quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Transações correntes, balança comercial e crises: não há motivo para festas.

Tenho visto algumas comemorações por conta do saldo da balança comercial que foi positivo e acima do previsto. Em termos gerais associar saldos positivos da balança comercial a progresso e crescimento econômico é um resquício da lógica mercantilista que ainda assombra o pensamento econômico. Nunca é demais lembrar que a obra geralmente aceita como fundadora da ciência econômica, Um Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações de Adam Smith, tinha como objetivo central argumentar que a riqueza das nações não vinha de saldos comerciais positivos e sim de ganhos de produtividade. Porém, em algumas condições, um país acaba sendo obrigado a buscar saldos comerciais positivos, a obrigação não é imposta por economistas ou governantes e sim pela dinâmica do próprio mercado.

A necessidade de saldos comerciais positivos costuma aparecer quando um país pega dinheiro no exterior e usa tais recursos para atividades que não geram um retorno econômico compatível com o custo do dinheiro que foi trazido do exterior. Se uma empresa brasileira pega dinheiro no exterior para aplicar em um projeto de alto retorno a renda gerada pelo projeto será suficiente para equilibrar os pagamentos do empréstimo, juros e principal, sem grandes problemas e sem necessidade de mudanças no câmbio. Se o recurso é usado em projetos sem retorno será preciso conseguir dinheiro em outro lugar ou esperar por ajustes no câmbio para que o problema seja resolvido.
A variável econômica que mede o quanto de recursos um país pega ou manda para o exterior é o saldo em transações correntes, além da balança comercial as transações correntes incluem o dinheiro enviado a recebido à guisa de juros ou de outras remunerações de fatores. Quando o saldo em transações correntes é positivo o país está mandando renda para o exterior, pode ser como empréstimos ou como pagamento de empréstimos, quando o saldo é negativo o país está recebendo renda do exterior. O gráfico abaixo, retirado diretamente da página do Banco Central, mostra o saldo em transações correntes como proporção do PIB. Trata-se de uma das melhores maneiras de entender nossa história econômica recente.




A década de 1950 é lembrada como um período de prosperidade, Getúlio Vargas até hoje é chamado de pais dos pobres e Juscelino Kubitschek é lembrado pelos 50 anos em 5. Repare que na década de 50 o saldo em transações correntes era negativo, ou seja, estávamos sendo financiados pelo resto do mundo, a conta chegou no início da década de 1960, lembrada por crises e um golpe militar. O governo militar reabriu as possibilidades de financiamento externo que foram facilitadas pela crise do petróleo que colocou as grandes economias mundiais em recessão no começo da década de 1970. O gráfico mostra claramente como foi o financiamento do Milagre Brasileiro e porque até hoje os governos militares são lembrados como um período de prosperidade. A conta do regime militar chegou no começo da década de 1980, a fim da crise nos países ricos trouxe inflação por lá e como consequência ocorreu um aumento da taxa de juros no mundo, faz um Google por Paul Volcker para conhecer esta história, o dinheiro fácil sumiu e lá fomos nós ter de pagar nossa conta. Não por acaso a década de 1980 é lembrada como a década perdida.

No início da década de 1990 o ciclo começa a se repetir, desta vez no lugar de comprar infraestrutura como em JK e nos governos militares decidimos “comprar” estabilidade econômica. Mais uma vez o saldo em transações correntes ficou negativo, ou seja, estávamos novamente nos financiando com o resto do mundo. A conta da década de 1990 chegou no começo do século XXI na sequência da crise dos países emergentes. Foi por esta época que FHC apareceu com o lema “exportar ou morrer”, mais uma vez caminhávamos para uma crise econômica e política. Em 1999, logo após as eleições de 1998, o PT pediu o impeachment de FHC e a popularidade do governo entrou em queda livre (qualquer semelhança não é mera coincidência), em 2002 acabava o período tucano que em seu auge alguém falou que iria durar mil anos. Lula chega ao poder com o abacaxi de um ajuste nas mãos, seguido o rumo normal provavelmente teríamos mais uma década de crise, se bem trabalhada a estabilidade seria mantida, mas a recessão era inevitável. Daí o “milagre” aconteceu com o boom das commodities e os juros baixos nos EUA e por consequência no mundo. O boom das commodities garantiu o saldo da balança comercial sem sacrifícios, no lugar do dramático “exportar ou morrer” tivemos o maravilhoso “exportar, importar e viver bem”, a queda dos juros permitiu acesso a capital barato, ou seja, menos juros pagos para o exterior e taxas menores por aqui. O pagamento da conta foi adiado.

