Houve um tempo em que desenvolvimentistas acreditavam que os
países da América Latina podiam ser comparados. Acreditavam tanto nisto que
aplaudiram, apoiaram e participaram da criação e das atividades da Comissão
Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Na época a ideia era que os
países da América Latina faziam parte do que eles chamavam de periferia do
capitalismo, de forma que estavam condenados a produzir matérias primas para
abastecer os grandes centros econômico e, na condição de produtores de matérias
primas, não compartilhariam dos benefícios do progresso técnico trazido pelo
capitalismo. A proposta dos economistas que se aglutinaram na CEPAL era que os
governos dos diversos países do continente deviam atuar ativamente criando
políticas de industrialização. Só assim a América Latina poderia compartilhar
dos frutos do progresso. De certa forma a CEPAL com seu diagnóstico e sua
prescrição criaram o que hoje chamamos de desenvolvimentismo.
A convicção de que os países da América Latina estavam no
mesmo barco fica clara no seguinte trecho de Raúl Prebisch:
“Ainda que esses países tenham tantos problemas de caráter semelhante, não foi possível nem mesmo realiza ruma abordagem comum para seu exame e sua elucidação. Não é de estranhar, então, que frequentemente prevaleça nos estudos que se publicam sobre a economia da América Latina o critério ou a experiência particular dos grandes centros da economia mundial.” (Manifesto Latino Americano e Outros Ensaios, organizado por Adolfo Gurrieri)
A passagem não podia ser mais clara, segundo Raúl Prebisch
os países da América Latina não apenas compartilhavam problemas de caráter semelhante
como a experiência dos grandes centros da economia mundial. Claro que alguém
pode argumentar que quando Prebisch escreveu o Manifesto Latino Americano isto
era verdade, mas que hoje não é mais. Pode ser, mas não deixa de ser estranho
que os que defendem o desenvolvimentismo acreditem que as premissas do
desenvolvimentismo não sejam mais válidas. Seria o caso de se perguntar a razão
de defender as prescrições quando se afirma que as premissas perderam a
validade.
Ocorre que os desenvolvimentistas que estão no nosso governo
decidiram que o Brasil não mais pode ser comparado com a América Latina.
Afirmam que atualmente o Brasil pertence ao grupo das grandes economias e é com
elas que o Brasil deve ser comparado (fiz um exercício do tipo aqui, o
resultado não foi bom para o Brasil). Curiosamente quando defendem política
industrial e proteção à indústria esquecem que agora somos ricos e nos tratam
como uma economia que ainda precisa se industrializar. Alguns mais empolgados
chegam a dizer que os países ricos só pararam de proteger a indústria local
quando esta já estava desenvolvida e que devíamos fazer o mesmo. Que usem dois
argumentos contraditórios, algumas vezes no mesmo texto, não parece ser motivo
de preocupação. Somos europeus ou latino-americanos quando convém.
Pois bem, melhor do que fazer reflexões a respeito de qual nosso
grupo de comparação é definir quais critérios permitem a comparação de países e
checar se por tais critérios estamos mais próximos de nossos vizinhos ou das
nações ricas. O argumento mais comum para dizer que não mais podíamos comparar
o Brasil com os países da América Latina, especialmente com o Chile, era que o
Brasil é uma economia industrializada (de novo a conveniência) e o Chile é um
exportador de commodities. Não creio que este seja um argumento particularmente
relevante, se a comparação diz respeito ao desempenho da economia diante de uma
crise internacional ele até poderia ser usado para explicar um eventual
desempenho ruim do Chile, não do Brasil. Afinal uma economia que depende de
exportações de commodities deveria sofrer mais com uma crise internacional do
que uma economia industrializada. Mesmo sem estar convencido do argumento
resolvi checar os dados (comentei aqui), o fato é que a participação da
indústria no PIB chileno é maior que a participação da indústria no PIB
brasileiro, ou seja, o Chile é mais industrializado que o Brasil! Usei dados de
indústria como um todo, com a indústria de transformação na casa de 11% do PIB
o resultado se manteria se olhássemos apenas para indústria de transformação.
