento que esteja confortável com uma dívida maior que 70% do PIB (mais sobre o assunto aqui), a figura abaixo pode te ajudar. A combinação da crise no rastro da Nova Matriz e nossa estagnação da produtividade causou a crise gigantesca em que estamos.




Negar as causas internas e responsabilizar o resto do mundo por nossa crise é uma atitude infantil, se o leitor dúvida basta olhar o que está acontecendo no resto do mundo. A figura abaixo mostra as projeções de crescimento feitas pelo FMI para todos os países do mundo (uma versão de 2015 da figura está aqui). A grande maioria dos países vai crescer este ano, dos que vão encolher, apenas cinco países devem encolher mais que o Brasil: Equador, Macau (não é exatamente um país, mas está na base do FMI), Guiné Equatorial, Sudão do Sul e Venezuela; uma busca rápida por cada um dos países na internet mostra ditaduras (Venezuela, Equador e Guiné Equatorial, os dois primeiros fazem parte do time dos bolivarianos) e guerra civil (Sudão do Sul). Os números são claros: a crise é nossa.




Sendo a crise o resultado da soma duas crises serão necessárias duas categorias de medidas para que saiamos da crise. O primeiro conjunto de medidas deve focar no longo prazo. Falo de reformas que melhorem o ambiente de negócios com simplificação e redução de regulação e processos burocráticos, inclusive com aumento da transparência e eficiência da justiça; de uma reforma completa na educação desde o financiamento até a organização didático- pedagógica de nossas escolas, sim, esta reforma vai enfurecer os sindicatos, inclusive o meu; reforma na saúde focando financiamento e procurando métodos mais eficientes de gestão hospitalar bem como priorizando a saúde preventiva e uma reforma da previdência que amorteça os efeitos das mudanças demográficas. O segundo conjunto de medidas deve consistir em um ajuste fiscal e a retomada do controle da inflação e da credibilidade do Banco Central. O ajuste fiscal deve romper com a estratégia de elevar a carga tributária, é preciso repensar toda a estrutura do gasto público, devemos trocar o “dá bilhão?” pelo “é realmente necessário?” quando da avaliação do gasto público. O controle da inflação vai exigir que o BC pare de apelar para sorte ou tentar terceirizar o trabalho dele e assumir as rédeas da política monetária, se for o caso de ter de aumentar ainda mais a taxa de juros, que seja. Não fazer agora significa um aumento ainda maior da taxa de juros em um futuro onde se deseje controlar a inflação. Sim, estou propondo a volta da agenda reformista!


9 comentários:

  1. Qual é a justificativa teórica para subir os juros após uma queda de quase 10% no PIB per capita? Hiato do produto? Excesso de demanda?

    Roger

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  2. juros é o preço do dinheiro. Ninguém confia na banânia.

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  3. Texto bem didático. Parabéns.

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  4. Um dos melhores textos que li neste ano. Parabéns!

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  5. Professor Ellery, conheço seu blog recentemente a ele é simplesmente fantástico quanto ao conteúdo. Deus texto também são publicados no Facebook? Adoraria segui-lo lá, pois não tenho usado o Google +.

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    1. Obrigado. Sim, sempre compartilho no FB e também faço comentários rápidos por lá.

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