quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ainda sobre comparar Brasil e Chile ou Os Rapazes Latinos agora preferem blues e se sentem em casa no Danúbio Azul

Houve um tempo em que desenvolvimentistas acreditavam que os países da América Latina podiam ser comparados. Acreditavam tanto nisto que aplaudiram, apoiaram e participaram da criação e das atividades da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Na época a ideia era que os países da América Latina faziam parte do que eles chamavam de periferia do capitalismo, de forma que estavam condenados a produzir matérias primas para abastecer os grandes centros econômico e, na condição de produtores de matérias primas, não compartilhariam dos benefícios do progresso técnico trazido pelo capitalismo. A proposta dos economistas que se aglutinaram na CEPAL era que os governos dos diversos países do continente deviam atuar ativamente criando políticas de industrialização. Só assim a América Latina poderia compartilhar dos frutos do progresso. De certa forma a CEPAL com seu diagnóstico e sua prescrição criaram o que hoje chamamos de desenvolvimentismo.

A convicção de que os países da América Latina estavam no mesmo barco fica clara no seguinte trecho de Raúl Prebisch:

“Ainda que esses países tenham tantos problemas de caráter semelhante, não foi possível nem mesmo realiza ruma abordagem comum para seu exame e sua elucidação. Não é de estranhar, então, que frequentemente prevaleça nos estudos que se publicam sobre a economia da América Latina o critério ou a experiência particular dos grandes centros da economia mundial.” (Manifesto Latino Americano e Outros Ensaios, organizado por Adolfo Gurrieri)

A passagem não podia ser mais clara, segundo Raúl Prebisch os países da América Latina não apenas compartilhavam problemas de caráter semelhante como a experiência dos grandes centros da economia mundial. Claro que alguém pode argumentar que quando Prebisch escreveu o Manifesto Latino Americano isto era verdade, mas que hoje não é mais. Pode ser, mas não deixa de ser estranho que os que defendem o desenvolvimentismo acreditem que as premissas do desenvolvimentismo não sejam mais válidas. Seria o caso de se perguntar a razão de defender as prescrições quando se afirma que as premissas perderam a validade.

Ocorre que os desenvolvimentistas que estão no nosso governo decidiram que o Brasil não mais pode ser comparado com a América Latina. Afirmam que atualmente o Brasil pertence ao grupo das grandes economias e é com elas que o Brasil deve ser comparado (fiz um exercício do tipo aqui, o resultado não foi bom para o Brasil). Curiosamente quando defendem política industrial e proteção à indústria esquecem que agora somos ricos e nos tratam como uma economia que ainda precisa se industrializar. Alguns mais empolgados chegam a dizer que os países ricos só pararam de proteger a indústria local quando esta já estava desenvolvida e que devíamos fazer o mesmo. Que usem dois argumentos contraditórios, algumas vezes no mesmo texto, não parece ser motivo de preocupação. Somos europeus ou latino-americanos quando convém.

Pois bem, melhor do que fazer reflexões a respeito de qual nosso grupo de comparação é definir quais critérios permitem a comparação de países e checar se por tais critérios estamos mais próximos de nossos vizinhos ou das nações ricas. O argumento mais comum para dizer que não mais podíamos comparar o Brasil com os países da América Latina, especialmente com o Chile, era que o Brasil é uma economia industrializada (de novo a conveniência) e o Chile é um exportador de commodities. Não creio que este seja um argumento particularmente relevante, se a comparação diz respeito ao desempenho da economia diante de uma crise internacional ele até poderia ser usado para explicar um eventual desempenho ruim do Chile, não do Brasil. Afinal uma economia que depende de exportações de commodities deveria sofrer mais com uma crise internacional do que uma economia industrializada. Mesmo sem estar convencido do argumento resolvi checar os dados (comentei aqui), o fato é que a participação da indústria no PIB chileno é maior que a participação da indústria no PIB brasileiro, ou seja, o Chile é mais industrializado que o Brasil! Usei dados de indústria como um todo, com a indústria de transformação na casa de 11% do PIB o resultado se manteria se olhássemos apenas para indústria de transformação. Antes que alguém diga que eu acabei de explicar o melhor desempenho do Chile diante da crise informo que o Brasil não é uma pequena economia que depende de exportações, pelo contrário, somos uma economia fechada.

Não sei se tenho algum leitor desenvolvimentista aqui no Blog ou se desenvolvimentistas prestam atenção no que eu digo ou escrevo, mas não tenho mais visto o argumento de que somos mais industrializados. Talvez eles tenham olhado os dados e visto que o argumento não se aplicava ao caso, afinal alguns desenvolvimentistas acompanham com cuidado e preocupação a queda da participação da indústria de transformação no PIB. Pode ser ainda melhor e eles tenham percebido que o argumento, mesmo que se aplicasse, é ruim. De uns tempos para cá no lugar de falar de indústria resolveram falar de tamanho.

A presidente Dilma deu a senha quando em um dos debates afirmou que não se podia comparar o Brasil com o Chile porque o segundo era pequeno. Com a clareza habitual a presidente induziu várias pessoas a pensar que ela se referia ao tamanho geográfico do país, conhecendo os desenvolvimentistas há muito tempo eu percebi que ela falava do tamanho do PIB. Comentei que o critério para comparação não era PIB, mas PIB per capita ou PIB por trabalhador. Recentemente, em evento no IPEA, o Ministro Mauro Borges (MDIC) explicou melhor o argumento, segundo o ministro a eficiência marginal do capital (é como os keynesianos chamam o valor presente esperado do fluxo de renda gerado pelo bem de capital, para neoclássicos e afins equivale ao valor presente da produtividade marginal do capital durante a vida útil do bem de capital) no Chile é maior do que no Brasil pois o estoque de capital no Chile é menor que o nosso. Fiquei surpreso e feliz por ver um economista heterodoxo fazendo um argumento de rendimentos decrescentes, melhor ainda que o economista em questão é alguém que respeito, embora discorde, como acadêmico e admiro como pessoa. Antigamente a qualquer menção de rendimentos decrescentes os amigos heterodoxos me explicavam como funcionam as economias de escala, de escopo, as externalidades, os spillovers e um monte de coisas do tipo. Até porque em um mundo de rendimento decrescentes fica mais difícil defender políticas industriais...