Antes que alguém diga que eu acabei de explicar o melhor desempenho do Chile
diante da crise informo que o Brasil não é uma pequena economia que depende de
exportações, pelo contrário, somos uma economia fechada.
Não sei se tenho algum leitor desenvolvimentista aqui no
Blog ou se desenvolvimentistas prestam atenção no que eu digo ou escrevo, mas
não tenho mais visto o argumento de que somos mais industrializados. Talvez
eles tenham olhado os dados e visto que o argumento não se aplicava ao caso,
afinal alguns desenvolvimentistas acompanham com cuidado e preocupação a queda
da participação da indústria de transformação no PIB. Pode ser ainda melhor e
eles tenham percebido que o argumento, mesmo que se aplicasse, é ruim. De uns
tempos para cá no lugar de falar de indústria resolveram falar de tamanho.
A presidente Dilma deu a senha quando em um dos debates afirmou
que não se podia comparar o Brasil com o Chile porque o segundo era pequeno.
Com a clareza habitual a presidente induziu várias pessoas a pensar que ela se
referia ao tamanho geográfico do país, conhecendo os desenvolvimentistas há
muito tempo eu percebi que ela falava do tamanho do PIB. Comentei que o
critério para comparação não era PIB, mas PIB per capita ou PIB por
trabalhador. Recentemente, em evento no IPEA, o Ministro Mauro Borges (MDIC) explicou
melhor o argumento, segundo o ministro a eficiência marginal do capital (é como
os keynesianos chamam o valor presente esperado do fluxo de renda gerado pelo
bem de capital, para neoclássicos e afins equivale ao valor presente da
produtividade marginal do capital durante a vida útil do bem de capital) no
Chile é maior do que no Brasil pois o estoque de capital no Chile é menor que o
nosso. Fiquei surpreso e feliz por ver um economista heterodoxo fazendo um
argumento de rendimentos decrescentes, melhor ainda que o economista em questão
é alguém que respeito, embora discorde, como acadêmico e admiro como pessoa.
Antigamente a qualquer menção de rendimentos decrescentes os amigos heterodoxos
me explicavam como funcionam as economias de escala, de escopo, as
externalidades, os spillovers e um monte de coisas do tipo. Até porque em um
mundo de rendimento decrescentes fica mais difícil defender políticas
industriais...
O fato é que se a eficiência marginal do capital no Chile é
maior do que no Brasil então o ministro tem um ponto. Na prática a eficiência marginal
maior significa que existe mais e melhores oportunidades de investimento no
Chile do que no Brasil. Mas... será que é? Será que por ter mais capital o
Brasil tem menos e piores oportunidades de investimento. Antes de responder
convido o leitor a responder uma pergunta simples. Quantas churrascarias “cabem”
em uma cidade? Espero que a resposta tenha sido “depende da cidade”. Quando
jovem lembro de ter ido algumas vezes com meu pai a Tabuleiro do Norte, uma
cidade cearense que fica na região de Jaguaribe, lá vivem 29.210 pessoas, são
33,89 habitantes por km2. Não é difícil perceber que em Tabuleiro do
Norte “cabem” menos churrascarias que em São Paulo com seus 11.895.893 habitantes
(7.810,9 hab/km2). Pela lógica do argumento do ministro se Tabuleiro
do Norte tiver duas churrascarias e São Paulo tiver dez churrascarias seria
possível afirmar que Tabuleiro do Norte tem mais e melhores oportunidades de
investimentos em churrascarias do que São Paulo. Espero ter ficado fácil ver a
falha na lógica de quem comparar valores do estoque de capital, é preciso
considerar quantas pessoas e/ou podem operar o capital. Talvez algumas poucas
churrascarias atendam toda a demanda e empreguem todos os churrasqueiros e
garçons da pequena e pacata (pelo menos na minha memória) Tabuleiro do Norte,
certamente estas poucas churrascarias nem atendam a demanda nem empreguem todos
os churrasqueiros de um bairro em São Paulo.
