quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Rebaixamento Merecido!

Ontem a Standard & Poor’s (S&P) tirou o grau de investimento da economia brasileira. Apesar de não ser nenhuma surpresa a notícia causou impacto no governo e no mercado. Joaquim Levy, Ministro da Fazenda, em um momento digno de Guido Mantega declarou que a decisão da S&P foi política e precipitada (link aqui), considero que a decisão não foi política e muito menos precipitada. Acredito que se houve alguma influência política foi no sentido de manter até ontem o grau de investimento do Brasil. Para perceber o tamanho do problema da economia brasileira vou comparar nossos indicadores com os indicadores de um grupo de países da América Latina (Argentina, México, Chile, Colômbia e Peru) e com os dos países que formam o BRICS (Rússia, China, Índia e África do Sul). A tabela abaixo mostra a avaliação de risco do Brasil e de cada um dos países dos dois grupos de comparação.

País
Nota
Argentina
SD
Brasil
BB+
Chile
AA-
China
AA-
Colômbia
BBB
Índia
BBB-
México
BBB+
Peru
BBB+
Rússia
BB+
África do Sul
BBB-

Os países com nota igual ou maior que BBB- possuem o grau de investimento (Chile, China, Colômbia, Índia, México, Peru e África do Sul), a Argentina é considerada em default seletivo, ou seja, já está dando calote em alguns credores, Brasil e Rússia são considerados de risco elevado. Vale notar que África do Sul e Índia estão na fronteira para perder o grau de investimento. Mal comparando com a Série A do campeonato brasileiro de futebol poderíamos dizer que Chile e China estão com chances de ir para Libertadores; México, Peru e Colômbia estão brigando pela Sul-Americana; Índia e África do Sul estão na zona de rebaixamento. Brasil e Rússia já foram rebaixados e a Argentina não disputa o campeonato.

Será justa a posição do Brasil? Comecemos pelo principal indicador de solvência: a dívida do país. A figura abaixo mostra a dívida bruta como proporção do PIB para os países do grupo da América Latina. Repare que o Brasil é o país da amostra com a maior dívida bruta em relação ao PIB, repare também que o país menos endividado, o Chile, é o país com melhor avaliação. Se listarmos os países do menos endividado para o mais endividado vamos ter: Chile, Peru, Colômbia, Argentina, México e Brasil; se listarmos do melhor para o pior avaliado vamos ter: Chile, Peru e México, Colômbia, Brasil e Argentina. Como a Argentina está renegociando dívida a redução da dívida não foi capaz de melhorar a avaliação de risco do país, sendo assim podemos ignorar a Argentina e concluir que o Brasil é o mais endividado e também o pior avaliado. Note que excluindo a Argentina a ordem dos menos endividados é muito parecida com a dos melhores avaliados, apenas o México quebra a ordem.




A próxima figura mostra a dívida bruta como proporção do PIB para os países do BRICS. Na maior parte do período a Índia era o país mais endividado, apenas nas projeções para 2015 o Brasil ultrapassa a Índia. Nessa amostra a ordem do endividamento não é tão parecida com a ordem das avaliações, a única consistência entre as duas ordenações é que o Brasil é novamente o mais endividado e, junto com a Rússia, o pior avaliado. Vale notar que nas duas amostras de países apenas o Brasil e a Índia possuem dívida bruta maior que 60% do PIB, o México tem 51% e todos os outros estão abaixo de 50%. Observando a dívida bruta creio que é mais justo perguntar a razão da Índia ter grau de investimento do que do Brasil não ter.




Um outro indicador interessante é o que o FMI chama de resultado estrutural, trata-se de uma tentativa de ajustar o déficit do governo pelos efeitos do ciclo econômico. As duas figuras abaixo mostram o resultado estrutural para os dez países das duas amostras, primeiro os da América Latina e depois os do BRICS. No grupo da América Latina o Brasil é o país com o maior déficit estrutural, creio que a “melhora” de 2015 toma por base a promessa de superávit primário de 1,2% do PIB que o governo já reconheceu que não vai ser cumprida. No grupo dos BRICS o Brasil só está pior do que a Índia, mais uma vez perguntar a razão da Índia manter o grau de investimento é mais intuitivo do que perguntar a razão do Brasil ter perdido.




