domingo, 20 de dezembro de 2015

Anotações a respeito do desenvolvimentismo e da chegada de Nelson Barbosa à Fazenda

A chegada de Nelson Barbosa ao Ministério da Fazenda foi acompanhada de uma série de comentários receosos com uma expansão do gasto no que seria a volta da Nova Matriz Econômica. A lógica que justifica o receio é que sendo Nelson Barbosa um economista keynesiano ele acredita que qualquer expansão do gasto público em qualquer tempo e lugar leva a um crescimento do PIB, ocorre que não é assim que pensam todos os keynesianos e isso não deixa de ser verdade se consideramos apenas os keynesianos chamados de heteredoxos. Caso não acredite em mim leia o que disse José Oreiro (link aqui), presidente da Associação Keynesiana Brasileira:

Não necessariamente. No modelo keynesiano simplificado dos livro-textos introdutórios de macroeconomia é verdade que uma contração fiscal leva a uma queda do nível de atividade econômica e emprego. Mas a realidade é mais complexa do que isso...”

É bem verdade que alguns economistas keynesianos (para não cansar o leitor vou usar o termo keynesiano para me referir ao keynesianos heterodoxos, grosso modo pós-keynesianos, não é um bom termo posto que o pensamento de origem keynesiana mais difundido na academia americana, os chamados novos-keynesianos, é visto como ortodoxo no Brasil) fazem um serviço a economistas liberais como eu ao dar vida a um espantalho que pede expansão fiscal mesmo no atual estado da economia brasileira, mas isso é tema para outra conversa, o que importa aqui é que nem todos os keynesianos estão contra o ajuste fiscal e, até onde eu tenha conhecimento, Nelson Barbosa está entre os que querem o ajuste fiscal. É claro que a origem keynesiana do pensamento de Nelson Barbosa fez com que no passado ele se recusasse a ver o problema fiscal que estava se formando, de fato Barbosa chegou ao extremo mal gosto de chamar de terrorista os economistas que, como eu, alertavam para o problema fiscal (link aqui), mas, mesmo tendo sido classificado como terrorista, não o devolverei o favor e digo que hoje não tenho motivos para não acreditar na sinceridade de Barbosa quando afirma que quer continuar com o ajuste fiscal. Só não sei se as ideias de Barbosa são compatíveis com o ajuste fiscal.

O que vale para Barbosa vale para a Nova Matriz Econômica, a perda do controle fiscal que ocorreu na vigência da Nova Matriz foi muito mais um efeito do que um desejo. O grande problema da Nova Matriz não está no lado fiscal, está na filosofia intervencionista que coloca o governo como o grande ator do processo de crescimento. Como já disseram outros economistas não fosse a queda da receita o problema fiscal seria bem menor, ocorre que a queda da receita não foi punição divina nem algo do tipo, também não foi consequência de choques externos como querem os economistas governistas, se não acredita explique porque outros países exportadores de commodities não estão com uma crise tão grande como a brasileira. A crise atual está relacionada a uma série de intervenções que podiam até ser bem-intencionadas, o noticiário da Operação Lava Jato torna quase impossível acreditar nas boas intenções das intervenções, mas tiveram consequências desastrosas. O problema da economia brasileira se deu no nível micro e foi para o nível macro, não o contrário.

Antes de seguir para origem de nossos problemas econômicos vou tratar com mais cuidado do lado macro e tentar desfazer alguns mitos relativos aos últimos anos. O primeiro e talvez mais persistente mito é que o governo Lula teve um modelo de crescimento baseado em consumo e que isso sacrificou o investimento (tratei do assunto aqui). A figura abaixo mostra a taxa de investimento no Brasil entre 1995 e 2013, os dados dessa figura e de todas as outras são das contas nacionais ano de referência 2000. Repare que não existe uma tendência de queda da taxa de investimento, pelo contrário, se fizermos uma tendência linear, linha verde, ela será crescente, se fizermos uma média móvel de dois períodos a queda só vai aparecer no final, quando a crise já era (quase) inevitável.




A verdade é que os desenvolvimentistas se preocupam com investimento, de fato elevar a taxa de investimento é uma das prioridades da agenda econômica do desenvolvimentismo, tão prioritário que os desenvolvimentistas em peso apoiaram as ações do BNDES para estimular o investimento. Na lógica desenvolvimentista o investimento induzido pelo governo de plantão é bom porque direciona os recursos para as atividades certas, via de regra a indústria, e também é bom porque estimula a demanda agregada. Não precisa de muito tempo de conversa com um desenvolvimentista para que ele comece a defender os gastos em investimento, nada muito diferente do que se encontra em nove de cada dez análises feitas por jornalistas econômicos, o que não é uma surpresa pois nove de cada dez jornalistas econômicos conversam quase que exclusivamente com desenvolvimentistas, alguns talvez não assumidos.