A implicação direta do parágrafo acima é que as comparações
entre estoques de capital devem levar em conta o estoque de capital divido pela
quantidade de trabalhadores (ou pela população), a famosa relação capital trabalho.
Se o leitor tem algum treino em economia certamente já viu o exemplo de uma
Cobb-Douglas onde a produtividade marginal do capital é função decrescente da
relação capital trabalho, uma eventual comparação apenas do estoque de capital
só faz sentido se os países tiverem populações do mesmo tamanho, neste caso diríamos
que dada a população ou a força de trabalho quanto maior o estoque de capital
menor a produtividade marginal do capital. Segundo a Penn World Table (PWT 8.0)
em 2011 o Brasil tinha 101,3 milhões de pessoas empregadas, o Chile tinha 7,8
milhões, definitivamente é preciso ajustar pela força de trabalho.
A PWT 8.0 tem dados de capital e trabalho para 163 países em
2011. Se consideramos todos estes países a relação capital trabalho média é de
$93.150 (dólares de 2005). No Brasil a relação capital trabalho de 2011 foi de
$63.360 e no Chile foi de $91.219. Ambos estão abaixo da média, mas a relação
capital trabalho no Brasil é menor que no Chile, ou seja, pelo argumento de rendimentos
decrescentes é o Brasil deveria crescer mais do que o Chile, não o contrário.
Podemos dizer mais coisas, observar a média não é uma boa estratégia em
amostras muito desiguais como é o caso de todos os países do mundo. Uma
alternativa mais adequada é dividir os países por grupos, optei por dividir os países
em quatro grupos (é a divisão padrão do software que estou usando). O primeiro
grupo tem os 25% países com menor relação capital trabalho, o segundo os 25%
seguintes, o terceiro os próximos 25% e o quarto grupo tem os 25% com maior
relação capital trabalho. Especificamente no primeiro grupo estão os países com
relação capital trabalho entre $1.247 e $19.100, no segundo estão os países com
relação capita trabalho entre $19.100 e $63.050, no terceiro grupo estão os
países com relação capital produto entre $63.050 e $131.400, o quarto e último
grupo tem os países com relação capital trabalho entre $131.400 e $404.700.
O leitor atento reparou que Brasil e Chile estão no mesmo
grupo. Existem 41 países no grupo, não vou listar todos, mas vale destacar que
além de Brasil e Chile, o grupo tem Argentina, Colômbia, Equador, México, Peru,
Uruguai e Venezuela, também tem Suriname, que fica na América do Sul mas não é
exatamente um país latino. Em resumo, excluindo as Guianas (sou do tempo que
Suriname era chamada de Guiana Holandesa) a América do Sul tem dez países,
destes oito estão no mesmo grupo, apenas o Paraguai e a Bolívia não estão no
grupo. Além disso o México, outro que costuma ser comparado ao Brasil, também
está no grupo.
Como ficam os países ricos que segundo o discurso oficial
formam o grupo correto de comparação? Se olharmos para os países do G7 (Estados
Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido) vamos perceber
que todos estão no quarto grupo. A menor relação capital trabalho entre eles é
observada no Reino Unido ($170.366) é mais de duas vezes e meia maior que a do
Brasil. O argumento de rendimento decrescentes simplesmente não permite
concluir que o grupo de comparação do Brasil é o dos países ricos, como vimos o
de participação da indústria também não, questões históricas e culturais também
nos aproximam mais da América Latina... Enquanto os desenvolvimentistas que não
consideram a América Latina um grupo de comparação adequado procuram um novo
argumento eu vou terminar de ler o “O Manifesto Latino-Americano e Outros
Ensaios” e, quem sabe, ouvir Belchior.
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