domingo, 6 de maio de 2018

O que está acontecendo na Argentina?


Esta semana a Argentina chamou atenção por conta das variações bruscas na taxa de câmbio, de fato, no dia dois de maio era possível comprar um dólar com cerca de 20,5 pesos argentinos, no dia seguinte a taxa de câmbio bateu em um pico de 22,5, ou seja, de um dia para outro o peso argentino perdeu quase 10% de seu valor em dólares. O Banco Central da Argentina elevou a taxa de juros básica para 40% ao ano e o dólar fechou a semana abaixo de 22 pesos. O que está acontecendo na Argentina?

Para contar a história é preciso voltar um pouco no tempo. Mauricio Macri tomou posse como presidente da Argentina em novembro de 2015 prometendo uma guinada em relação as políticas populistas de inclinação bolivariana implementadas por Cristina Kirchner. O “kirchnerismo” governou a Argentina entre 2003 e 2015, o sucesso dos primeiros anos se transformaram em desastre em um padrão não muito diferente de outros países da América Latina. Em 2014 o PIB da Argentina encolheu 2,5% e a inflação estava acima de 20% ao ano, para fins de comparação no Brasil o PIB cresceu 0,5% em 2014 e a inflação daquele ano foi de 6,4%. O fracasso do populismo de Cristina Kirchner possibilitou a vitória do discurso liberal apresentado por Macri na terra de Perón.

Em 2015 o PIB da Argentina cresceu 2,7%, crescimento é sempre bom para quem está no governo, mas o resultado de 2015 não pode ser creditado a Macri que tomou posse em dezembro daquele ano. O primeiro ano de Macri foi 2016, ano em que foram feitos ajustes em preços que estavam defasados em decorrência de subsídios e outras políticas de Kirchner (link aqui), qualquer semelhança com a política de preços da Petrobras no governo Dilma não é mera coincidência. Como não podia deixar de ser, naquele ano o PIB argentino voltou a encolher, queda de 1,8%, e a inflação disparou para cerca de 40% (link aqui). Em 2017 a Argentina voltou a crescer, 2,8%, e a inflação caiu para 24,8%, um valor bem menor que o do ano anterior, mas absurdamente alto mesmo se comparado a ridícula meta de 17% anunciada pelo governo.

Não vou questionar se Macri é ou não é liberal, mantenho meu princípio que liberal é quem se diz liberal, porém questiono as políticas de Macri. Alguém mais ácido do que eu pode dizer que a primeira medida de um liberal que chega à presidência deveria ser renunciar do cargo, é uma tese difícil de desmontar, mas não ficarei com ela. Desta forma, minha sugestão para algum liberal que chegue a presidência é que tente reduzir ao máximo possível os danos causados pelo governo às empresas e famílias. Na prática minha recomendação implica em manter a estabilidade da moeda, ou seja, perseguir inflação baixa, buscar o equilíbrio fiscal para evitar futuros aumentos de impostos e reduzir subsídios, regulamentações e outras barreiras ao comércio. Ao aceitar conviver com taxas de inflação acima de 20% e, absurdo dos absurdos, propor uma meta de inflação de 17% o governo Macri abriu mão de perseguir a estabilidade da moeda transformando a economia da Argentina em um mar de incertezas. Não tinha como dar certo.

A figura abaixo mostra a taxa de juros básica da Argentina entre fevereiro de 2015 e maio de 2018. Quando Macri toma pose a taxa estava em 20,5% ao ano, durante 2015 houve uma redução significativa provavelmente causada pelo interesse de Cristina Kirchner em vencer as eleições. Em dez de dezembro Macri toma posse e corretamente o Banco Central eleva a taxa de juros para 38% no dia dezessete de dezembro de 2015, uma semana após a posse de Macri. Na semana seguinte o Banco Central começa a reduzir a taxa que fecha o ano em 33%. Em 2016 a queda da taxa de juros continua até chegar em um mínimo de 24,75% em novembro de 2016, se o leitor lembrar que a inflação de 2016 foi de 40% é possível começar a perceber o tamanho da irresponsabilidade do Banco Central argentino. Manter taxas reais negativas em um país com inflação rodando 40% deveria ser crime, alguém pode dizer que tal redução dos juros permitiu o crescimento em 2017, pode ser, mas, se foi, esse crescimento não veio sem custos. Como até a irresponsabilidade de um Banco Central tem limites a taxa de juros começou a subir no final de 2017 e começou maio de 2018 na casa de 30%, era tarde, em maio o peso argentino começou a derreter. Como resposta o Banco Central da Argentina elevou os juros para 33% no dia três de maio e para 40% no dia quatro de maio.




