O governo brasileiro não é o primeiro nem será o último a
usar de recursos públicos e do poder de fazer leis para tentar mudar as decisões
das famílias ou das empresas. Tais intervenções são objetos de intensos debates
entre economistas e outros cientistas sociais, em termos teóricos é possível
construir bons argumentos para defender e para criticar as intervenções do
governo. Alguns argumentos contrários à intervenção partem da ideia que o
mercado faz o melhor trabalho possível na alocação dos recursos e que qualquer alteração
levará fatalmente a perdas de bem-estar. Os defensores da intervenção costumam apontar
que o mercado pode falhar em diversas situações e que o governo pode corrigir
essas falhas e que assim procedendo leva a sociedade a um maior nível de
bem-estar.
Quem me acompanha aqui no blog sabe que eu me alinho no grupo
dos que acreditam que o mercado faz um trabalho melhor que o governo na
alocação de recursos. Porém, como economista, reconheço e entendo as
possibilidades teóricas que permitiriam ao governo corrigir o mercado, o
aprendizado destas situações faz parte da formação de qualquer bom economista.
Reconhecer que o mercado pode falhar, as vezes pode falhar miseravelmente, e ao
mesmo tempo negar que o governo pode fazer um trabalho melhor que o mercado é
uma contradição? Creio que não. Para concluir que o governo deve conduzir as
decisões econômicas das famílias e das firmas não basta acreditar que o mercado
falha, é preciso acreditar que o governo pode corrigir as falhas do mercado. Aí
que a coisa pega.
A maior parte dos modelos que justificam a intervenção do setor
público nas decisões das famílias e das firmas supõem que o governo tem a
informação necessária para colocar as coisas no lugar certo, que o governo
deseja o melhor para a sociedade e/ou que é possível definir o que é melhor
para sociedade. Eu não concordo com nenhuma das três hipóteses, pelo menos não
em termos gerais. Não sou o único, muitos outros economistas discordam de uma
ou mais das três hipóteses acima e, por isso, são céticos em relação às intervenções
do governo na economia. Vários livros, artigos científicos e textos para
divulgações em revistas e blogs já foram e ainda serão escritos a respeito das
hipóteses necessárias para justificar a intervenção do governo nas vidas das
pessoas, esse post não é um deles. No lugar de discutir teorias vou usar um
exemplo de intervenção para questionar a aplicabilidade e os perigos existentes
nas três hipóteses acima.
O exemplo é a MP 677 (link aqui para MP e link aqui, aqui e
aqui para reportagens a respeito da MP). Um dos pontos da medida provisória é
estender até 2037 o subsidio no preço da energia elétrica concedido às empresas
que são intensivas em energia elétrica e atuam na região Nordeste. O argumento
a favor da medida é que sem o subsidio as empresas sairão da região o que causaria
uma perda de emprego e de renda no Nordeste. Para que o leitor tenha noção do
tamanho do subsidio as empresas beneficiadas pagarão certa de R$ 130,00 por
megawatt-hora, no mercado spot o megawatt-hora custa R$ 364,00 (link aqui), não
achei dados relativos a quantidade de energia usadas pelas empresas
beneficiárias e, portanto, não tenho estimativas do valor total do subsídio.
É de se esperar que fato a concessão de tamanho subsidio impeça
que algumas empresas reduzam atividade e demitam empregados, porém a questão é
mais complexa. Como a medida afeta outros setores? De saída me parece razoável
supor que o subsidio retira incentivos para que as empresas beneficiadas invistam
em tecnologias poupadores de energia. Sem sentir o peso do custo da energia as
empresas beneficiadas não terão motivos para pesquisar ou adquirir tecnologias que
usem menos energia do que a tecnologia que está sendo atualmente utilizada. Ao
não poupar energia tais empresas pressionam a demanda por energia o que tem o
efeito de aumentar o preço da energia para as famílias e as firmas não
beneficiadas. Ao não investir em pesquisa a firma pode deixar de contratar
engenheiros e cientistas. Ao não comprar máquinas com tecnologia poupadora de
energia as firmas podem deixar de adquirir outras tecnologias que estivessem
embutidas nas máquinas.
