Por conta das manifestações no Chile começou a correr por
aqui uma tese de falência do modelo chileno, sobrou até para Paulo Guedes por
ter dito que o Chile é uma boa referência para o Brasil. Basta uma rápida lida
no noticiário para lermos sobre como o neoliberalismo destruiu o Chile e coisas
do tipo. Quem acompanha o crescimento econômico dos países da América Latina
estranhou as crônicas sobre o fracasso do Chile e do neoliberalismo na América
Latina, afinal se há algo que todo mundo que conhece um pouco do assunto sabe é
que o Chile teve um desempenho econômico muito superior ao Brasil nas últimas
décadas. De fato, o Chile ultrapassou e abriu larga vantagem sobre o Brasil em
termos de renda por pessoa. Como o Chile não seria um bom exemplo?
A figura abaixo mostra o desempenho do PIB per capita
corrigido por poder de compra no Brasil e no Chile desde 1990 (primeiro ano da
série disponível na base de anos do Banco Mundial). A superioridade do
desempenho econômico do Chile é evidente. Se o leitor está preocupado com a
data ou com a fonte informo que segundo o FMI em 1980 o PIB per capita do
Brasil era de $11.372,210 e o do Chile era de $7.986,483, enquanto em 2018 o
PIB per capita do Brasil foi de $14.359,539 e o do Chile foi de $23.092,070.
Se há algo pouco discutido em teoria do crescimento econômico
é que indicadores sociais costumam estar positivamente correlacionados com PIB
per capita, por isso essa última variável costuma ser citada em comentários
rápidos ou mesmo em artigos científicos comparando o desempenho econômicos de
dois ou mais países. Por algum motivo que desconheço essa sabedoria
convencional foi abandonada no caso do Brasil e do Chile e começou a circular
uma tese que apesar do PIB per capita maior que o nosso os chilenos tinham uma
vida pior que a nossa. Para checar essa tese resolvi dar uma olhada em vários
indicadores disponíveis na base de dados do Banco Mundial.
Seguindo a recomendação do Angus Deaton, prêmio Nobel de Economia
em 2015, comecei olhando a expectativa de vida. A expectativa de vida dos
chilenos é maior que a nossa, ou seja, além de mais ricos eles vivem mais.
Justiça seja feita a expectativa de vida deles era maior que a nossa desde quando
eles eram mais pobres do que nós, logo fica difícil relacionar esse fato com o
desempenho econômico do país nas últimas décadas. Alguém podia tentar comparar
a variação na expetativa de vida, mas dado que parece existir um limite
superior para essa variável, comparar variações pode ser complicado.
Resolvi olhar então para políticas sociais, especificamente
os gastos com saúde e educação em cada país. A figura abaixo mostra que os
gastos com saúde como proporção do PIB são maiores no Brasil do que no Chile,
porém os gastos do governo com saúde são maiores no Chile do que no Brasil. Esses
dados não confirmam a tese que a social democracia brasileira construiu um
governo mais preocupado com a saúde do povo do que o neoliberalismo chileno.
Em termos de percentual do PIB per capita o governo brasileiro
gasta mais com educação do que o governo chileno, alguém poderia concluir que
essa é uma das causas das revoltas. Ocorre que o Chile tem um PIB per capita
mais alto que o Brasil, como o gasto com educação, principalmente nos níveis
primários e secundários, não cresce na mesma proporção da renda esse resultado
não chega a ser surpreendente.
Se tomado o gasto absoluto o gasto do governo chileno por
estudante é maior que o do governo brasileiro na educação primária e secundária.
Na educação terciária, onde estão as universidades, o gasto do governo
brasileiro é maior que o do governo chileno. Como as pessoas que chegam ao
nível terciário costumam ter mais renda que as pessoas que param nos níveis
primário ou secundário o dado sugere que a social democracia brasileira se preocupa
menos com os mais pobres que o neoliberalismo chileno.