Ainda não sabemos se a elevação dos juros vai ser suficiente para evitar que o peso derreta, mas posso afirmar que veio tarde e pelos motivos errados. Os juros deveriam ter subido ainda mais em 2015 e só deveriam ter caído quando a inflação tivesse controlada, a receita usada pelo Banco Central do Brasil sob comando de Ilan Goldfajn é antipática e pode ter alto custo eleitoral, mas funciona. A política fiscal não foi diferente da política monetária, se uma abaixou os juros de forma irresponsável a outra viu crescer o déficit primário que pulou de 3,5% do PIB em 2014 para 4,4% do PIB em 2015, depois foi para 4,7% em 2016 e recuou para 4,5% em 2017. A figura abaixo mostra o resultado primário na Argentina e Brasil.




A combinação de juros reais negativos e déficits primários altos colaborou para que os argentinos não ajustassem seus gastos à capacidade de produção do país, a Argentina de Macri seguiu gastando mais do que podia. Uma maneira de ver esse fenômeno é observar o comportamento do saldo em transações correntes, quando esse saldo é negativo significa que os moradores do país estão pegando dinheiro emprestado no exterior para financiar seus gastos. Se isso é bom ou ruim depende do que está sendo feito com o dinheiro emprestado. A figura abaixo mostra o saldo em transações correntes na Argentina e no Brasil. Na figura fica claro como os argentinos estavam se financiando com o resto do mundo. Não deixa de ser interessante reparar o contraste entre Brasil e Argentina, enquanto por aqui estamos tentando viver dentro de nossas posses por lá os recursos trazidos do exterior para financiar os gastos locais aumentavam como proporção do PIB.




Aqui pode aparecer uma polêmica, economistas desenvolvimentistas costumam ver déficits em transações correntes como um problema e recomendam desvalorizações cambiais como solução (na realidade alguns desenvolvimentistas recomendam desvalorização cambial como solução para qualquer problema, mas isso é outra conversa). Da minha parte não considero que déficits em transação corrente são um problema per si e nem vejo desvalorizações cambiais como o caminho para reverter tais déficits. Assim como um indivíduo que pega dinheiro emprestado não está necessariamente com problemas financeiros um país que se financia com déficits em transações correntes não esta necessariamente com problemas em sua economia. Em um caso e no outro tudo depende do que será feito com o empréstimo e da capacidade de pagamento de quem pegou o dinheiro emprestado. Financiar a compra de um imóvel pode ser uma excelente decisão, da mesma forma pegar um empréstimo para pagar as férias dos sonhos pode ser uma decisão correta se quem pegou o empréstimo tiver uma renda futura que permita o pagamento da dívida.

Nesse espírito é útil dar uma olhada na taxa de investimento da Argentina. De 2014 para 2016 o déficit em transações correntes subiu de 1,6% para 2,7% do PIB enquanto a taxa de investimento caiu de 17,3% para 17%, em 2017 a taxa de investimento subiu para 19,1%, e o déficit em transações correntes foi para 4,9% do PIB. Com a possível exceção de 2017 os números sugeres que os argentinos não estavam pegando empréstimo com o resto do mundo para financiar o aumento da capacidade produtiva do país, desta forma, salvo uma ajuda externa como a que veio com o boom das commodities no começo deste século, os argentinos teriam problemas em pagar as contas com o resto do mundo. Um presidente liberal pode até ter alguma vantagem por contar com a simpatia dos investidores, tenho dúvidas se isso é verdade, mas não faz milagres. Sem um ajuste forte que torne os gastos dos argentinos compatíveis com a capacidade de produção deles o país que já foi o exemplo para América Latina estará condenado a crises como a da semana passada.

A tentativa de tirar lições da Argentina para o Brasil é grande, já fiz isso em outro post (link aqui) e segurei o quanto pude para não fazer isso aqui. A tentação foi maior que minha resistência e termino o post alertando para os perigos do Brasil buscar uma saída rápida para a crise. O presidente Temer tem muitos defeitos, tratei do assunto aqui, mas ter resistido, pelo menos até agora, a abusar de política fiscal, política monetária, subsídios e outras artimanhas para pegar um atalho que tirasse o país da crise é um mérito que não posso negar. Se hoje temos esperança que a crise da Argentina não chegue por aqui é porque estamos, mesmo que com passos de formiga e sem vontade, tentando fazer o ajuste ou pelo menos não estamos crescendo por meio de “mágicas” econômicas.


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