domingo, 26 de julho de 2015

Reformas e Indústria Automobilística: uma leitura do Anuário Estatístico da Indústria Automobilística

O leitor que acompanha o blog sabe que um dos principais motivos para existência desse espaço é denunciar a agenda de contrarreformas que começou por volta de 2006 e tomou força a partir de 2011 com a chegada de Dilma ao poder. O fracasso da Nova Matriz Econômica proposta pela equipe econômica do primeiro governo Dilma hoje é evidente. Um programa que prometia aumentar o crescimento e a taxa de investimento, recuperar a participação da indústria no PIB e ainda manter a inflação sobre controle e aprofundar o processo de redução da pobreza extrema e desconcentração de renda teve como resultado o exato oposto do que propunha. O país parou de crescer, a taxa de investimento reverteu a tendência de crescimento, a participação da indústria no PIB continuou caindo, a inflação subiu, a miséria aumentou e o processo de desconcentração de renda perdeu força. Diante de tamanho fracasso continuar batendo na agenda de contrarreformas poderia ser visto quase como uma forma de sadismo, mas não é. As ideias que inspiraram tanto as contrarreformas quanto a infame Nova Matriz Econômica continuam vivas e fortes apenas esperando uma nova oportunidade de voltarem a pautar a política econômica.

Sou de uma geração de economistas que ousou sonhar que o desenvolvimentismo à brasileira tinha saído de cena de uma vez por todas. Por algum tempo pensei que estávamos livres do cotidiano de fortunas construídas do dia para noite por empresários especializados em tomar financiamento subsidiado do governo para construir obras ou produzir mercadorias superfaturadas para o próprio governo. Não que a corrupção fosse acabar ou que aqui ou ali não aparecesse um caso de sucesso empresarial tão inexplicável quanto próximo ao governo, infelizmente essas coisas existem em qualquer lugar do mundo, mas confesso que pensei que casos assim deixariam de ser regra e passariam a ser exceção. Ledo engano, mal nos recuperamos da crise da década de oitenta e trouxemos de volta o BNDES bem como os grandes programas de infraestrutura definidos em Brasília e financiados pelo contribuinte. É bem verdade que governo grande nunca saiu de cena, mas o governo que transfere renda para os muito ricos à guisa de financiar o desenvolvimento tinha saído de cena e estava de volta à ribalta.

No meio de crise fiscal, ameaça de volta da inflação, demissões em massa e ainda por cima de uma crise política que toma contornos de crise institucional é fácil ver que tudo deu errado, mas pode ser difícil enxergar os detalhes do processo que fez com que tudo desse errado. Com o objetivo de ilustrar a origem do mal que nos assola resolvi dar uma olhada no anuário estatístico da indústria automobilística (link aqui) e tentar ver como seria possível contar a história das reformas e das contrarreformas a partir dos dados de um setor da indústria que sempre esteve no centro das atenções de nossas políticas industriais. Para isso devo dizer que um dos elementos da lógica das contrarreformas é o que se chama de macroeconomia do emprego e da renda, a ideia é que a política econômica deve ser focada em garantir o emprego e a renda dos trabalhadores. Uma vez garantidos o emprego e a renda, na prática mais o emprego do que a renda, a demanda também estaria garantida e o espírito animal dos empresários faria o resto, ou seja, garantiria os investimentos necessários para aumentar a capacidade produtiva da economia. Caso algo desse errado bastaria o governo aumentar gastos de forma a garantir a demanda e manter vivo o espírito animal.

Um dos pontos desta lógica que mais me incomoda é que ela pressupõe poder guiar o espírito animal, qualquer um que tenha contato com animais sabe o quão difícil é guiar um animal e quão fácil é terminar levando uma dentada. Quando muito a lógica se aplicaria a animais adestrados, o que exigiria supor que burocratas têm capacidade de adestrar o espírito animal do empresário e ignorar que um dos efeitos colaterais do adestramento é exatamente destruir o espírito animal. Mas deixemos de coisas e cuidemos da vida, a figura abaixo mostra o número de pessoas empregadas na indústria automobilística, no gráfico estão o emprego apenas na produção de veículos e o emprego total, a diferença é o emprego na produção de máquinas agrícolas e rodoviárias. Chama atenção o aumento do total de pessoas empregadas no setor, o pico de 2013 só é menor que o pico de 1986, a subida que começa em 2003 é comparável a que começa em 1967, ao que parece será um pouco mais curta, mas da mesma ordem de inclinação. Tudo fica ainda mais impressionante se consideramos os possíveis efeitos do processo de terceirização sobre o número de empregados nas empresas do setor.