Já falei diversas vezes, mas nunca é demais lembrar, que aqui perdemos uma oportunidade de ouro de colocar o Brasil em uma rota de crescimento de longo prazo. Como a economia estava estabilizada não havia mais a necessidade de “comprar” estabilidade, o regime de câmbio flutuante nos liberou de elevar juros para defender o real aliviando a pressão dos juros na dívida pública. A situação fiscal relativamente controlada exigia alguma atenção, o que foi feito em 2003, mas não era uma barreira definitiva ao crescimento. Em 2005 Palocci, então Ministro da Fazenda, propôs um ajuste fiscal de dez anos que se tivesse sido feito teria legado uma situação muito mais favorável para enfrentar a época de ajuste. Infelizmente a Ministra Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, conseguiu barrar o ajuste. O fato é que a partir de 2006 abandonamos a agenda de reformas e voltamos a usar a estratégia das décadas de 1950 e 1970, em 2011 abandonamos o compromisso com a estabilidade e demos o passo definitivo para a crise atual. Neste momento todo cuidado é pouco, o ciclo das transações correntes não é maldição divina, decorre de vários fatores inclusive e principalmente de decisões que tomamos, boas decisões podem prolongar a fase de financiamento externo ou deixar a economia preparada para um ajuste indolor, decisões ruins geram grandes crises.

Como a balança comercial entra na história? Lembra do “exportar ou morrer”? É isso. Pagamentos de juros e outros serviços de fatores são peças importantes do saldo em transações correntes, mas no curto e médio prazo estão dados, logo o caminho para começar a reverter o saldo em transações correntes passa pela balança comercial. A figura abaixo ilustra o que estou dizendo, a história contada pela balança comercial é diferente da história contada pelas transações correntes, a principal diferença são os juros, mas é possível ver que toda vez que foi preciso reverter as transações correntes a ajuste começou pela balança comercial.




Aqui é válido olhar com atenção para a década de 1980, como vimos foi nesta década que ocorreu o ajuste para pagar a conta da década de 1970, reparem que por quase toda a década tivemos saldo positivo na balança comercial e isso não impediu que a década fosse perdida. Que o aumento do saldo da balança comercial costume ocorrer em épocas de crise não é nenhuma surpresa, pelo contrário. Modelos macroeconômicos básicos, do tipo usados em cursos de graduação, colocam as exportações como função do câmbio real no sentido que quanto mais desvalorizada a moeda local (quanto mais caro for o dólar) maiores serão as exportações, por sua vez as importações são apresentadas como função do câmbio real e da renda do país, quanto mais desvalorizado o câmbio (quanto mais caro for o dólar) menores serão as importações e quanto menor a renda menores as importações. Sendo a balança comercial a diferença entre exportações e importações fica fácil perceber que o saldo da balança comercial aumenta quando o dólar fica caro e/ou quando a renda cai.

Com esta lógica vários economistas (inclusive, mas não exclusivamente, os desenvolvimentistas) enxergam a desvalorização como o melhor caminho para gerar saldos positivos na balança comercial. Sendo eu um economista ortodoxo/liberal/neoclássico/malvadão não me alinho com o pessoal que pede a desvalorização do câmbio real, meu motivo é simples: via de regra governos não conseguem determinar preços e quando conseguem é por pouco tempo e com alto custo. O câmbio real, assim como outros preços, acaba ficando onde tiver de ficar independente dos desejos dos elaboradores de política econômica. De fato, quando governos interveem para definir o câmbio acabam criando inflação no caso de tentativas de desvalorizar o câmbio na marra ou entram no famoso e desastroso populismo cambial quando forçam uma valorização artificial do câmbio. Deixemos o câmbio o flutuar e cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida.

Se o câmbio não é capaz de fazer o serviço resta uma crise econômica que derrube a demanda por importações, foi o que aconteceu na década de 1980 onde a despeito da maxidesvalorização cambial do Delfim tivemos uma gigantesca crise, foi o que poderia ter acontecido em 2002 e é o que está acontecendo agora. Não é que o governo esteja forçando uma crise para ajustar o lado externo, é que a crise está se impondo ao governo, assim como na década de 1980 o governo vai tentar de tudo para evitar o aprofundamento e alongamento da crise, mas crise econômicas são parecidas com atoleiros, quanto mais o infeliz se debate mais afunda e mais dificulta a saída. O caminho para sair da crise passa por serenidade e pelo entendimento que a crise existe, decorre de decisões erradas que tomamos e que pode ser superada.


A superação da crise não é fácil, mas é possível. Em primeiro lugar é preciso que o governo mantenha o pé no chão e não faça nada que comprometa ainda mais a estabilidade, outra deterioração das expectativas no estilo 2015 pode ser fatal. Depois é preciso retomar a agenda de reformas que permitam o crescimento da produtividade, a redução de burocracia e entraves a competição é um elemento fundamental, também é necessário encontrar formas de permitir e ampliar investimento privado em cada vez mais setores de infraestrutura. Enquanto tais reformas são discutidas é necessário contornar a crise fiscal por meio de corte de gastos e aumento na eficiência de impostos, porém mantendo o princípio que a criação ou aumento de alíquota de um imposto deve sempre vir acompanhada do fim ou redução de alíquotas de outros impostos de forma que a carga tributária não aumente. No longo prazo será preciso desfazer o nó da educação e da pesquisa.


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