sábado, 30 de agosto de 2014

Comentários a Respeito do Programa de Governo de Marina

Tirei um tempo para ler o programa de governo de Marina (link aqui). Costumo preocupo apenas com a parte de economia e relativa à educação, especificamente a que trata do ensino superior, a primeira por ser o tema que estudo e a segunda por ser o meu trabalho. No caso de Marina além destas duas partes tentei olhar com cuidado a parte relativa à política, o motivo é que, ao contrário de Dilma e Aécio, não vejo com que base parlamentar Marina vai tentar implementar as medidas que propõe. Mesmo que o PSB cresça nestas eleições, o que é provável que vá acontecer, é público e notório que Marina não é um quadro do PSB e que talvez nem fique no partido.

O programa é dividido em seis eixos: (i) estado e democracia de alta intensidade; (ii) economia para o desenvolvimento sustentável; (iii) educação, cultura e ciência, tecnologia e inovação; (iv) políticas sociais, saúde qualidade de vida; (v) novo urbanismo, segurança público e o pacto pela vida; e (vi) cidadania e identidades. Para um sujeito desconfiado como eu o nome do primeiro eixo já ligou o sinal de alerta. O que é democracia de alta intensidade? Três trechos podem ajudar o leitor a responder a pergunta:

“Nossas escolhas são políticas e envolvem participação social em todas as fases dos processos públicos.”
“As instituições envelhecidas e a democracia de baixa qualidade. A sinergia dos movimentos sociais com as novas formas de militância. A democratização da democracia.”
“O coração pulsante dessa ideia é a participação plural e popular permanente, norteada por valores como solidariedade, emancipação, justiça social, criatividade e sustentabilidade.”

Ao que parece Marina pretende seguir a linha do Decreto 8.243 e investir na substituição da nossa não tão velha democracia representativa por uma nova democracia com traços fortes de democracia direta. Começo a ver o que é a nova política e confesso que não estou gostando do que estou vendo. Marina parece estar preocupada com financiamento das campanhas eleitorais, eu também estou. Campanhas caras exigem doações e na maioria das vezes o doador quer algo em troca, aqui eu concordo com a candidata, mas tomamos caminhos diferentes. Eu acredito que a melhor maneira de reduzir o valor das doações, e, portanto, das campanhas, é reduzir o que o candidato, uma vez eleito, pode dar para recompensar o doador.

Ainda no Eixo 1 aparece um outro tema que muito me importa: a questão federativa. No começo gostei de ver a preocupação com a o excesso de centralização, parecia que ia na direção que eu gostaria que fosse. Mas à medida que eu li o texto minha impressão inicial foi se diluindo. Ficou um texto padrão sobre o tema, do tipo que começa louvando a descentralização e termina propondo que União faça leis para resolver os problemas, eu devia ter suspeitado quando vi a referência a tal Guerra Fiscal, que eu prefiro chamar de competição fiscal. Acredito que descentralização passa por autonomia (não estou falando soberania), que autonomia passa por responsabilidade e que reponsabilidade passa por arcar com os ônus dos próprios erros. E se alguém estiver se perguntando... sim eu fui e sou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma boa olhada nas finanças de estados e municípios deveria ser suficiente para convencer as pessoas que a LRF não entregou o que prometeu. Minha alternativa sempre foi proibir transferências voluntárias para financiar gastos correntes dos estados e municípios e determinar por força de lei que a União não pode ser fiadora de estados ou municípios. Sim, isto significativa que entes federados poderão ir a falência, a vida é dura.

O Eixo 1 termina com a política externa. Assim como outros documentos do gênero o programa de Marina promete que vai aumentar os acordos com outros países e também vai fortalecer o Mercosul. Imagino que nova política conseguirá alcançar este objetivo colocando todos em volta de uma mesa para conversar. Podem aproveitar a conversa para trabalhar outro ponto do programa: reivindicar que a presidência do FMI e do Banco Mundial deixe de ser monopólio de Europeus e Norte-Americanos. Se a Comissão de Direitos Humanos da ONU pode ser composta por ditaduras por que o FMI não pode ser presidido por grandes devedores com histórico de calotes? Maldita elite branca!