Se o emprego é variável de interesse para os elaboradores de política econômica o lucro é a variável de interesse para as empresas do setor. Não encontrei o lucro, mas encontrei o faturamento líquido, ou seja, o faturamento livre de impostos. Usar faturamento como proxy para lucros é uma estratégia arriscada, mas um blog é o tipo de lugar adequado para tomar certos riscos, sendo assim a figura abaixo mostra o faturamento do setor como proporção do PIB. Repare que desde a década de 70 não ocorria uma sequência de anos onde o faturamento da indústria automobilística ficasse acima de 4% do PIB, mais precisamente, em termos de faturamento da indústria automobilística o período atual só é comparável ao período entre 1971 e 1976. Juntando os números de emprego e faturamento fica difícil não ficar com a impressão que para a indústria automobilística os últimos anos foram tão bons quanto a década de 70.




O leitor assíduo do blog sabe que sempre que faço referência à década de 70 é porque estou preparando terreno para falar da década de 80, esse post não será exceção. O aumento do emprego no setor automobilístico na década de 70 despencou de tal forma na década de 80 que apenas por volta de 2012 o número de empregados no setor voltou a ser igual ao de 1980. Com os números que tenho não posso ajustar para os efeitos da terceirização, mas mesmo que o intervalo de 32 anos caia pela metade ainda terá sido um longo período de recuperação. Será que a queda que começa em 2014 será igual à queda que começou em 1981? Espero que não, mas temo que possa ser mais parecido que gostaríamos.

Para entender meus motivos peço que reparem no gráfico abaixo mostrando o emprego (eixo da esquerda) e a produtividade do trabalho (eixo da direita) na produção de veículos. Note que o grande período de crescimento do emprego ocorrido na década de 70 não foi acompanhado de crescimento semelhante na produtividade. No lugar de fazer mais com menos, que é o caminho para a riqueza, estávamos fazendo mais com mais, que é um processo limitado pela oferta de capital e trabalho e/ou pelos rendimentos decrescentes na produção. Repare agora que no período das reformas, a partir da abertura em 1990, a indústria automobilística começa um processo de crescimento da produtividade. Mais emprego, mais produtividade e mais faturamento! Como pode dar errado?





Olhe com mais atenção. Para ajudar vou colocar alguns números. Entre 1973, quando começa a estagnação da produtividade, até 1990, começo da abertura, a produtividade do trabalho cresceu a uma taxa média de 0,3% ao ano, uma taxa muito baixa. Entre 1991 e 2005, período das reformas, a produtividade do trabalho cresceu a uma taxa média de 8,8% ao ano, um crescimento quase trinta vezes maior. Entre 2006 e 2014, período de contrarreformas, a produtividade teve um crescimento negativo de 0,5% ao ano, se considerarmos apenas o período da Nova Matriz o crescimento negativo foi de 4,8% ao ano! Fica difícil não concluir que a crise atual da indústria automobilística é uma crise que passa pela falta de crescimento da produtividade, ao focar no emprego e ignorar a produtividade a política econômica mais uma vez gerou um crescimento não sustentado, pior, destruiu um crescimento que parecia sustentável para colocar no lugar uma repetição piorada do modelo da década de 70. Se serve de consolo o processo democrático parece ter atrapalhado a ponto de quase impedir a estratégia desenvolvimentista do século XXI, o povo foi para as ruas deixar claro que não estava disposto a financiar devaneios de burocratas que acreditam não apenas domar animais como descoberto a maneira de domesticar sem eliminar o instinto selvagem. No lugar de pirotecnias como maxidesvalorização do câmbio por decreto e fórmulas mágicas de correção salarial temos um governo acuado, empresários amigos na cadeia e promessas vazias de ajuste fiscal. Melhor assim.




P.S. Sempre que mostro números contrastando o período de reformas do período de contrarreformas aparece alguém cobrando os números por mandatos presidências. Acredito que separar por política econômica faz mais sentido do que por quem é o inquilino do Palácio do Planalto, mas para poupar o trabalho de alguns amigos informo que o crescimento da produtividade do trabalho foi de 5,6% no período de FHC, 4,5% ao ano no período de Lula e -4,8% ao ano no período Dilma.


6 comentários:

  1. No último gráfico, qual é o emprego e qual é a produtividade? Está série1 e série2

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  2. (mesmo anônimo: os eixos também estão sem legenda)

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    1. Comentei no texto do post, o da direita é o da produtividade e o da esquerda é o do emprego. Sei que o ideal é colocar no gráfico, mas o Excel não ajuda.

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    2. Em tempo: a produtividade é em R$ por hora trabalhada?

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