domingo, 17 de agosto de 2014

Elegia para um Tripé

Apesar dos esforços na direção de uma teoria unificadora a abordagem padrão de macroeconomia nos força a pensar em termos de curto prazo e longo prazo. O desafio de longo prazo é fazer com que renda per capita do país aumente, mais recentemente a distribuição de renda e a redução da pobreza se juntaram ao desafio do longo prazo. No curto prazo o desafio é manter o nível e emprego sem criar desequilíbrios que venham a gerar problemas nas contas públicas e/ou na inflação. Boa parte do meu interesse enquanto economista está na macroeconomia de longo prazo, mas é inevitável abordar temas relativos ao curto prazo. Até porque as dinâmicas de curto e longo prazo não são apartadas, se na ânsia de evitar o desemprego um governo coloca a economia em uma trajetória de inflação e descontrole fiscal é quase certo que isto levará a problemas no longo prazo. A experiência brasileira a partir de meados da década de 1970 e a crise da década de 1980 ilustram bem como medidas ruins de curto prazo podem comprometer o longo prazo.

No que tange ao longo prazo o Brasil conseguiu reduzir a desigualdade e a pobreza, ainda não encontramos o caminho para o crescimento sustentado no longo prazo. Mas no momento é o curto prazo que me preocupa. Durante aproximadamente dez anos parecia que tínhamos encontrado a receita de como administrar o curto prazo de forma que pudéssemos voltar às atenções para o longo prazo. Porém em 2011 a presidente Dilma resolveu trocar a receita que vinha dando certo. Os objetivos anunciados para justificar a troca de receita não foram alcançados. A promessa que a troca de receita aumentaria a taxa de investimento e aumentaria a participação da indústria no PIB não foi cumprida, pelo contrário, tanto a taxa de investimento quanto a participação da indústria no PIB estão menor do que estavam em 2010. Como desgraça pouca é bobagem a inflação está maior, o governo está gastando mais com serviço da dívida pública, o saldo negativo em transações correntes está crescendo perigosamente e a taxa de desemprego está se sustentando pela saída de pessoas da força de trabalho e não pela geração de empregos. Como tanta coisa pode ter dado errado?

Para responder é preciso falar mais a respeito da antiga receita, conhecida como tripé macroeconômico. A estabilização da economia em 1994 encerou um longo período de hiperinflação, mas deixou um problema nas mãos do governo: como financiar os gastos públicos. A Constituição de 1988 criou uma série de novas responsabilidades para o governo e era necessário financiar essas responsabilidades sem recorrer ao financiamento inflacionário. Como o aumento da carga tributária não foi suficiente para financiar os novos gastos a saída foi recorrer ao endividamento. O problema é que dívida tem custo e para financiar este custo é preciso se endividar ainda mais. Tudo ficou ainda mais complicado porque o Plano Real previa que o câmbio ficasse preso em um determinado intervalo, era o chamado regime de bandas cambiais, e o governo começou a ter de elevar juros para atrair capital do resto do mundo e assim não permitir que o câmbio saísse do intervalo proposto. A combinação foi explosiva, em 1999 o serviço da divida pública chegou a 10,4% do PIB.

Era preciso encontrar uma maneira de desatrelar o real do dólar de forma que a taxa de juros não mais fosse determinada para manter uma dada taxa de câmbio, o risco era que sem o dólar segurando o real a inflação voltasse. A saída foi o que chamamos de tripé macroeconômico. A primeira perna do tripé era a taxa de câmbio flutuante, com isso o BC não mais precisaria elevar os juros toda vez que houvesse uma pressão para desvalorizar o real. A segunda perna do tripé consistia na exigência de uma disciplina fiscal capaz de reduzir o custo com os serviços da dívida, o meio encontrado foram os famosos superávits primários. Mas e a inflação? Resolver o problema do custo da dívida e do câmbio permitindo o descontrole da inflação levaria o Brasil de volta a 1993 e tornaria inútil todos os sacrifícios de 1994 a 1998. A saída foi a terceira perna do tripé, a parte mais complexa da receita. O Banco Central, presidido por Armínio Fraga, adotou a política de metas para inflação. Tal política decorria de avanços recentes na macroeconomia e não tinha sido muito testadas em outros países. Como era muito importante manter a confiança no real para evitar a volta inflação adotamos uma versão bem estrita do regime de metas: a única meta do BC era a de inflação, ou seja, o BC não estaria “preocupado” com emprego ou com crescimento e o período de convergência para meta foi fixado como 12 meses.

A figura abaixo ilustra a história que contei e como o tripé mudou os rumos da economia. De 10,4% do PIB em 1999, ano que o tripé foi adotado, o serviço da dívida caiu para 2,2% do PIB em 2010, último ano do tripé. Em março de 2014, quatro após o abandono do tripé, o serviço da dívida já tinha subido para 3,4% do PIB. A história pode ser contada por outras variáveis, o leitor do blog já viu a história sendo contada por meio dos descompassos entre oferta e demanda (link aqui) e várias vezes por meio da inflação. Voltemos então à pergunta: como tanto coisa pode ter dado errado? A resposta é simples: tanta coisa deu errado por termos destruído tudo que impedia tantas coisas de dar errado.