O próximo eixo trata da economia para o desenvolvimento sustentável, o título é bonito assim como bonita é a passagem que inicia o texto:

“O governo deixará de ser controlador dos cidadãos, para se tornar seu servidor. Deixará de ver o setor público como o criador da sociedade. O Estado tem de servir à sociedade, e não dela se servir.”
Não poderia concordar mais, minha única preocupação é que não sei de político em campanha que discorde desta afirmação. Na sequência de tão belas palavras é dito que “o baixo investimento do governo tem sido uma das causas do baixo investimento total da economia”, frase que ou é óbvia a ponto de não precisar ser escrita ou sugere que o servidor deve determinar o caminho do servido. Mas deixemos de ser ranhetas e vamos ao lado bom: o documento mostra preocupação com a carga tributária de 37% do PIB e 2013. É bom saber desta preocupação por parte de uma candidatura que promete passe livre e 10% do PIB para várias causas nobres. Um tópico bastante positivo do programa está no trecho:

“Acesso a recursos subsidiados pelo Tesouro Nacional, por meio dos bancos públicos, não pode ser o fator principal de sucesso das nossas empresas. Por isso, é necessário desenvolver o mercado de capitais e o mercado de crédito voluntário, porque acreditamos que são mecanismos fundamentais para a intermediação entre a poupança e os investimentos de longo prazo.”

É algo tão importante, mas tão importante, que se eu me convencer que é uma proposta séria eu posso até tentar controlar meu medo de uma crise política em um eventual governo Marina e mudar meu já declarado voto em Dilma em caso de um segundo turno entre Marina e Dilma. Mas para eu me convencer vou ter de entender de forma clara o que Marina pretende fazer com o BNDES, não é possível desenvolver um mercado de capital para financiar o investimento quando o governo está financiando com juros muito abaixo dos praticados na economia. Quem pode concorrer com o BNDES? Uma que eu consiga entender como Marina pretende reduzir o ativismo do BNDES só precisarei ficar convencido que os movimentos sociais da democracia de alta intensidade vão aprovar as ideia de Marina para o BNDES. A FIESP conta como organização social? Vai ter vaga no soviete, digo conselho popular, que será encarregado de cuidar do financiamento do investimento com o dinheiro dos servidos?

O box com as propostas para reduzir a inflação parece impecável quando visto de forma isolada, se tentarmos conciliar o que está no box com o resto do documento fica mais difícil. Quem vai de definir as metas críveis? Conselhos populares? O Banco Central independente prestará contas a alguém? Quem? Um conselho popular? Dúvidas... Da mesma forma está excelente o box com as reformas para agilizar o estado, mas também fico com dúvidas quanto a comunicação entre o que está no box e o resto do programa. Da reforma tributária não falo nado porque não sou de chutar na canela de quem está caído, não creio que será feita nos moldes propostos, digo isto para Marina, Dilma, Aécio, Pastor Everaldo, Luciana Genro e qualquer candidato mesmo que eu não tenha lido a proposta, só não digo para o Eduardo Jorge porque ele é gente boa.

Quanto à distribuição de renda, não tem muito a falar, basta deixar o Ricardo Paes de Barros e o Marcelo Neri onde estão (ou amentar a influência deles no governo) que tudo continua funcionando. O documento segue para a reforma agrária, aqui também não tenho muito a falar, a reforma agrária já foi feita, o que precisa é pacificar o campo. Isto não será feito sem o enfrentamento do MST, não encontrei nenhuma referência a esse ponto, talvez por ter feito uma leitura apressada... Por outro lado encontrei uma proposta de “Incumbir as universidades e os institutos de tecnologia de integrar o ambiente educacional e o produtivo nos assentamentos.” Pobre universidade, é quase uma Geni dos programas eleitorais. Mas vai uma dica: se o governo quer que a academia faça isto não precisa criar nenhuma lei, basta abrir editais para financiar este tipo de ação e eliminar as leis que proíbem professores universitários de atuar fora da universidade. O bom é que esta medida vale para qualquer coisa que o governo queira que a academia faça e ainda pode ser adequada ao setor privado!

Ainda na seção de reformas. Quem não quer melhorar o mercado financeiro? Quem não quer mais acesso ao crédito? A questão é saber de qual tipo de crédito estamos falando. Para financiar consumo o crédito já subiu bastante nos últimos anos, para financiar o investimento voltamos à questão do BNDES. Sim, o plano de governo de Marina promete manter subsídios ao crédito agropecuário e a habitação popular. Então tá, vocês lembram do artigo do Tim Kehoe que vez por outra eu cito aqui no blog? Pois é... Para infraestrutura em geral e transporte e energia em particular o programa me pareceu padrão, tem o tom reformista, o que me agrada, mas não deixa claro que será contrariado nas reformas e como resolver isto politicamente com a nova democracia de alta intensidade. Um ponto que vale para todos os candidatos é que falar de estimular transporte ferroviário sem analisar com cuidado o relevo do Brasil é conversa para pássaros. Entre São Paulo e mar tem uma muralha que é difícil, entendam por cara, de subir e descer.

