terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

1994

O assunto do dia hoje foi o discurso de FHC a respeito dos 20 anos do Plano Real. Pensei em fazer um post mais técnico sobre o Plano Real, mas decidi que não, tanto os autores do Plano quanto os que o implementaram e o administraram estão vivos e podem explicar o Plano de forma muito melhor do que eu. Gustavo Franco, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha e, claro, Fernando Henrique Cardoso estão aí firme e fortes dando palestras e escrevendo sobre o Plano que mudou o Brasil. Desta forma optei por dar um depoimento pessoal sobre como era o mundo em 1994 na perspectiva de um estudante de economia, vindo do Ceará e fazendo o segundo ano do mestrado na Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, também conhecida com EPGE.

Naquele tempo a hiperinflação fazia parte da vida de todos os brasileiros, mesmo vivendo com a renda de bolsista eu costumava aplicar o valor da bolsa no Overnight e usava cartões de crédito para adiar meus pagamentos por até 45 dias. Era uma época que ainda não existia internet no Brasil e tanto as aplicações quanto as compras de cartão de crédito eram feitas com papel. Na prática isto implicava que, por exemplo, no início de cada tremeste tínhamos que descer na agência do banco antes das quatro da tarde, fazer a aplicação e depois das cinco pegar o metrô para comprar os livros na Interciência de forma que o papel do cartão fosse preenchido depois do expediente, com sorte teríamos os tais 45 dias até o pagamento. Parece outro mundo? Era outro mundo.

Os sucessivos fracassos dos choques heterodoxos tinha deixado no ar uma desconfiança com planos econômicos e economistas em geral. As conversas eram que viveríamos sempre com inflação até porque o bancos não permitiram o fim da inflação, ironicamente hoje os bancos são acusados de não permitir a redução da taxa de juros. Existiam teorias das mais diversas para explicar inflação: fenômeno cultural, luta de classes, economia oligopolizada, inflação inercial e todo um aparato de explicações heterodoxas para inflação brasileira, a possibilidade que a inflação brasileira resultasse de um descontrole monetário e fiscal era vista com desconfiança. O Brasil era diferente. Só economistas ortodoxos poderiam acreditar que a inflação brasileira tivesse as mesmas causas que a inflação em outros países. Eu estava no lugar onde estavam os economistas ortodoxos. Não estava lá por acaso, quando correu a notícia que eu iria para EPGE meu professor e hoje amigo Flávio Barreto me chamou e falou: vão te dizer para não ir para EPGE, vão dizer que é uma escola de engenheiros e que com sua classificação da ANPEC você pode ir para USP, UFRJ ou Unicamp, ouça tudo, não tente argumentar e vá para EPGE. Foi o que fiz. Até hoje tento passar a frente este conselho do Flávio.

Na EPGE fiz os cursos obrigatórios de macroeconomia com o Renato Fragelli, Mario Henrique Simonsen (que por problemas de saúde saiu no meio do curso) e com o Fernando Holanda. Os dois primeiros eram cursos de IS-LM-BP, o Fernando Holanda abordava modelos dinâmicos, porém sem otimização. Para estudar otimização intertemporal em tempo discreto era preciso fazer o curso do Alosio Araujo, só fui ver aplicações de otimização intertemporal em macro no segundo ano com a checada do Pedro Ferreira, que acabou sendo meu orientador. Desta forma o que se chamava economia ortodoxa na época não eram os modelos RBC ou novos-keynesianos de hoje, eram o modelo IS-LM-BP de inspiração keynesiana. Não vou nem tentar descrever o que eram os heterodoxos da época, basta dizer que acreditavam que congelamento de preços podia acabar com a inflação, tese parcialmente aceita até por alguns ortodoxos da época. Era realmente outro mundo.

