domingo, 28 de junho de 2015

O livre mercado e o casamento de pessoas do mesmo sexo

O tema da semana definitivamente foi a decisão da Suprema Corte dos EUA que tornou o casamento entre pessoas do mesmo sexo legal em todos os estados da federação. Não que a semana tenha sido morna, pelo contrário, ocorreu uma onda de ataques terroristas, a Grécia afundou de vez junto com o delírio populista do Syriza, por aqui tivemos o habeas corpus negado para Marcelo Odebrecht, mostrando que a o pedido de prisão, justo ou injusto, não é tão frágil quanto alguns tentaram fazer crer e finalmente o ministro Teori Zavasck do STF aceitou a delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC. Cada um desses episódios seria o assunto dominante de uma semana normal, mas nenhum parece ter a importância da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não que seja alguma novidade, até o Brasil já tinha decisão semelhante, mas por ser nos EUA, o país de onde boa parte das ideias e valores são disseminados para o mundo. Os amigos nacionalistas que me desculpem, mas a América ainda é o centro do mundo.


A decisão da Suprema Corte dos EUA é um marco na história recente. As consequências da decisão vão muito além dos problemas econômicos da Europa, que não devem ser menosprezados, e nem se comparam com qualquer coisa que aconteça por aqui. Ao reconhecer que práticas consensuais entre adultos não podem ser motivo para que a lei ofereça tratamento diferenciado entre indivíduos a Suprema Corte fez História. Entendo os que se preocupam com o federalismo e com o ativismo judiciário, são questões que também me preocupam, creio entender, embora não concorde, as preocupações com eventuais ameaças a estrutura familiar como base da sociedade, mas estou entre os que acreditam piamente que direitos não devem ser negados com base em princípios abstratos, nem que sejam princípios que eu compartilhe. Creio que direitos só devem ser negados quando a ação envolvida causa vítimas concretas, uma pessoa não tem o direito de matar outra não porque matar é pecado, mas porque matar causa perdas concretas a pessoas concretas.

Porém não estou fazendo o post para explicar porque sou favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, com pouco esforço o leitor pode encontrar autores mais qualificados do que eu explicando porque o casamento gay deve ser comemorado e outros autores, também muito qualificados, explicando porque o casamento gay não deve ser comemorado. Tenho posição e já explicitei minha posição desde o dia que a decisão foi tomada: eu saúdo e comemoro a decisão, mas não vou tentar convencer ninguém a mudar de opinião. No lugar disso vou tentar puxar brasa para minha sardinha e engrossar o coro dos que dizem que a origem da decisão da Suprema Corte está nas ideias e nos princípios liberais. A inspiração para o post veio do excelente texto de David Boaz que foi publicado no Mercado Popular (link aqui). O texto faz um forte argumento para defender a tese que os pensadores liberais foram pioneiros na defesa do princípio que o Estado não deve regular o que dois adultos fazem de forma consensual. Não vou resumir nem tentar acrescentar argumentos ou exemplos que não estão no texto, me limito a citar um trecho e recomendar fortemente que o leitor interessado no assunto leia o texto. O trecho é:

“Foram os liberais clássicos, ancestrais dos libertários modernos, os primeiros a reconhecerem este fato. De Montesquieu a Adam Smith no século 18 até o vencedor do Prêmio Nobel de economia F. A. Hayek, que ainda em 1960 (quando a sodomia era crime em todo os Estados Unidos) já afirmava que “práticas privadas entre adultos, mesmo quando tidas como horrendas pelo público geral, não devem sofrer qualquer interferência coerciva do Estado”.”

O que pretendo fazer é dar um passo além do texto e argumentar que não apenas o pensamento liberal está na origem das ideias que levaram a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo como algumas das práticas defendidas por liberais, especificamente o livre mercado, são condições necessárias para que a decisão tivesse sido tomada. Claro que não vou negar que associações formadas entre homossexuais e/ou entre homossexuais e defensores da liberdade (simpatizantes ou não dos homossexuais) foram fundamentais no processo, ações como as Marchas do Orgulho Gay foram essenciais para quebrar o preconceito, o que meus amigos de esquerda gostam de chamar de luta coletiva teve papel determinante no desenrolar dos eventos. Não vou contrapor a leitura da esquerda nem negar a importância da militância organizada na evolução dos eventos, apenas vou registrar que liberais não costumam ser contra associações voluntárias de qualquer natureza. Nosso problema é com associações não voluntárias.

A esta altura o leitor pode estar se perguntando o que pretendo fazer no post. Não vou tratar de ideias, insisto que o texto do Mercado Popular praticamente esgotou o assunto a nível de blogs, não vou comprar briga com a turma da esquerda questionando o papel dos movimentos sociais (não porque não possa, mas porque não quero) e não vou tentar vender a ideia que indivíduos isolados teriam chagado a resultado semelhante. Vou argumentar que a ação dos movimentos sociais só foi possível porque existe algum grau suficientemente grande de liberdade de mercado.