Assim como Aécio, Marina promete valorizar a pesquisa. O programa de Marina é melhor por não sugerir mais comitês, órgãos ou programas de fomento e tratar da desburocratização. Seria melhor ainda se deixasse explícito como vai retirar as barreiras que impedem os professores das universidades federais de trabalhar com o setor privado, com organizações sociais, com órgãos do governo e com qualquer coisa que esteja fora da universidade em que o professor é lotado. Já vou avisando que se o tema for tratado em conselho popular onde a ANDES (trata-se do sindicato nacional dos professore do ensino superior) dê as cartas isto não vai acontecer. A parte de abertura comercial também está boa, mas não podemos esquecer que uma das lições da década de 1990 é que sozinha a abertura comercial não leva a crescimento de longo prazo da produtividade. É preciso fazer as outras reformas para escapar da maldição das reformas incompletas. Para terminar um breve comentário a respeito dos subsídios setoriais: sou contra, mas se é para ser feito que seja como Marina propõe. Vou me abster de comentar a parte ambiental.

O Eixo 3 trata da educação, cultura e ciência, tecnologia e inovação. Quanto a pesquisa e universidades federais dei meu recado quando comentei o segundo eixo. Quanto ao resto vou poupar o leitor de um post ainda maior e não vou comentar nada além da seguinte passagem:

“Defendemos uma educação de qualidade e democrática, que contribua para a construção de novos sujeitos sociais, capazes de transformar a sociedade rumo a um mundo mais sustentável.”

Sou contra esta visão da educação. Escola ensina, quem forma sujeitos sociais, seja lá o que for isto, é a família. Para terminar digo o que já disse em outros lugares: a reconstrução da educação brasileira é urgente e necessária, mas só será feita se o governo estiver disposto a enfrentar os sindicatos de professores. Como a nova democracia de união nacional e movimentos sociais vais fazer isto eu não tenho a menor ideia.

O quarto eixo trata de políticas sociais, saúde e qualidade de vida. Como já disse anteriormente basta manter o Ricardo Paes de Barros e o Marcelo Neri no governo que a política social estará em boas mãos e, dentro do possível, alcançará seus os objetivos. O programa de Marina propõe transformar o bolsa família em política pública que não dependa do governo, salvo engano Aécio já tinha feito esta proposta, fortalecer e ampliar o programa e também são propostas de Marina:

“Promover a integração orçamentária e a transversalidade das políticas sociais orientadas para previdência, assistência, saúde, educação, cultura e trabalho, por meio de ações matriciais e territoriais, com ênfase na emancipação social, econômica e cultural dos beneficiários.”

Ficarei grato a uma alma caridosa que me explique o que significa o trecho acima, mas reconheço que parece algo bom, sei lá, uma coisa que é transversal e matricial não pode ser ruim, me lembra até a banda diagonal endógena... Brincadeiras a parte, garantir que os serviços públicos cheguem com qualidade a todos os cidadãos parece lugar comum, mas é algo que deveria estar em todos os programas de governo. Porém, na condição de chato assumido, não posso deixar de lembrar que fazer isto custa dinheiro e sem aumentar a carga tributária nem reduzir o superávit primário realizar objetivos como este envolve enfrentar grupos de interesse bem estabelecidos, inclusive os tais movimentos sociais que ganharão poder com a nova democracia de alta intensidade. Um exemplo da dificuldade entre conciliar as propostas de Marina entre elas e com a nova democracia está na questão previdenciária. É quase um consenso entre economistas que estudam previdência que a aposentadoria por tempo de serviço é uma aberração que deve ser abolida. Por questão políticas não foi possível abolir a aposentadoria de tempo de serviço e, por conta disso, foi criado o fator previdenciário. O fator nada mais é que uma forma de reduzir os ganhos de quem se aposente por tempo de serviço. No debate comentei que Marina e o Pastor Everaldo se esquivaram do tema, no programa Marina faz o mesmo. Não propõe o fim da aposentadoria por tempo de serviço e fala vagamente de alternativas ao fator previdenciário. Uma vez eleita é muito provável que Marina fique com a velha política e tente manter o fator previdenciário, talvez até brigue para mantê-lo em caso do Congresso propor acabar com o fator para pressionar o governo. Estou especulando, eu sei, mas alguém nega que descrevi um cenário possível e talvez até provável?