Uma comparação do Chile com o Brasil mostra que o Chile é
menos desigual que o Brasil. Ambos apresentam altos índices de desigualdade e
em ambos a desigualdade, medida pelo índice de Gini, está caindo nas últimas
décadas. Se alguém culpa o neoliberalismo chileno pela desigualdade no país, mais
culpa ainda deve creditar a social democracia brasileira pela desigualdade do
Brasil. Vale registrar que alta desigualdade é quase que uma característica da
América Latina.
A participação dos 10% na renda é maior no Chile neoliberal
do que no Brasil social democrata. Nos dois países essa participação apresenta
tendência de alta, porém no Brasil houve uma queda em 2017. Os pontos destacados
na figura são os anos usados para construir a figura por conta de dados
disponíveis para os dois países.
A fração da renda apropriada pelos 10% mais ricos mostra tendência
de queda nos dois países, porém é menor no Chile do que no Brasil. Assim como nos
10% mais pobres, ocorre uma reversão no último ano na queda da fração de renda
dos 10% mais ricos no Brasil. É possível que as duas reversões estejam
relacionadas à grande crise iniciada em 2014, mas isso é assunto para outro
post.
O acesso a internet pode ser um indicador interessante para
entender a qualidade de vida nos dois países. Em ambos o percentual da população
com acesso a internet apresenta tendência crescente. Em meados da década a tendência
do Chile parece ter ficado mais forte, porém no último ano há uma pequena
reversão.
Até agora os dados mostram que os chilenos são mais ricos,
vivem mais, recebem mais do governo em saúde como proporção do PIB, recebem
mais do governo em educação primária e secundária, moram em um pais menos
desigual onde os 10% mais pobres apropriam uma fração maior da renda e os 10%
mais ricos apropriam uma fração da renda menor do que o observado no Brasil.
Deixei por último as comparações relativas a estrutura setorial da economia.
O Chile tem uma dependência de recursos naturais bem maior
que o Brasil. Sabedoria comum no Brasil de meados do século passado e que nem
tão supreendentemente tem força até hoje diria que isso faria do Chile um país mais
pobre, mais desigual e mais sujeito a choques externos que o Brasil. Os dois
primeiros vimos que não é verdade, o terceiro deixo para outra ocasião. Trouxe
o assunto por desconfiar que alguns que proclamam a falência do neoliberalismo
no Chile estão tirando conclusões a partir da sabedoria convencional de meados
do século passado e sem olhar os dados.
Deixei por último a manufatura. Há quem diga que o
neoliberalismo destrói a indústria do país. É fato que a participação da manufatura
no PIB do Chile vem caindo desde a década de 1980, um fenômeno que não é
exclusivo do Chile nem da América Latina. Ocorre que a queda da participação da
manufatura do PIB no Brasil entre 1980 e 2018 foi muito maior que no Chile. Em
1980 a manufatura correspondia a 30,3% do PIB no Brasil e a 21,4% do PIB no
Chile, em 2018 esses números eram 9,7% no Brasil e 10,6% no Chile. Se
considerarmos o começo do século a queda no Chile foi maior que aqui, mas isso
parece estar mais relacionado ao aumento de preços das commodities, recursos
naturais são mais relevantes lá do que aqui, do que a herança neoliberal de
Pinochet.
Nesse post mostrei vários indicadores mostrando que o Chile
é mais rico e menos desigual que o Brasil. Mostrei indicadores dando conta que
o governo do Chile gasta mais em proporção ao PIB com saúde que o governo
brasileiro e que o governo do Chile tem mais foco em educação primária e
secundária que o brasileiro. Por fim mostrei que apesar de ter maior
dependência de recursos naturais o Chile tem uma manufatura como proporção do
PIB quase igual à do Brasil, um pouco maior em 2018. Deixo para o leitor
decidir se Paulo Guedes está certo ou errado em buscar inspiração no Chile para
reformar a economia brasileira.
Ótimo post muito bem fundamentado em dados concretos.
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