Foi neste ambiente que apareceu o Plano Real. Para quem tinha sido aluno do Fernando Holanda era impossível não perceber a semelhança entre o Plano e a lições de Thomas Sargent no clássico artigo "The Ends of Four Big Inflations". Era espantoso, só tínhamos visto modelos de expectativas racionais em uma parte de um dos cursos de macroeconomia, justamente o do Fernando Holanda. Como entender aquele Plano sem congelamento de preços e sem referências explícitas ao modelo IS-LM? Minha reação foi começar a ler tudo que podia a respeito de macroeconomia das expectativas racionais e seguir uma estrada que me levou aos modelos RBC. Mas não foi por aí que os debates seguiram.

As discussões primeiro diziam respeito a se o Plano Real seria mais um fracasso ou se funcionaria, Reinaldo Azevedo fez uma coletânea de depoimentos da época afirmando que o Plano Real daria errado. Não é de se espantar tanto ceticismo, se na EPGE, templo da ortodoxia, mal se via a macroeconomia de Chicago que dirá fora da EPGE. O Plano Real estava muito a frente do tempo da academia brasileira, muito mesmo. Mas na EPGE o Plano foi bem recebido. Lembro que o Mario Henrique Simonsen quando se despediu da direção de ensino da EPGE nos falou que com o fim da inflação teríamos de ganhar a vida honestamente, ou seja, não teríamos os ganhos fáceis de um sistema financeiro em um país com hiperinflação. Dois temas eram particularmente discutidos: a necessidade de disciplina fiscal para manter a inflação sob controle e a possibilidade de fixar o câmbio por lei nos moldes da Argentina. O primeiro tema estava relacionado a discussão de Thomas Sargent e Neil Wallace em "Some Unpleasant Monetarist Arithmetic", qual seja, sem disciplina fiscal o controle da política monetária não é suficiente para evitar a inflação. O segundo tema tratava da discussão de quanto de autonomia o Banco Central devia abrir mão, os defensores do modelo argentino argumentavam que transformar o BC em uma Caixa de Conversão e abrir mão da política monetária era a única maneira de conseguir a credibilidade necessária para manutenção do Plano Real. O debate foi ganho pelos que defendiam um regime mais flexível que permitisse algum controle do BC sobre a política monetária. Minha referência para esta discussão é o texto do Aloisio Araujo e do Cypriano Feijó chamado "Bandas de Câmbio: Teoria, Evidência Empírica e sua Aplicação para o Brasil". Nesta época me convenci que o Plano Real era mesmo diferente e daria certo.
Acompanhei o desenrolar do Plano com o interesse possível a um estudante de economia que gostava de macroeconomia, estava confiante no Plano, mas que tinha de defender uma dissertação e preparar aplicações para o doutorado no exterior. 

Quando voltei ao Brasil o Plano Real era um sucesso indiscutível, FHC estava indo para o segundo mandato e a discussão estava focada no regime cambial. O novo debate era entre os que defendiam um regime de câmbio flexível e os que defendiam a manutenção do controle de câmbio, o antigo regime de bandas se tornara quase um regime de câmbio fixo. Fiquei do lado dos que pediam câmbio flexível, mas esta é outra história.

3 comentários:

  1. Muito bom o post, Roberto. Deve ter sido uma época legal pra estudar economia. Incrível como em 94 ainda não tinha macro decente no Brasil. E pior ainda é que mesmo hoje só tem, talvez, 5 escolas no Brasil que apresentam alguma coisa de macro moderna durante o curso de doutorado. A grande maioria fica ensinando uns risíveis IS-LM repaginados, que eles chamam de dinâmicos e com incerteza, apesar de não apresentarem nenhuma das 2 coisas. Triste, muito triste. Será que o ensino de economia avança algum dia?

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo depoimento e reflexões, Ellery. Abraços, José Matias-Pereira

    ResponderExcluir
  3. Roberto,
    Muito bom o post. Parabéns, viu?
    Escreva mais sobre o estudo da economia/economia acadêmica e/ou sobre sua vida de estudante de mestrado/doutorado.
    Esses tópicos sempre são muito interessantes para os que gostamos da academia.

    ResponderExcluir