O Eixo 5 trata do novo urbanismo, segurança pública e pacto pela vida. Já estou cansado e imagino que se alguém leu até aqui esta ainda mais cansado do que eu. Gostaria muito de ver uma política de moradia que não girasse em torno da casa própria. A maioria das pessoas poderia viver melhor se no lugar da casa própria decidisse por moral de aluguel. Entendo que a casa própria tem um lado importante de consolidar uma sociedade de proprietários, mas até onde vamos com isto? É razoável induzir alguém a se endividar até o limite do possível, algumas vezes além, para chamar de sua uma moradia muitas vezes ruim e mal localizada? Não tenho uma reposta definitiva, mas gostaria de ver a discussão. Marina reconhece o problema da segurança e chama atenção para os inaceitáveis dados de homicídio no Brasil, isto é bom. Pode ser paranoia minha, mas me preocupa um pouco o tom de trazer a questão para a União, quanto mais centralizada a segurança, mais poderoso o Estado e menos poder tem o cidadão. Para que o Estado seja mesmo um servo é fundamental deixa-lo mais fraco que o servido.

O último eixo trata da cidadania e das identidades. Acredito que a interferência do Estado nestas questões deve ser no sentido de fazer com que todos os cidadãos tenham os mesmos direitos e garantias, ênfase muito maior nas garantias do que nos direitos. Esta minha opinião me faz ser favorável a muitas das causas das ditas minorias, mas, não é um mas pequeno, me distancio totalmente quando as bandeiras das minorias vão no sentido de criminalizar opiniões. Salvo nos casos onde o indivíduo está exercendo o poder público acredito que não se deve impor por meio de coação valores que não estejam de acordo com as crenças do indivíduo, notem que falei de valores, não falei de ações. Para exemplificar meu ponto de vista suponha um flamenguista que odeie botafoguenses. Não tenho nada contra o flamenguista não querer me receber em casa (para os que não sabem, sou botafoguense), não tenho nada contra o flamenguista não me dar bom dia, não tenho nada contra ele dizer no FB ou em outros espaços públicos apropriados que botafoguense é chorão ou seja lá o que for. Se me incomoda além do que considero razoável tiro o sujeito de minhas relações, simples assim. Agora se o flamenguista tentar barrar meu acesso a áreas ou serviços públicos eu creio que a lei deva me proteger, no caso de serviços públicos prestados por entidades privadas (e.g. um restaurante) eu tenho algumas dúvidas. Sei que está confuso, mas prefiro explicar em outro lugar. Para agora quero registrar que algumas vezes me parece que a leitura de direitos humanos de Marina é mais parecida com a do infame Plano Nacional de Direitos Humanos do que com a minha.


Em resumo eu diria que as ideias econômicas de Marina são parecidas com as minhas, a ficar apenas nesta dimensão é quase certo que Marina teria meu voto já no primeiro turno. As políticas sociais também me parecem bem desenhadas, não votaria nela só por conta destas políticas, mas também não deixaria de votar. No campo dos direitos humanos e educação vejo diferenças importantes entre minha visão de mundo e a de Marina, diferenças fortes o suficiente para me impedir de votar em Marina no primeiro turno. Mas é na questão da democracia que coisa pega, a tal democracia de mais intensidade me parece muito próxima ao que ocorre nos países que aderiram ao bolivarianismo e muito distante da democracia que eu desejo. Se já muito me incomodava a ideia de Marina tomar posse sem base partidária e sem disposição de construir, pelo contrário o discurso dela é o da anti-política, mais me incomoda saber que ela pode, aparentemente quer, transformar o Decreto 2.243 no marco de um novo modelo de democracia. As experiências que tivemos com as tentativas de fazer política sem políticos foram desastrosas, Jânio e Collor sequer conseguiram terminar os mandatos que receberam. Como nos sairemos com uma tentativa de ignorar e ao mesmo tempo substituir os políticos? Que forças ocultas e quais maracutaias apareceram para atrapalhar os planos de Marina? Como Marina enfrentará estes desafios? Dúvidas...


2 comentários:

  1. Olá Roberto, tudo bem?
    Sempre me considerei de esquerda com pensamentos humanistas, sem nenhum embasamento teórico para isso. Apenas intuição.
    Penso o oposto do que você defende mas venho aqui expor a minha admiração pela forma como você constrói o seu raciocínio e demonstra suas ideais.
    É desse nível de debate que precisamos para avançar.
    Descobri o seu blog por acaso e sempre venho aqui ler suas opiniões e pensamentos.
    Você já fez uma análise do programa de governo da Dilma?
    Abraços.

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    1. Muito obrigado, eu tento. Na realidade programa de governo mesmo só a Marina apresentou, Aécio tem um documento que é quase um programa de governo e Dilma fez menos ainda. O que eu achei mais próximo a um programa foi a minuta do programa de governo. Cometei a parte relativa a crescimento e produtividade aqui: http://www.rgellery.blogspot.com.br/2014/04/comentarios-sobre-crescimento-e-aumento.html

      Espero que seja útil.

      Abraço.

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