Quem me acompanha sabe que não sou simpático a tese que o governo deve priorizar gasto em investimento no lugar de gasto corrente, primeiro porque gasto de investimento hoje é gasto corrente amanhã, hospitais sem médicos e escolas sem professores não me parecem algo desejável, segundo porque a chance de o governo direcionar o investimento para o lugar errado é altíssima, tratarei da questão mais à frente. Naturalmente a maioria dos jornalistas econômicos com quem converso ficam espantados quando falo o que acabei de escrever, mais uma vez a razão é simples: jornalistas econômicos não estão acostumados a conversar com economistas liberais do tipo que não acredita no governo como principal indutor de crescimento, lamento, mas a parte final não foi redundante, se não acreditar no que digo busque na internet para ver quantos “economistas liberais” cedo ou tarde acabam defendendo “o papel estratégico do governo para estimular o investimento”.

Outra questão que tem de ser desmistificada é a explosão do gasto público. De fato, os governos petistas inverteram a tendência de queda do gasto como proporção do PIB, a figura abaixo ilustra bem isso. Percebam que a tendência linear para todo o período é crescente e que a tendência com média móvel se torna crescente a partir de 2004, caso o leitor esteja estranhando os números lembre que estou trabalhando com os dados das Contas Nacionais, ou seja, o gasto público é apenas o gasto em consumo, não considera as transferências (e.g. bolsa família) nem o investimento do governo.




A figura deixa claro que houve um aumento do gasto público no petismo, mas a magnitude do aumento pode não ser tão grande quanto sugerido pela figura. Se consideramos o período como um todo o gasto foi de 21,04% para 21,97% do PIB, se considerarmos apenas o período dos governos petistas o gasto foi de 20,57%, último ano de FHC, para 21,97% do PIB, último ano da amostra. A figura abaixo repete a figura acima, porém mudei a escala do gráfico para começar do zero, igual ao do investimento, repare que tudo fica bem menos impressionante desta forma. Note que não estou dizendo que um aumento no gasto de 1,5% em relação ao PIB em 10 anos não é um problema, pelo contrário, apenas estou dizendo que tal aumento não justifica que estejamos na maior crise de nossa história recente.




Dois últimos pontos relativos à macroeconomia devem ser tratados antes de seguirmos adiante. O primeiro diz respeito ao câmbio e o segundo diz respeito aos juros. Desenvolvimentistas costumam pregar que o governo deve agir para desvalorizar o câmbio e reduzir os juros, alguns desenvolvimentistas dizem que economistas ortodoxos e/ou liberais (não são a mesma coisa, mas não vou tratar da diferença hoje) defendem juros altos e câmbio valorizado. Não é verdade, economistas liberais e/ou ortodoxos via de regra acreditam que juros e câmbio são preços e, por isso, não podem e não devem ser definidos de acordo com as conveniências do governo ou de quem quer que seja. A razão dos desenvolvimentistas para pedir desvalorização do câmbio está relacionada a fixação desenvolvimentista por estimular a indústria, um câmbio desvalorizado compensaria desvantagens competitivas da indústria local e seria uma forma eficiente de proteção à indústria, em particular o câmbio desvalorizado reduziria o salário real em moeda forte. Aqui existe controvérsia entre os desenvolvimentistas, uns defendem que se o câmbio estiver no lugar certo pode ser praticamente a única forma de proteção à indústria, outros acreditam que o câmbio desvalorizado deve conviver com tarifas e outras barreiras à importação. Não sei dizer onde Nelson Barbosa se enquadra hoje, porém imagino que brutal desvalorização do real tenha acalmado o nervosismo desenvolvimentista com o câmbio. Aqui existe uma suprema ironia que não posso deixar de registrar, se José Serra, um desenvolvimentista, estiver certo, acredito que ele está errado, e vier a ser Ministro da Fazenda em um eventual governo de Michel Temer irá colher os frutos da desvalorização cambial administrada por Dilma.