Existem pelo menos duas razões para a Índia manter o grau de investimento. A primeira é que, ao contrário do que acontece no Brasil, os números da Índia estão melhorando, a dívida bruta está caindo como proporção do PIB e o déficit apresenta uma leve tendência de redução. O outro motivo é que enquanto o Brasil está enfrentando uma das piores crises do pós-guerra a Índia deve tomar o lugar da China como o país grande que mais cresce no mundo. A figura abaixo mostra as taxas de crescimento de Brasil e Índia desde 2011 (não coloquei 2010 para não se acusado de excesso de má vontade com o governo Dilma), o contraste é evidente: enquanto os dados mostram que o Brasil tem crescimento negativo e as projeções do FMI apontam para crescimento de 2,25% a partir de 2017, na Índia os dados mostram crescimento acima de 5% e as projeções apontam crescimento acima de 7%. Como o crescimento da economia facilita o ajuste me parece que uma resposta plausível para Índia manter o grau de investimento, ainda que na fronteira, é que a S&P também aposta no crescimento da Índia. Considerando que o Brasil deve encolher esse ano e talvez no próximo, que nossa dívida bruta como proporção do PIB já ultrapassou a da Índia e que provavelmente a melhora no déficit estrutural projetada pelo FMI não vai acontecer de forma que devemos ter um déficit estrutural próximo ao da Índia qual é a razão plausível para manter o grau de investimento para o Brasil?




Existem dois pontos na análise acima que podem incomodar alguns leitores. O primeiro é que eu não usei países europeus que estão muito mais endividados que o Brasil e possuem grau de investimento. O fato é que apesar dos devaneios dos últimos anos o grupo de comparação do Brasil não são os países ricos, nosso grupo de comparação são os países emergentes e, levando em conta os países emergentes, nossa dívida é sim muito alta. O segundo ponto é que eu usei dívida bruta e não dívida líquida. Meu motivo para usar dívida bruta é que os números da dívida líquida brasileira não são confiáveis, como hoje é público e notório o governo brasileiro usou e abusou e artifícios para reduzir a dívida líquida do Brasil, tais artifícios fizeram com que acompanhar a dívida líquida brasileira passasse a ser um exercício inútil ou mesmo perigoso.

Uma forma de perceber o quão pouco informativo é analisar a dívida líquida é comparar os dados do Banco Central de dívida líquida e pagamento de juros como proporção do PIB (se não me engano o Mansueto argumentou nessa linha ontem no seminário na FACE/UnB). Era de se esperar que a redução na dívida levasse a uma redução no pagamento de juros, um fenômeno observado em 2007 e até meados de 2008. Porém, como mostra a figura abaixo, a partir de 2009 fica claro que a redução da dívida não é acompanhada por uma redução no pagamento dos juros. Uma possível explicação para o fenômeno seria um aumento da taxa de juros, de fato a partir de agosto de 2014 tal explicação pode ser razoável, porém entre janeiro de 2009 e julho de 2014 a taxa de juros ficou razoavelmente estável como mostra a figura seguinte. A inconsistência que os dados de dívida líquida e juros mostra é apenas um dos vários indícios que foram usados para questionar a dívida líquida brasileira, hoje as técnicas de manipulação são bem documentadas e reconhecidas pelo próprio governo.







Até agora o Brasil aparece na comparação como um país bem mais endividado que a grande maioria dos outros países das duas amostras (apenas a Índia está tão endividada quanto o Brasil, mas deve crescer muito mais que o Brasil nos próximos anos), com um déficit estrutural maior que o da maioria dos países da amostra (novamente a Índia é nossa companheira) e um país com números suspeitos. Se o leitor acredita que tais motivos não são suficientes para tirar o grau de investimento podemos olhar para as duas variáveis centrais da política macroeconômica: a taxa de crescimento e a inflação.

Vimos que comparado à Índia o crescimento do Brasil é muito baixo. Infelizmente nosso crescimento também é baixo se comparado aos outros países da amostra. De acordo com as projeções do FMI dos dez países apenas a Rússia vai crescer menos (na realidade encolher mais) do que o Brasil em 2015. A figura abaixo ilustra esse fato. Sem perspectivas de crescimento fica muito mais difícil ajustar a economia, a insistência do governo em alegar que tem dificuldades em cortar gastos e por isso que tirar mais dinheiro das famílias chega a ser patética diante das privações que as famílias passam em uma crise como a que está começando. Fica aqui a sugestão para algum jornalista fazer uma reportagem mostrando o orçamento de uma família da tão festejada nova classe média e pedir para a presidente ou para o ministro da fazenda mostrar onde cortar gastos.




A inflação de um país costuma ser um indicador de quão arrumada está a política econômica, uma inflação alta é sinal que problemas importantes não receberam o tratamento adequado. No grupo de países que comentei no post o Brasil tem a terceira maior inflação prevista para 2015, ficamos atrás apenas de Argentina e Rússia. O corte aqui é cristalino, todos os países do grupo com inflação prevista abaixo de 5% para 2015 possuem grau de investimento, a Índia, com inflação prevista de 6%, é o único país que tem grau de investimento e tem inflação acima de 5%. Na base de dados do FMI a inflação prevista para o Brasil em 2015 é de 7,8%, no Boletim Focus do Banco Central a inflação prevista é de 9,3%, por uma previsão ou por outra apenas Argentina (18,6%) e Rússia (17,9%), dois países se grau de investimento, vão ter inflação maior que o Brasil em 2015.