Primeiro veio o abandono da segunda perna, a dos superávits primários grandes o suficiente para estabilizar a dívida pública. Esta perna foi abandonada já em 2008 por conta da crise financeira. Se é ou não é adequado usar política fiscal para reduzir os efeitos de uma crise é uma questão que divide macroeconomistas e que não vou explorar aqui, porém insistir na política fiscal mesmo após a estabilização do emprego é uma estratégia que poucos macroeconomistas recomendaria, estou sendo generoso. Depois caiu a primeira perna, o regime de câmbio flutuante. O governo Dilma comprou a tese que o câmbio deve ser o que equilibra a indústria, mais uma invenção de economistas que (quase) ninguém consegue sequer calcular, e iniciou uma política de desvalorização do real. Quando a inflação começou a incomodar o governo tentou reverter a política e agora o BC está gastando dinheiro do contribuinte para impedir que o câmbio desvalorize ainda mais. A verdade é que o câmbio foi de R$ 1,60 para R$ 2,40 sem entregar nada do que havia sido prometido em caso de desvalorização cambial. O governo Dilma também abandonou o regime de metas de inflação, pelo menos o regime tal como estabelecido no Brasil. Mas a inflação não ficou dentro da meta em todo o governo Dilma? Sim. Mas esta não é a questão. O regime de metas é um compromisso entre a sociedade e o BC que determina que este último fará tudo que está a seu alcance para que a inflação fique no centro da meta, no Brasil o valor é de 4,5%. Se a inflação fica dentro do intervalo das metas porque o governo está intervindo diretamente nos preços, porque a providência assim desejou ou por qualquer outra razão que não esteja relacionada à ação do BC então não estamos em um regime de metas. Por exemplo, a inflação nos EUA flutuou em torno de 3% ao ano desde meados da década de 1980, mas o FED não trabalha com um regime de metas explícitas no estilo de nosso BC. Claro está que o regime de metas não é a única, talvez nem mesmo a melhor, forma de manter a inflação sobre controle, é legitimo o BC abandonar o regime, o que não é legitimo é não avisar que abandonou.


Ao tirar as duas pernas restantes do tripé a política econômica do governo Dilma permitiu a queda da estabilidade de curto prazo que o tripé segurava. A Nova Matriz Macroeconômica, que é tão nova quanto assistir Kojak ou ouvir Black Sabath, ao não providenciar nada que pudesse sustentar a estabilidade conquistada nos anos 1990 levou a política econômica de Dilma a um labirinto. O resultado é que voltamos a discutir inflação, dívida, confiança de investidores e todos aqueles temas de curto prazo que pareciam já estar resolvidos. Infelizmente a discussão a respeito do longo prazo voltou para geladeira.


2 comentários:

  1. O texto está perfeito como explicação, embora o Português necessite algum polimento para poder ter ampla distribuição e até ser publicado como artigo de jornal.
    Comentando substantivamente, eu diria o seguinte. O governo não fez tudo errado porque tinha vontade de errar, ser perverso, chutar o pau da barraca e causar o maior mal ao maior número de pessoas. Não, eles, os keynesianos de botequim, acreditavam piamente que estavam fazendo a coisa correta, ou seja, domando o mercado, e ensinando aos agentes como é que se cuida da economia.
    Ou seja, uma mistura de ignorância com arrogância, o que provavelmente é o resultado da incultura econômica e da prepotência pessoal.
    Nem o ministro da Fazendo, nem a sua chefe, podem ser efetivamente chamados de economistas. Eles aprenderam algumas lições de economia de orelha, pois nunca devem ter se debruçado sobre aqueles pesados manuais, ou text-books americanos (tipo Samuelson, Obersfeldt, etc) ou mesmo o manual dos professores da USP. No máximo deram uma folheada no último, alguma edição antiga, quando até os uspianos eram mais keynesianos do que mainstream neoclássico.
    Depois, ficaram ouvindo aquelas bobagens que a Conceição dizia, ou melhor, as suas diatribes contra os garotos do Banco Central, as gozações do Beluzzo e do Coutinho contra os garotos da PUC-Rio, e de forma geral todos reclamando da tal de financeirização da economia, que parece um inferno, assim dito...
    Ou seja, o pensamento desse pessoal, se o termo se aplica, é o mais tosco e primitivo possível. Além de não entenderem nada de economia, eles têm essa prevenção contra o setor financeiro (que seriam sanguessugas aproveitadores) e contra os lucros excessivos dos capitalistas industriais.
    No fundo, não adianta, pois eles só vão mudar debaixo do cacete, ou seja, quando a crise já estiver instalada, como parece que já está.
    No fundo, no fundo, o Brasil perdeu 12 anos de não reformas e de insistência nos erros.
    Isso quanto aos companheiros.
    Mas, há que reconhecer também que nossa Constituição é esquizofrênica, e os congressistas e todos os mandarins da República são mais esquizofrênicos ainda, todo dia criam novas despesas sem fontes de receita.
    Acho que voce poderia explicar isso ao povo de uma forma mais ordenada.

    ResponderExcluir
  2. Alguns problemas na análise dele:

    (i) o "período liberal", que eu não concordo ter sido liberal, mas vá lá, foi pelo menos até 2005 e o tripé foi até 2010. O primeiro governo de Lula foi um governo reformista, gostem ou não disto.

    (ii) a crise de 2008 foi uma crise de países ricos, a crise dos anos 90 foi uma crise de países pobres; se comparamos o Brasil com países semelhantes fica claro que nossa performance foi medíocre. Falei sobre isto aqui: http://www.rgellery.blogspot.com.br/2013/08/crescimento-e-inflacao-nos-governos-fhc.html

    (iii) boa parte do desempenho da economia brasileira entre 2002 e 2010 pode ser explicada pelo aumento nos preços das commodities, um fator que não decorre de nada que nosso governo tenha feito.

    (iv) as medidas de um governo não raro só surtem efeitos no governo seguinte, Dilma disse hoje, ele parece não ter levado isto em consideração.

    ResponderExcluir