domingo, 19 de outubro de 2014

Contabilidade Criativa (ou seria Fraude Contábil?) passa dos Limites

Há quem diga que o primeiro passo na caminhada que levou a criação da economia de mercado e do capitalismo foi dado em 1494 quando o Frei Luca Pacioli (1445 – 1517) apresentou o mundo o sistema de partidas dobradas, a base da atual contabilidade. Se foi o primeiro ou mais importante eu não sei dizer, mas que foi fundamental creio que poucos duvidam. Sem uma forma estruturada de organizar e apresentar dados contábeis a economia moderna não existiria, investir em uma sociedade anônima seria praticamente impossível. Os que preferem uma economia planificada também precisam da contabilidade, talvez até mais do que os adeptos do livre mercado, sem contabilidade não existe planejamento.

Fiz esta introdução para tratar de uma reportagem do Estadão (link aqui) que me deixou muito preocupado com a situação fiscal do país, não que eu já não estivesse preocupado, pelo contrário, mas a preocupação atingiu um novo patamar. Trata-se de uma discrepância de R$ 3,1 bilhões entre o déficit público acumulado até agosto medido pelo Banco Central e o medido pelo Tesouro Nacional. Antes de seguir cabe uma explicação para os leitores que viram coisas mais úteis e interessantes para fazer na vida do que estudar economia ou contabilidade. Tentarei fazer a explicação por meio de um exemplo.

Suponha um casal que para organizar melhor sua vida financeira decida que um vai organizar os gastos e as receitas da família e o outro vai acompanhar as dívidas e/ou as aplicações da família. Em um dado ano as rendas somadas do casal é de R$ 100.000,00, ou seja, o casal ganhou cem mil reais, nesse mesmo ano o gasto de casal foi de R$ 80.000,00, ou outros R$ 20.000 foram para poupança. Para simplificar nosso exemplo e não termos de tratar de juros vamos supor que o casal não tinha nem dívidas nem poupança, como se diz, estava no “zero a zero”. No final do ano o casal passou a ter R$ 20.000,00 de poupança (o leitor incomodado com os juros pode pensar que a poupança foi toda feita no último dia do ano ou que a taxa de juros é zero, a ideia é manter o exemplo simples). Como cada um vai ver o ano? O que ficou responsável pelos gastos e pelas receitas vai ver uma diferença positiva de R$ 20.000,00 e concluir que o casal teve um superávit de R$ 20.000,00. O que ficou responsável de olhar para aplicações e dívidas vai ver que o casal saiu do “zero a zero” e agora tem aplicações de R$ 20.000,00, ou seja vai encontrar um superávit de R$ 20.000,00. No final do dia os dois encontraram o mesmo resultado, não é coincidência, se você parar para pensar tem que ser assim. No final do dia a variação do patrimônio é igual a diferença entre receitas e despesas.

A ideia que tentei explicar no parágrafo acima é usada pelos governos e analistas econômicos para organizar e avaliar as contas de um país. No Brasil o Tesouro Nacional é o responsável por acompanhar as receitas e os gastos e o Banco Central é o responsável por acompanhar as aplicações e as dívidas do governo. No jargão da área o resultado apurado pelo Tesouro é chamado de “acima da linha” e o apurado pelo Banco Central é chamado de “abaixo da linha”. Em tempos normais existem diferenças entre os dois resultados, tente organizar o resultado “acima da linha” e “abaixo da linha” de sua casa e você entenderá a razão (se o leitor é um pequeno ou médio empresário já entendeu), sempre existirão despesas mal contabilizadas e coisas do tipo que vão impedir que os dois resultados sejam rigorosamente iguais. Quem já viu um balanço de uma empresa reparou que até existe uma conta chamada erros e omissões para acomodar tais casos. Porém quando a diferença entre as duas formas de apuração fica muito grande é sinal de que algo de errado está acontecendo é sinal que algo de errado está acontecendo. Quanto maior a diferença mais errado é esse algo.

Voltemos agora a notícia do Estadão. Entre janeiro e agosto desse ano a diferença entre o apurado pelos dois métodos é de R$ 3,1 bilhões! Em todo o ano de 2011 foi de R$ 489 milhões. Para que o leitor tenha ideia do tamanho do erro basta reparar que segundo a reportagem a poupança fiscal do governo foi de R$ 4,6 bilhões de acordo com o Tesouro e de R$ 1,5 bilhão segundo o Banco Central. Nem as pesquisas eleitorais tem tanta margem de erro. Um alerta para os leigos, antes de comemorar que pelo menos temos poupança é bom saber que tal poupança desconsidera o pagamento de juros. É como se o amigo que ganha R$ 5.000,00 por mês e paga R$ 4.000,00 de despesas para tocar a vida e mais R$ 1.5000,00 de juros no cartão dissesse que poupa R$ 1.000,00 para pagar juros. O amigo, e o gerente do banco do amigo, sabem bem que na verdade ele se endivida em R$ 500,00 por mês.

A origem da discrepância pode ser encontrada no final do parágrafo anterior. Por que um governo que está se endividando pode dizer que está poupando para pagar juros? Porque governo tem certas regalias nas suas contabilidades, afinal governos fazem leis e (quase) ninguém faz leis contra si mesmo. Ocorre que nos últimos anos o governo passou a abusar muito dessas regalias. No passado distante tratava-se de formas diferentes de apresentar resultados contábeis, depois passou a ser refinamento destas formas como o famoso “investimento não é gasto” e hoje são manobras contáveis para esconder gastos. Arrisco dizer que se uma empresa que opera na bolsa de Nova York ou de Londres fizesse tais manobras era bem possível que a diretoria estivesse presa.


A consequência dessa manipulação de resultados, carinhosamente apelidada de contabilidade criativa é que ninguém mais sabe quais os verdadeiros números fiscais brasileiros. Nossas finanças públicas estão bem? Estão mal? Infelizmente hoje é praticamente impossível responder a essa pergunta. É uma realidade ruim para a democracia, o contribuinte deveria ter o direito de saber o que é feito com o dinheiro dele, e ruim para economia, o investidor não gosta de investir às cegas.



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