Se o câmbio já desvalorizado não deve ser motivo de preocupação para o novo Ministro da Fazenda o mesmo não pode ser dito dos juros. Apesar da taxa de juros real, em tese a que é relevante para o investimento, estar em níveis baixos para os padrões da economia brasileira pós estabilização, vários desenvolvimentistas pedem a redução da taxa de juros (tratei do assunto aqui). O problema é que a inflação já passa de 10% e a conversa que é efeito da desvalorização e do ajuste dos preços administrados não resiste a uma olhada no IPCA desagregado, a inflação está generalizada. Um elemento crucial para entender a inflação alta e persistente que nos aflige são as expectativas dos agentes, a verdade é que o Banco Central perdeu a credibilidade e isso faz com que todos ignorem a meta de inflação na hora de reajustar seus preços, exemplo evidente disso é que os próprios técnicos do Banco Central não aceitam reajustar seus salários em 4,5% que é o centro da meta, nem o BC acredita no BC! Em um cenário onde o Banco central precisa recuperar credibilidade abaixar a taxa de juros pode ser desastroso, de fato, creio que apenas um aumento significativo da taxa de juros pode ter alguma chance de permitir ao BC começar um processo para reconquistar a confiança da sociedade.

Até aqui vimos que não houve uma tendência longa de queda da taxa de investimento, a história do crescimento via consumo é um mito. Houve um aumento, mas não exatamente uma explosão do gasto público. O câmbio já está devidamente desvalorizado e mesmo a taxa de juros, o último vilão dos desenvolvimentistas e do jornalismo econômico, não está alta se comparada em termos reais com nossa história pós-estabilização. Se não existe nenhum grande problema na macroeconomia como estamos em uma crise tão grande? A resposta, como eu já tinha dito, está na microeconomia.

O ativismo do governo no investimento pode gerar vários problemas na economia (alguns colegas acreditam que pode gerar coisas boas, vários destes colegas possuem blogs e/ou escrevem em grandes jornais, não vou usar meu espaço e cansar meus leitores para dizer o que eles já disseram) um deles é a locação errada do investimento. Em uma economia de mercado as decisões de investimento são tomadas por vários agentes que conhecem bem as dificuldades e os ganhos do setor onde investem, se não conhecem ou por qualquer outra razão decidem de forma errada o problema está limitado a quem fez o investimento errado. Quando o governo toma a frente do investimento a coisa muda de figura, o uso de recursos públicos ou a pressão direta do governo leva vários investidores a embarcar na mesma canoa, se a canoa virar afundam todos. A coisa fica pior, ao contrário do empreendedor privado que busca maximizar lucro o governo busca vários objetivos diferentes e algumas vezes conflitantes. A variedade e os conflitos de objetivos se refletem nos setores escolhidos para receber investimento.

Tome o exemplo do pré-sal, até lá por 2005 o Brasil despontava como líder de uma tecnologia alternativa de combustíveis aparentemente menos nocivos ao meio ambiente e que não eram de origem fóssil, sim, estou falando do álcool. O governo Lula tentou tomar encampar o projeto e teve até rusgas com nossos vizinhos bolivarianos quando Chávez chegou a afirmar que a expansão do álcool afetaria a produção de alimentos (link aqui). Não sei dizer se a aposta no álcool daria certo, o que sei é que de uma hora para outra o governo esqueceu do álcool e foi buscar a salvação de nossa economia no petróleo do pré-sal. Um petróleo em águas profundas e que, pelo menos fora do Brasil, é considerado caro.

Uma série de investimentos acompanhou a aventura do pré-sal. Os estados do Nordeste que receberiam refinarias começaram a se preparar para um novo mundo, cursos universitários e empresas foram criadas pensando na indústria do Petróleo. Houve uma tensão entre os estados da federação por conta da divisão dos royalties do pré-sal, alianças políticas foram desfeitas e construídas para garantir uma fatia maior do bolo. A indústria naval, velho fetiche desenvolvimentista, passou a ser dirigida ao pré-sal. Complexos petroquímicos foram criados e/ou expandidos. Os ganhos da Petrobras com os preços altos do petróleo já eram uma festa, com o pré-sal entraríamos no paraíso. Porém o mundo é cruel, uma guinada no preço do petróleo e o sonho virou pesadelo. Quem investiu não teve o retorno desejado e ainda perdeu ativos (financiados pelo BNDES, é claro), quem fez cursos para trabalhar nas refinarias que nunca ficarão prontas perdeu tempo e dinheiro, quem largou casa e emprego para trabalhar nas novas indústrias está desempregado e sem lar, a lista de dramas e fracassos é grande, mas não pode ser vista nas análises macroeconômicas, pelo contrário, o macroeconomista fica perplexo ao ver que a alta do investimento não se tornou crescimento do PIB sem perceber que o investimento que causou a alta foi um investimento errado e mesmo ruim.