Diante dos números de dívida bruta, crescimento e inflação fica difícil sustentar a tese do ministro Joaquim Levy de que a perda do grau de investimento foi motivada por razões políticas. A verdade é que nossa dívida bruta é a maior da amostra, próxima a dívida da Índia, nosso déficit estrutural é o segundo maior da amostra, nosso crescimento é o segundo menor da amostra perdendo apenas para Rússia que não tem grau de investimento e nossa inflação é a terceira maior perdendo apenas para Argentina e Rússia. Por triste que possa ser o rebaixamento do Brasil foi merecido, Joaquim Levy poderia argumentar com razão que quando tomou posse o rebaixamento era inevitável, mas ao ter se apresentado como fiador do grau de investimento o ministro perdeu o argumento da inevitabilidade. Como último consolo podíamos pensar que o rebaixamento será a oportunidade de olharmos de frente para os problemas de nossa economia e começar a buscar soluções. As reações de Lula, do líder do governo na Câmara e mesmo dos ministros da área econômica infelizmente sugerem que no lugar de arrumar a casa vamos culpar o juiz. Pena.



3 comentários:

  1. Olá, Roberto.
    Acho o seu blog muito bom.
    Apenas esclareça um fato. Por mais que seja perigoso usar os dados da dívida líquida, é fato que o Brasil possui reservas substanciais em dólar que são remuneradas a uma taxa muito menor do que a taxa que o governo paga nos seus empréstimos internos.
    Assim sendo, não se poderia diminuir as reservas e com isso atenuar o endividamento bruto? Há necessidade de quase 400 bilhões de dólares em reservas?
    Outra coisa, eu como não sou economista, gostaria de saber como funciona a questão da desvalorização cambial, nossas reservas internacionais, e a diminuição da nossa dívida líquida.

    Obrigado!

    Abraço!

    blog pensamentos financeiros

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    1. Caro,

      Obrigado pelo elogio ao blog. Existem muito economistas que criticam o gerenciamento que o BC faz das reservas na direção que você apontou, mas a questão pode ser mais complicada do que parece. No final da década de 90 muitos países, Brasil entre eles, acreditaram que possuíam reservas suficientes para aguentar uma crise no balanço de pagamentos, os fatos mostraram que não tinham, tal experiência, que foi sentida aqui no começo de 1999, pode justificar um excesso de zelo do BC no gerenciamento das reservas. Tem outro ponto, o BC inundou o mercado com swaps cambiais, grosso modo são operações que obrigam o BC a comprar dólares no futuro, se considerarmos tais operações a folga do BC com as reservas não é mais tão grande, a depender da conta pode não existir folga. No final o volume certo de reservas é uma questão de gerenciamento financeiro da carteira do BC, as reservas tem um custo mas funcionam como uma garantia para investir aqui no Brasil. Não sou especialista em finanças, minha área é macroeconomia, não saberia dizer qual o volume de reservas em uma carteira ótima, senado assim não tenho motivos para acreditar que o BC está cometendo um erro grave no gerenciamento das reservas.

      Dito isso usar reservas para ajudar na questão fiscal me parece um erro grave. As reservas devem ser gerenciadas pelo BC como parte da política monetária, misturar ainda mais as políticas mentária e fiscal pode sair caro no futuro. A Argentina tentou operação parecida, além de não resolver o problema fiscal criou mais dúvidas a respeito da confiabilidade do peso. Nosso problema fiscal é estrutural de médio longo prazo e precisa de soluções via reformas que mudem a estrutura do gasto e da arrecadação no médio e no longo prazo. Apelas para alquimia em momentos assim costuma dar muito errado.

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    2. Obrigado, Roberto.
      Claro, quando perguntei não foi no intuito de alguma maneira confundir as esferas fiscais e monetária.
      Como alguns colegas seus (Mansueto, Samuel Pessoa, etc), eu creio que em num determinando momento precisaremos rediscutir novamente os alicerces constitucionais de várias das nossas escolhas enquanto nação.
      A minha pergunta foi mais no sentido técnico mesmo. Se precisaríamos reservas em tão elevada monta, em que pesa o passado recente de fragilidade de reservas, hoje em dia não é mais o caso.
      Porém, creio que deveria haver uma discussão mais aberta, assim como os subsídios pagos por toda sociedade em empréstimos do BNDES, o custo para o Brasil carregar essas reservas. Como nunca li muito a respeito, apenas um artigo do Ricardo Gallo dando a opinião que o nosso estoque de reservas seria muito elevado, creio que é uma discussão importante a ser feita.

      No mais, obrigado pela atenção.

      Abraço!

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