O fato é que se a eficiência marginal do capital no Chile é maior do que no Brasil então o ministro tem um ponto. Na prática a eficiência marginal maior significa que existe mais e melhores oportunidades de investimento no Chile do que no Brasil. Mas... será que é? Será que por ter mais capital o Brasil tem menos e piores oportunidades de investimento. Antes de responder convido o leitor a responder uma pergunta simples. Quantas churrascarias “cabem” em uma cidade? Espero que a resposta tenha sido “depende da cidade”. Quando jovem lembro de ter ido algumas vezes com meu pai a Tabuleiro do Norte, uma cidade cearense que fica na região de Jaguaribe, lá vivem 29.210 pessoas, são 33,89 habitantes por km2. Não é difícil perceber que em Tabuleiro do Norte “cabem” menos churrascarias que em São Paulo com seus 11.895.893 habitantes (7.810,9 hab/km2). Pela lógica do argumento do ministro se Tabuleiro do Norte tiver duas churrascarias e São Paulo tiver dez churrascarias seria possível afirmar que Tabuleiro do Norte tem mais e melhores oportunidades de investimentos em churrascarias do que São Paulo. Espero ter ficado fácil ver a falha na lógica de quem comparar valores do estoque de capital, é preciso considerar quantas pessoas e/ou podem operar o capital. Talvez algumas poucas churrascarias atendam toda a demanda e empreguem todos os churrasqueiros e garçons da pequena e pacata (pelo menos na minha memória) Tabuleiro do Norte, certamente estas poucas churrascarias nem atendam a demanda nem empreguem todos os churrasqueiros de um bairro em São Paulo.

A implicação direta do parágrafo acima é que as comparações entre estoques de capital devem levar em conta o estoque de capital divido pela quantidade de trabalhadores (ou pela população), a famosa relação capital trabalho. Se o leitor tem algum treino em economia certamente já viu o exemplo de uma Cobb-Douglas onde a produtividade marginal do capital é função decrescente da relação capital trabalho, uma eventual comparação apenas do estoque de capital só faz sentido se os países tiverem populações do mesmo tamanho, neste caso diríamos que dada a população ou a força de trabalho quanto maior o estoque de capital menor a produtividade marginal do capital. Segundo a Penn World Table (PWT 8.0) em 2011 o Brasil tinha 101,3 milhões de pessoas empregadas, o Chile tinha 7,8 milhões, definitivamente é preciso ajustar pela força de trabalho.

A PWT 8.0 tem dados de capital e trabalho para 163 países em 2011. Se consideramos todos estes países a relação capital trabalho média é de $93.150 (dólares de 2005). No Brasil a relação capital trabalho de 2011 foi de $63.360 e no Chile foi de $91.219. Ambos estão abaixo da média, mas a relação capital trabalho no Brasil é menor que no Chile, ou seja, pelo argumento de rendimentos decrescentes é o Brasil deveria crescer mais do que o Chile, não o contrário. Podemos dizer mais coisas, observar a média não é uma boa estratégia em amostras muito desiguais como é o caso de todos os países do mundo. Uma alternativa mais adequada é dividir os países por grupos, optei por dividir os países em quatro grupos (é a divisão padrão do software que estou usando). O primeiro grupo tem os 25% países com menor relação capital trabalho, o segundo os 25% seguintes, o terceiro os próximos 25% e o quarto grupo tem os 25% com maior relação capital trabalho. Especificamente no primeiro grupo estão os países com relação capital trabalho entre $1.247 e $19.100, no segundo estão os países com relação capita trabalho entre $19.100 e $63.050, no terceiro grupo estão os países com relação capital produto entre $63.050 e $131.400, o quarto e último grupo tem os países com relação capital trabalho entre $131.400 e $404.700.

O leitor atento reparou que Brasil e Chile estão no mesmo grupo. Existem 41 países no grupo, não vou listar todos, mas vale destacar que além de Brasil e Chile, o grupo tem Argentina, Colômbia, Equador, México, Peru, Uruguai e Venezuela, também tem Suriname, que fica na América do Sul mas não é exatamente um país latino. Em resumo, excluindo as Guianas (sou do tempo que Suriname era chamada de Guiana Holandesa) a América do Sul tem dez países, destes oito estão no mesmo grupo, apenas o Paraguai e a Bolívia não estão no grupo. Além disso o México, outro que costuma ser comparado ao Brasil, também está no grupo.

Como ficam os países ricos que segundo o discurso oficial formam o grupo correto de comparação? Se olharmos para os países do G7 (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido) vamos perceber que todos estão no quarto grupo. A menor relação capital trabalho entre eles é observada no Reino Unido ($170.366) é mais de duas vezes e meia maior que a do Brasil. O argumento de rendimento decrescentes simplesmente não permite concluir que o grupo de comparação do Brasil é o dos países ricos, como vimos o de participação da indústria também não, questões históricas e culturais também nos aproximam mais da América Latina... Enquanto os desenvolvimentistas que não consideram a América Latina um grupo de comparação adequado procuram um novo argumento eu vou terminar de ler o “O Manifesto Latino-Americano e Outros Ensaios” e, quem sabe, ouvir Belchior.



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