As grandes obras não terminadas são outro exemplo de como o direcionamento do investimento contribui para a construção da crise que vivemos. O que poderia ter sido feito com todo o dinheiro usado na transposição do São Francisco? Com Belo Monte? Com a ferrovia norte-sul? Quantas empresas nasceram e morreram pensando nas obras que nunca ficam prontas e, se ficarem, não vão entregar o que prometeram. Não entendo do assunto, mas já vi muita gente dizer que quando a transposição do São Francisco ficar pronta, se ficar, talvez não tenha mais água para ser transposta.

Quer outro exemplo? Tome a menina dos olhos da intervenção petista na educação superior: o REUNI (link aqui). A expansão das universidades federais gerou um fluxo de despesas correntes que está colocando as principais universidades federais do Brasil em situação de quase falência (link aqui e aqui). Reitores passam o dia a barganhar por mais recursos para pagar limpeza, segurança e outras despesas diretamente ligadas a expansão das universidades que dirigem. Alguns dos cursos criados não encontram professores, o leitor pode imaginar o quão difícil é contratar um médico, um engenheiro ou mesmo um economista para ser professor de dedicação exclusiva em uma cidade pobre no interior do país, outros cursos têm dificuldades de encontrar alunos. Em um país com baixa taxa de investimento e escassez de capital humano o custo do REUNI pode ser maior que o de algumas obras não acabadas.

Creio que o leitor já pegou meu argumento, porém pode estar se perguntando o que Nelson Barbosa tem com isso. Tudo, digo eu. Nelson Barbosa foi o mentor de várias destas intervenções e não foi por acaso, intervenções do tipo estão no cerne do receituário desenvolvimentista para nossos problemas. Dilma concorda com as ideias de Nelson Barbosa e se o colocou na Fazenda é porque quer que tais ideias voltem a guiar a política econômica. É exatamente aí que está o perigo de Nelson Barbosa. A questão fiscal pode até aparecer, especialmente se for caso Barbosa aumentar o investimento público, mas não será o maior problema. A inflação deve crescer se Barbosa convencer o BC a reduzir juros, será um problema sério, mas não será nosso o maior problema. O grande problema é que o governo vai mobilizar uma gigantesca quantidade de recursos para que tipos como Odebrecht, Bumlai, Eike Batista, Ricardo Pessoa e André Esteves ditem os rumos de nosso desenvolvimento. Isso não tem como dar certo.




7 comentários:

  1. Caro Roberto Ellery,
    Achei muito interessante a sua distinção entre ortodoxos e liberais, termos que, para o senso comum, viraram praticamente sinônimos. Seria muito legal ler um texto sobre essa diferença sob uma ótica macroeconômica (algo mais pragmático do que uma mera leitura de HPE)

    Ps.: Parabéns pelo esforço de evitar a criação de espantalhos ao longo do texto, isso torna o debate muito mais produtivo e honesto.

    Abraço

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    1. Caro,
      Agradeço seus comentários, o texto está agendado.

      Creio que é fundamental que debatamos o Brasil sem espantalhos, existem questões importantes que evem ser discutidas. Obrigado pelo reconhecimento e apoio.

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  2. Roberto vc disse no seu texto que há uma diferença entre ortodoxo e liberal, ql seria? E outra duvida que eu tenho é quais seriam as escolas de liberalismo economico? procurando na internet parece que a unica que existe é austriaca.

    Att,

    Wanderson

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    1. Ainda pretendo explicar melhor a diferença, por enquanto, para não te deixar sem resposta, vou usar o seu exemplo dos economistas austríacos que são liberais, mas não são ortodoxos.

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  3. Só faltou citar alguns outros projetos e feitos de cunho desenvolvimentista como o trem-bala, os dez estádios da copa, os submarinos nucleares...

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  4. Excelente. Um retrato fidedigno do que aconteceu no Brasil com a Nova Matriz Econômica. São problemas microeconomicos e os economistas keynesianos não conseguem enxergar isso. Enxergam apenas o agregado e se esquecem que problemas econômicos também nascem de expectativas e decisões de consumidores e firmas.

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