De saída vemos que a política que visava salvar renda e
empregos pode levar a um aumento no custo, e, portanto, na renda real de várias
famílias, pode eliminar empregos de engenheiros e cientistas, pode atrasar a
substituição de tecnologias velhas por tecnologias novas, pode agravar problemas
ambientais. Tem mais, as empresas que não receberam o benefício podem ser
expulsas do mercado levando a um aumento da concentração e consequente aumento
do preço e redução da produção dos bens e serviços dos mercados onde as
empresas beneficiadas atuam. É possível, na realidade é muito provável, que
existam muitos outros efeitos que não me ocorrem agora. Considerando tudo isso
quais seriam os efeitos finais do subsidio? Não sei, o problema é que governo
também não sabe, na verdade ninguém sabe pela simples razão que não é possível
saber. Via de regra as interações que ocorrem no mercado são muito complexas para
que sejam previstas e mensuradas com o grau de precisão necessária para justificar
o uso do dinheiro dos contribuintes e para garantir que os prejuízos não serão
maiores que os custos. É bem possível que o custo da medida seja maior que o
previsto pelo governo e que os efeitos sejam bem diferentes do desejado.
Impressiona que o governo não tenha aprendido essa lição quando da última intervenção
no setor elétrico. Naquela oportunidade o governo prometeu energia abundante e
barata e entregou energia cada vez mais cara e mais escassa.
Mesmo que o governo tivesse condições de estimar com
precisão todos os ganhos e perdas do subsidio haveria o problema de ponderar
ganhos e perdas de diferentes famílias e firmas. Suponha que seja possível
afirmar que quinhentos empregos serão salvos pela medida, mas que as perdas das
empresas não beneficiadas custarão cem empregos e o aumento do custo da energia
destruirá cinquenta pequenas empresas com perda de cem empregos. O que vale
mais dez empregos salvos ou três pequenas empresas destruídas? E se uma das
empresas fosse a única fonte de renda de uma família com dois idosos e quatro
crianças? E se um dos empregos salvos for de um senhor de cinquenta anos que
sustenta o irmão que tem uma doença que o impede de trabalhar? Como medir o que
é mais importante?
Finalmente suponha que seja possível mensurar os efeitos da
medida e definir um critério que torne possível ponderar as perdas e ganhos das
diversas famílias e empresas que serão afetadas pela medida. Quem garante que o
governo vai seguir o que é melhor para todos? E se o melhor para todos for não
dar o subsidio e isso trouxer grandes prejuízos para as empresas que receberiam
tais subsídios? E se uma das empresas for financiadora de campanha do partido
do político que vai tomar a decisão? O aumento do preço da energia pode ser
prejudicial para várias pequenas empresas espalhadas por todo o Nordeste, mas as
perdas de cada empresa talvez não sejam tão volumosas e em alguns casos os
prejudicados não têm informações suficientes para estabelecer o vínculo entre o
subsidio e o aumento no preço da energia. Mesmo que as perdas sejam grandes e
as empresas saibam exatamente a origem das perdas talvez as pequenas empresas
não sejam organizadas suficiente para fazer valer os interesses delas. Por
outro lado, as grandes empresas beneficiadas pelo subsidio sabem que os ganhos
envolvidos são consideráveis, sabem que os ganhos decorrem da implementação do
subsídio e, por serem poucas, podem se organizar facilmente para pressionar
pela adoção da política.
Talvez o leitor não esteja convencido dos problemas que
apontei, talvez o leitor acredite que estou abusando na má vontade com os
políticos. Nesse caso o leitor talvez se interesse em saber que as principais
empresas beneficiadas pela MP 677 são a Vale, a Braskem e a Gerdau. A Vale e a
Gerdau dispensam apresentações, a Braskem é controlada pela Odebrecht. A
empresa daquele sujeito que ameaçou destruir a República se fosse preso e
quando foi preso preferiu soltar uma nota criticando o juiz que o sentenciou...
sinceramente, acho que o problema que você coloca desvia o foco do assunto. Preços absurdos engendrados pelo processo de privatização. Este é o problema e analisá-lo em mais detalhe requer a leitura integral dos contratos - eu não fiz, porque ninguém quer me pagar por isso! Mas os professores pesquisadores, analistas do Senado ou Câmara deveriam fazer-los!
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