Para seguir meu argumento considere um mundo onde não existe mercado. Toda a atividade econômica é regulada pela coletividade. Suponha que nesse mundo um pequeno grupo de indivíduos, por qualquer que seja a razão, tenha um comportamento que desagrada ou mesmo causa fúria a maior parte da população. Como os participantes desse pequeno grupo poderiam agir para mudar a percepção da maioria da população? No exato momento que o indivíduo se revelar como parte do grupo ele passa a ser alvo do desprezo ou mesmo da fúria da coletividade, a reação provável será a de punir o indivíduo, era exatamente o que acontecia tanto nas economias de mercado quanto nas economias planificadas até meados do século passado. Ser exposto como homossexual era razão para perda de posição sociais, perda de emprego e até prisão.

Como foi possível mudar essa realidade a ponto do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser legalizado em países como a Inglaterra, EUA e Brasil e o mesmo não ter acontecido em países como Rússia, Cuba e China? Serão ingleses, brasileiros e americanos mais aguerridos em suas lutas coletivas do que russos, cubanos e chineses? As revoluções comunistas que ocorreram na Rússia, em Cuba e na China esgotaram a capacidade de organização social destes povos? Não creio. Entendo que a resposta está na diferença entre sociedades onde o poder coletivo, ou o poder tribal, exerce o controle do poder político e o poder econômico e as sociedades onde o poder tribal controla o poder político e o poder econômico está pulverizado entre diversas famílias.

Um militante homossexual, ou de qualquer minoria, que se levante contra a opinião dominante em uma sociedade onde o poder econômico e o poder político andam juntos estará simultaneamente ameaçado de prisão e de viver na miséria. Mesmo que ele consiga driblar a lei (por exemplo, se a lei proíbe sodomia o sujeito pode alegar que é homossexual, mas não pratica nenhuma forma se sexo eque  por respeito à lei se limita a amores platônicos) poderá estar condenado à miséria ou ao desterro. Não são raros os casos onde minorias foram mandadas para regiões distantes e/ou dispersadas por um país, em casos mais drásticos são mandadas para campos de concentração. Se o poder tribal além de concentrar o poder político e econômico também concentrar o poder religioso o pobre sujeito além de tudo ainda será condenado ao inferno.

O mesmo militante em uma sociedade onde o poder econômico está dissolvido ainda poderá ser perseguido pelo poder político, mas também terá mais chances de pelo encontrar um emprego e se livrara da miséria. Uma vez livre da miséria o sujeito poderá começar a procurar outros que pertençam a mesma minoria e organizar alguma forma de mudar a percepção da maioria, mesmo quem não pertença à minoria pode começar a se engajar no processo e aderir a defesa da causa da minoria em questão. É possível que empresários pouco preocupados com valores coletivos e muito preocupados com lucro comecem a contratar os membros da minoria que muito provavelmente aceitarão fazer o mesmo trabalho por salários menores. No futuro os empresários que procederam de tal forma poderão até ser condenados, mas naquele momento foram a diferença entre a miséria e uma vida com alguma dignidade. Também é possível que alguma comunidade não esteja interessada nas particularidades do indivíduo e ele acabe conseguindo fazer prosperar uma empresa dele. Enfim, as possibilidades são mais do que eu posso listar ou mesmo imaginar, mas todas dependem da descentralização do poder econômico. Se o poder religioso também for descentralizado é possível que alguns líderes religiosos também aceitem o membro da minoria. Uma vez livre do inferno e da miséria fica mais fácil para um indivíduo organizar um movimento coletivo.

Tudo isso que estou falando pode parecer abstrato e distante da realidade, alguns amigos de esquerda podem dizer que é cinismo, mas se o leitor observar bem a história do movimento LGBT verá um padrão semelhante ao que descrevi de forma idealizada. As histórias de Oscar Wilde e Alan Turing são horríveis e aconteceram em uma sociedade aberta, mas a sociedade inglesa encontrou os meios para se redefinir e hoje David Cameron consegue apoiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e ser líder do Partido Conservador. O que aconteceu em Cuba ou na Coreia do Norte no mesmo período? Por que? Mesmo a ficção mostra a diferença entre os dois tipos de sociedade. Em 1993 foi lançado o filme Filadélfia onde um advogado gay era exposto pela AIDS e, por isso, perdia o emprego, na sequência ele encontra um advogado estilo topa tudo por dinheiro e da parceria sai o troco na empresa que o demitiu. Em 1994 o filme Morangos e Chocolates foi lançado tratando da homossexualidade em Cuba, não havia um advogado para ser coadjuvante em uma eventual virada do personagem, um advogado que topa tudo por dinheiro seria visto em Cuba como uma aberração de sociedades capitalistas onde a ganancia parece se sobrepor à generosidade e ao altruísmo. Nos dias de hoje a história de Andrew, personagem principal de Filadélfia, pareceria fora de tempo, até onde eu saiba a história de Diego, personagem homossexual de Morangos com Chocolate, ainda é normal na Cuba de hoje.


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